Crónicas : 

Jesus vive em mim

 
A vida muda e, contra o tempo, não há ciência que nos valha.
Temos a cabeça cheia de merdas e, tal com um disco rígido de um computador, é preciso esvaziar. A velhice não é assim tão distante. Quando damos por ela, somos convidados a enfiar-nos dentro de um caixão.

Por saber disto, só tenho objectivo em satisfazer-me. E ler. Verdadeiramente não sabemos o que cá fazemos. Andamos práqui a estudar ciências e comportamentos que nos atrasam mais o divertimento. Sorrir é melhor que uma sande de bacon. Gosto de paixões à primeira vista. Sinto que é das coisas mais verdadeiras que anda por aí. Depois tudo se acaba com insultos, mas isso é outra história. Afinal de contas, somos animais insatisfeitos. Gostamos de bons cérebros, pessoas que pensem bastante, mas no fundo gostamos mais é de um bom par de mamas. Gosto de assistir a grandes exibições pornográficas. Faz-me sentir vivo. Não existe presente, tudo é passado, mesmo o pensamento, pois actualiza-se a cada instante.

Deixei de ser burro e despedi a Suzzi de casa. Disse-lhe que era por falta de complementaridade. Ela não percebeu. Só percebeu quando falei grosso à vocalista de Death Metal. Estava farto de trabalhar para ela, de ser escravizado até à medula, a mantê-la, a ela e às suas manhas e manhosices a troco de umas quecas superficiais. Esgotou-se-me o bom senso e dei a vez a um tipo duro, a centímetros da explosão.
Fiz um contrato com a solidão por ano e meio e andei assim, só e destemido, na procura do meu âmago. Aproveitei esse espaço de ausência de um deus para escrever o meu próximo livro dedicado à quadratura do amor. De uma mulher envolvida em pecados amorosos com poetas. Foram trezentas páginas a imaginar fetiches e diversas formas de amar. Dei o litro pelo não litro.
No percurso dos dias ganhei cinquenta e sete depressões mas no fim de tudo saí ileso que nem um ratinho.
Hoje estou livre para amar, mas falta-me aquele movimento rápido de cabeça para ver quem passa pelos meus olhos.

Liguei para a Guida, uma cinquentona, de banhas transbordantes mas com bom presunto que tira qualquer um do sério, pelo que, para amá-la, é necessário fazer um seguro de ossos. Da última vez, vim de casa dela com a espinha num oito e agradecendo a deus não ter aparecido o jamaicano que com ela tinha ou tem uns lances furtivos. Um tipo bem abonado, karateca e motorista de traillers internacionais. Já estão a imaginar.

Ainda assim arrisquei e fomos tomar qualquer coisa à baixa. Falei-lhe do livro e, ao saber do tema, deu um sorriso convidativo que, diga-se de passagem, deu-me novas inspirações. Palavra puxa palavra, cerveja puxa cerveja, hora e meia depois, estávamos meios pifos, a trengar como pardais ao ninho.

A Guida fala muito alto e o seu discurso é pouco bíblico. Falou-me das suas relações frustradas, das nódoas sentimentais, da cabeça rachada quando se opunha, dos gritos de socorro que ninguém escuta, etc. Ao que esta conversa deu azo para eu chorar. Pois com os copos fico um sensivelzinho de meia tigela, feito pudim. Abraçou-me com os seus braços fortes e senti que ali podia nascer qualquer coisa de positivo. Quem sabe uma luz!

Apesar de ainda ser dia, pagamos a conta a meias e fomos, para não variar, para a casa dela.
Logo à entrada, na parede do corredor, uma fotografia ampliada e emoldurada, do tal, a olhar de frente, como que supervisionasse tudo e todos. Assusta olhá-lo, ver aquela cicatriz que vai da cara ao pescoço que parece um pequeno mapa de estradas.
Ter a imagem dele na cabeça não foi bom, baixou-me os níveis de testosterona. Tirou os sapatos, desnudou-se e deitou-se no sofá a imitar uma leoa amestrada. Reparei aí que a Guida tinha uma tatuagem no fundo das costas que dizia: Jesus vive em mim.

A televisão contava o caso do violador de telheiras. Lá fora uma chuva de repente. O jamaicano a mirar com os seus olhos fixos na fotografia. A Guida a pedi-las. Eu de repente, sem assunto. Com uma frieza infindável pelos ossos. O desassossego a ganhar volume.


Teve de ser, apanhei-a por trás e comi-a em tempo recorde (59 seg.), depois disso, arranjei uma desculpa esfarrapada e aprontei-me para bulir dali para fora antes que o azar me falasse ao ouvido. Mesmo na altura em que abro a porta para a rua, eis sem ninguém contar, pois era suposto estar a atravessar a França, o jamaicano, perturbadíssimo, a claustrofobicar-se, a interrogar-se mentalmente a minha presença ali. A Guida apercebeu-se e, de lá de dentro, gritou:

- É o homem da luz, veio fazer a contagem ao contador!

O homem de pele tostada olhou-me de cima abaixo com gravidade, a tentar ser telepático, a querer provocar briga com o olhar, contraindo os músculos do pescoço, fazendo-os estalar, para intimidação, a deixar o mínimo espaço entre a parede e a porta.

Fiz de conta que não era nada comigo e desopilei com a ânsia de engolir um pouco de nicotina. Afinal de contas o mundo não pára nem dá a mínima chance para lhe amarrarmos nas costas e fazê-lo atrasar. Ele anda sempre à nossa frente e, uma coisa é certa, um segundo faz toda a diferença. E outra coisa: aquela tatuagem fez mudar a minha vida!
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 22/06/2010 21:42  Atualizado: 22/06/2010 21:42
Colaborador
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Localidade: guimarães
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 Re: Jesus vive em mim para flávio

"deu o litro pelo não litro"?!kakakakaka...tiradas hilariantes,umas atrás das outras.se este personagem não existisse,tinha de ser inventado.por ti outra vez,claro.porque se tu não existisses,eu pedia aos teus pais para reconsiderarem e insistirem mais uma vez até tu nasceres.
ai,jesus...que eu não acredito nisto.rsrsr.

beijo,
alex

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/06/2010 21:59  Atualizado: 23/06/2010 00:26
 Re: Jesus vive em mim
é!... fica o ensinamento. nem sempre se vê o caminho de frente. e para compartilhar o prazer da felicidade as vezes é preciso conhecer o outro lado da pessoa, ou as costas. sim, acontecem essas coisas que ficam tatuadas na nossa memória, fazem mudar a nossa vida, ou perdê-la. dependendo onde estiver a tatuagem é que se vai ou não perder a cabeça.rss (quanta sandice meu deus!)

abraço fraterno, amiguirmão.

zésilveira


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/06/2010 00:49  Atualizado: 23/06/2010 00:49
 Re: Jesus vive em mim
Flávio, eu acho este texto, como quinhentos outros teus, de uma assombrosa clarividência, até estética, que chega a doer de tão subtilmente hilariante.
És um escritor de sensações, um homem peculiar, um amigo, que troca os vês pelos bês, mesmo que não troque.
E começo a concordar com as filhas da mãe das concordâncias que te aponto algumas vezes.
És genial nesta esfera tão peculiar de entendimento das coisas, pelas figuras ou bonecos que eu identifico, pelas figuras que retiras ao imaginário que vivemos em parte juntos.
Tenho imenso orgulho e prazer em ser teu amigo, em ler-te, em conhecer-te bem.
No dia 15 vamos estar juntos mais uma vez, e subimos mais um degrau que nos levará onde quisermos.
Acredita.
Abraço-te.
(sabes porque é que pouca gente comenta, não sabes? O texto é longo... O tamanho conta, eis a prova.)

Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 23/06/2010 00:55  Atualizado: 23/06/2010 00:55
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 Re: Jesus vive em mim
Excelente, como sempre. Uma vez disseste que eras o melhor poeta do luso. Eu digo que se não és o melhor, estás seguramente entre os melhores. Poeta e escritor.
Mas 59 segundos pá???

Beijo grande

Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 23/06/2010 02:25  Atualizado: 23/06/2010 02:27
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Mensagens: 3731
 Re: Jesus vive em mim
Este é mais um daqueles textos que nos deixa completamente plasmados, agarrados à tela do princípio ao fim.
É longo, é certo, mas se assim não fosse certamente que não teria o mesmo gosto que tem!
Concordo com o que diz o Torres, tanto na análise que faz da tua forma de escrita como no resto, mas aí só fica a perder quem não lê... azar o deles!

Eu, pela parte que me toca, ganhei aqui e à tua custa, um bom bocado de prazer ao ler-te.
Portanto, obrigado!

Beijo