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Retalho XVIII, sem hora de partida

 

Ao longo do corredor comprido ladeado de armários em chapa, Francisco caminhava com os olhos postos no chão, observando os ladrilhos sujos nas intersecções com o olhar parado e a mente em rebuliço pelo aviso repentino para ir à direcção da escola. O contínuo que agora lhe guiava e marcava a cadência dos passos entrara de repelão pela sala interrompendo a aula:
- O Francisco tem que ir já à direcção – dissera.
- Mas, o que foi que eu fiz? - Apoquentara-se o Francisco com tão inusitada intimação que normalmente significava castigo por alguma malandrice.
- Nada filho, o director é que quer falar contigo – respondera o contínuo em tom condescendente. O tom do contínuo descansara-o pela desmesurada candura que o surpreendeu, pondo-se assim em marcha, atrás do contínuo após assentimento do professor
Mas no caminho ia pensativo pelos motivos da solicitação, divagando a mente e o olhar pelo longo corredor do liceu, olhou para lá das vidraças observando as árvores fustigadas pelo vento, as balizas sem rede do campo de futebol, o lamento da chuva escorrendo nos vidros sujos. Olhou as unhas para ver se estavam limpas que o director era exigente nessas coisas, sacudiu a roupa tentando retirar restos da borracha dos lápis que se pegavam às malhas. Apareceu-lhe na testa a mesma ruga horizontal que a mãe, a Odete, fazia quando as preocupações eram muitas. Aos poucos começou a sentir o aperto e o frio do tempo lá fora a invadi-lo numa premonição que não lhe augurava nada de bom. O seu corpo era franzino, não herdara a corpulência do pai, antes a beleza serena da mãe. A intuição, a candura no olhar faziam lembrar sempre a mãe a quem os conhecia:
- Ó Odete, para fazer este não precisaste da ajuda do “home”, ele não tem nada do teu Artur. Fizeste-o sozinha, não? – E riam as comadres na algazarra dos fins de missa.
Chegaram ao gabinete do director, o contínuo bateu à porta e abriu-a de seguida:
- Já 'tá aqui o Francisco Sr. director – anunciou respeitosamente.
- Ele que entre Sr. Lopes – respondeu lá de dentro o director em voz grave e séria.
O Francisco sentia os joelhos a fraquejarem, entrou a medo e desconfiado, mirou o director sentado a pigarrear perante os inúmeros papéis que ocupavam a secretária.
- Senta-te – ordenou o director tentando colocar um tom de voz claro e sem a aspereza que a caracterizava. Francisco obedeceu, sentou-se na larga cadeira com as mãos crispadas entre as pernas, ombros caídos, olhar vago sem pronunciar palavra.
- olha filho – começou o director – aconteceu algo muito mau mas quero que tenhas noção que a vida é mesmo assim, é feita de partidas e chegadas. Algo de divino que não entendemos faz as suas escolhas e nós aqui em baixo resta-nos aceitar e pensar sempre que é a sua vontade. Não nos devemos nunca revoltar, antes aceitar e glorificar a sua presença sobre nós.
Francisco não estava a perceber nada dos preâmbulos do director, fixou o olhar no pisa papéis em vidro grosso com um escorpião embalsamado, a longa cauda pontiaguda, a cor preta do lacrau… enquanto o director continuava o discurso de afago desconcertante de dores que ainda não sentia mas sentia prestes e numa explosão perguntou:
- Mas afinal o que aconteceu à minha mãe? - Perguntou já num tom apavorado como se as palavras do director tivessem feito luz no seu íntimo.
- Nada filho… foi o teu pai, faleceu esta manhã – desabafou o director quase num suspiro de alívio. De repente uma janela cedeu ao esforço do vento e abriu intempestivamente, pondo os papéis da secretária num redemoinho, o director levantou-se a correr a fechá-la, e a apanhar os papéis espalhados no chão. O Francisco ficou indiferente, envergonhado pelo alivio que sentira ao saber que não tinha sido a mãe, o pai nunca foi o companheiro que muitas vezes quisera mas naquele momento lembrava-se do balão que lhe dera no dia da romaria já há uns anos, lembrava-se de quando ele o ensinara a andar de bicicleta, a sensação de segurança quando ainda bebé lhe transmitiam os seus braços fortes, o apelo másculo do filho pelo pai, diferente do apelo maternal da mãe, do mimo e dos afectos. As lágrimas corriam-lhe profusas e silenciosas, herdara da mãe o silêncio do choro, fixou de novo o olhar no pisa papéis numa visão enevoada pela lágrima teimosa que lhe pendia dos olhos rasgados, o escorpião lá continuava imóvel mas feroz como a fama que tinha.

 
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jaber
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/04/2009 15:13  Atualizado: 29/04/2009 15:13
 Re: Retalho XVIII, sem hora de partida
Está bom...Sem uma gota de sangue, mas bom.
Bjins, Betha.






Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 29/04/2009 15:20  Atualizado: 29/04/2009 15:21
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8104
 Re: Retalho XVIII, sem hora de partida
Não teve sangue, mas tem fantasmas a entrar pela janela e a levantar papeis, que medo...
Tá, um beijinho.


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 29/04/2009 15:29  Atualizado: 29/04/2009 15:29
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: Retalho XVIII, sem hora de partida
Sem sangue e com medo e um contador de histórias à procura do seu rumo?
Beijinho, quiducho


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/04/2009 16:53  Atualizado: 29/04/2009 16:53
 Re: Retalho XVIII, sem hora de partida
Sem sangue, com lágrimas, sem lágrimas, ainda se escrevem textos inteligentes como este.
Parabéns amigo
Abraço
Edilson


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/04/2009 17:32  Atualizado: 29/04/2009 17:32
 Re: Retalho XVIII, sem hora de partida
Tens que juntar todas as peças da história e por tudo num livro, e claro antes deves continuar a publicar o desenrolar para nós teus leitores sabermos em primeira mão o desfecho da tua história,

(Vais no bom caminho do talento...)


Bj

Luisa Raposo


Enviado por Tópico
Caopoeta
Publicado: 29/04/2009 17:40  Atualizado: 29/04/2009 17:40
Colaborador
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Mensagens: 1988
 Re: Retalho XVIII, sem hora de partida
gostei do que li, e a relevância que dás ao escorpião, talvez despropositado...gostei sim...
revelas talento para as cronicas...( como já te disseram,certamente)

abraço