Crónicas : 

Enfim, o fim

 
Só não prego o evangelho pelas portas por falta de tempo e honestidade. Cada um deve comer pelas suas próprias mãos e ninguém tem nada que ir levar deste género alimentício à boca dos outros. Além de que, tenho mau feitio.
Sou uma mistura de raiva com descontentamento.
Os caminhos foram feitos para caminhar, portanto, cada um que avance para o lado que quiser. Estou farto de que me venham com ideologias todo-o-terreno.

Só me deixo enganar pela verdade. A existência para mim é um pau de quatro bicos. Comer, beber, foder e depois escrever um poema é o meu lema. Acreditar é tornar-nos loucos e impacientes. Esperamos que a montanha cresça na mão de uma criança.
A Irene foi-se. Foi bom enquanto durou. Apaixonou-se por um cliente que lhe dava boas garantias futuras. E foi-se. E eu de novo à estaca zero. Aprecio os recomeços. Tenho a sensação de que a obscuridade se torna mais visível. Segundo a minha data de nascimento e hora, a astrologia diz tratar-se de uma ruindade.

Leio livros porque não há carne no frigorífico. Engana-se a fome e a porra da solidão. Há dias em que as noites são bem melhores. A sensação que tenho é que, se me cortarem as pernas, ainda assim eu corro, eu correrei para lá do que sou. As minhas qualidades são inqualificáveis.

Falo de mim porque à minha volta não existe ninguém. Eu só, neste quarto que fede a silêncio e sémen. Mesmo cá em baixo sinto-me no topo do mundo. A realidade é um sonho. E o sonho é uma história mal contada.

Acredito em sereias mas elas não acreditam em mim. É um dilema, este, o de acreditar em livros. Para felicidade tenho o wisky barato. Para tristeza basta-me a sede constante. Meto ambas num saco e tiro à sorte. Hoje calhou-me a felicidade. Estou safo só de pensar nessa possibilidade. Ter costas direitas não significa que seja gente séria. Ouvi dizer que sou surdo e mudo. É preciso ser-se necessário.

Do que falo só há provas no que escrevo.
Sim e não são talvez.
Coragem é pensar.
Pensar é fazer florir rosas brancas num tabuleiro de xadrez.
A guerra começa onde termina.
Não apostes tudo no sim. Deixa fluir o sol. Eu amo porque conheço-lhe a dor. Daqui ali faz-se um filho.
À parte de tudo somos nada. À parte do nada somos outro tanto.
Tenho deus algures no coração do coração.
Tecto e chão são os meus melhores amigos. Sou triste e isso alegra-me. A minha posição no mundo é de guarda-redes.
Só não vendo ideias porque não as tenho. Sou um presumível assassino da morte. Matei a morte.

Não pensar é ouvir-se. Fui Cristo e buda e não me lembro de mais nada e, a sensação que tenho é que ainda dói. Na fúria do mar alto o pensamento tem altos e baixos. Atrás de mim estou eu outra vez. Se o amor fosse digital, amaríamos em série? Felicidade é quando duas moscas batem palmas. Olhos nas orelhas não falta quem. Se a mentira desse subsídios, estávamos podres de ricos.

Juro que além da verdade só digo mentiras. Encontro-me perdido. Achei-me para me perder outra vez. A base de tudo é quem está lá em cima. Nada vezes nada é igual a política. O cigano rouba porque tem vergonha de pedir.

O homem é como a serpente, fabrica o seu próprio veneno. Grande é aquele que tem noção que há muito para crescer. A vida tem encontros imediatos com a morte.
Apesar de tudo foi só uma marca no joelho. Quem tem ferros sabe a tábua que isso é.

Deus alimenta-se de almas, logo, é guloso. No estreito de mim, alarga-se a dúvida. Se, só morre quem está vivo, então, só vive quem está morto. Alguém também é ninguém. Ninguém também é gente. Por vias das dúvidas estamos certos. O bicho come a carne do morto porque não há salgadinhos. É estranho eu não me estranhar.

É azul o verde pranto. A mentira é como a loiça, parte-se, e não foi ninguém. Sonha que ainda a luz não vem abaixo. A vida inteira, a morte incompleta. O que envelhece é a luz. O bom seria partir para o regresso.

Às vezes acontece não haver acontecimentos. O exacto nunca soube como nasceu. O cavalo corre, não pela sua felicidade, mas sim pela sua ignorância. Sejamos menos cavalos. O silêncio é o melhor remédio para a idiotice.

A Irene foi-se embora. Podíamos ter sido felizes. Mas faltava o melhor: a poesia.

Estamos perto de chegar a lado nenhum. Roubar o pão não significa matar a fome. O amor é doce mas sem sexo torna-se amargo. Se não tens para onde ir, desagua num livro. Eu sempre soube que não sabia. Ama primeiro num segundo. Dinheirinho faz dinheiro, e sangue faz sangue.

No circo não fui mais que um simples homem-bala. Em tempos pertenci a um gang de poetas mal inspirados. Agora faço dança de salão numa folha branca. Na verdade, em termos legais e logísticos, estou em ponto-morto. Se a vida tivesse pedais eu podia ir mais longe. Enfim, o fim.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 21/06/2010 17:34  Atualizado: 21/06/2010 17:34
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Mensagens: 7238
 Re: Enfim, o fim para fláviosilver
impagável.

beijo,
alex


Enviado por Tópico
Amora
Publicado: 21/06/2010 20:19  Atualizado: 21/06/2010 20:19
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Usuário desde: 08/02/2008
Localidade: Brasil
Mensagens: 4705
 Re: Enfim, o fim
Isso de ser honesto consigo mesmo é o que há de mais difícil, meu caro, caríssimo. Para tal, são tantas as oportunidades que o teu texto distribui que não posso deixar de agarrar no mínimo uma meia dúzia e dizê-las minhas.
Enfim, beijo desta que admira tua escrita, desde o princípio.


Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 21/06/2010 20:32  Atualizado: 21/06/2010 20:32
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Usuário desde: 01/09/2008
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Mensagens: 669
 Re: Enfim, o fim
Flávio, para o comentar eu precisava de palavras novas, que ainda não existem.
As suas crónicas não podem ser mais bem elaboradas, nem terem mais senso de humor. São verdadeiras obras primas que urge trazer a público.

Um abraço
Antonius


Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 21/06/2010 21:18  Atualizado: 22/06/2010 21:46
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 Re: Enfim, o fim
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