Contos : 

AFINANDO O DAGUERREÓTIPO

 
Cidoca só queria mesmo era ver seu retrato na parede.

Quando olhava a fotografia de “Seu” Juca e dona Mariquinha, pendurada na sala ficava imaginando sua moldura ali. Ela de cabelos penteados, preso de rabo de cavalo, o rosto espelhado de pó-de-arroz e a moldura envernizada dando suporte no seu feitio.

Nunca teve coragem de falar com ele. Não tinha noção dos “cobres” que desprenderia pra fazer sua obra de arte.

Bem que podia falar pra “Seu” Juca: “Bah, pra que retrato? Desperdício...” Devia ser muito dinheiro. Caro, diria “Seu” Juca. Afinal, a domagem do aparelho era tão complicada quanto o pronunciar do seu nome: daguerreótipo! Mais parecia nome do Capeta, isso sim.

Da vez que Cidoca viu ele fotografando os dois patrões, ficou imaginando. Ele carregava o daguerreótipo encaixado na bicicleta. O aparelho criado pelo francês Louis-Jacques-Mandé Daguerre, no entremeio dos Séculos XVII e XVIII, consistia na técnica da utilização de uma fina camada de prata polida, como receptáculo da imagem que se fixava sobre placa de cobre, sensibilizada com vapor de iodo. Ficava tudo capturado ali dentro daquela caixinha quadrada, feita de metal, o que intrigava Cidoca, que não tinha nenhum entendimento de daquerreótipo e nem nunca ouvira falar dessas coisas. Sabia de nada disso e só queria um retrato na parede.

Desembrulhava o bichinho e o encaixava enroscado em cima de um tripé. Era uma maquineta de metal, com um fole de papel preto na frente, com uma lente de vidro, um rabicho com um dispositivo de arame de aço, pendurado de lado, fino, parecendo com uma seringa de injeção, que ele chamava de disparador. Meio simplório, não fosse o fole preto de lente de vidro na ponta. O tripé era de madeira. Preso com uns parafusos, desses de borboleta, que não precisa de ferramenta pra apertar, pintado de preto, era todo regulável. Ele mesmo o fizera.

Antes do momento exato de fotografar, desenvolvia uma intrincada cerimônia em volta daquela geringonça que mais parecia um bicho-pau, um louva a Deus. Era um ritual engraçado igual um bailado de ave na choca. Espichava o fole, encurtava o fole, regulava na borboleta, encurtava as pernas do tripé, fechava as pernas do tripé, tornava a abrir, desarrochava a borboleta, arrochava de novo. Observava de esguelha, com um olho fechado, através de uma janelinha na parte traseira da maquineta. Acertava cuidadosamente a cabeça de dona Mariquinha, voltava a observar de olho fechado...

- “Seu” Juca, agora o senhor. Vira a cabeça um pouquinho pra direita... isso... isso... a senhora fica quieta, não se mexa...

Jogava um pano preto sobre a cabeça e fazia a conferência final, agora era pra valer: PRONTO! Abria o compartimento traseiro do “daguerreótipo” puxava uma chapa metálica e avisava por fim:

- Os dois quietinhos; sem respirar! Olha o passarinho...

Pressionado o disparador, ouvia-se, um chiado feito ferro riscando em ferro e logo em seguida: CLAPT... Era o barulhinho da engenhoca registrando o instante final do milagre, do retrato.

Cidoca observava de longe. Não queria ficar assentada daquele jeito. Queria uma foto em pé. Sim, em pé, de corpo inteiro, queria o espectro da beleza e do milagre, registrado para sempre, no traço de suas faces arroxeadas de pó-de-arroz, no cabelo de rabo-de-cavalo, no detalhe da mão na cintura demarcando os quadris arredondados, do banho tomado, dos sapatos apertando os pés, da fita no cabelo e o olhar sério, guardado para a eternidade, para a lembrança dos que nem sabe se viriam! Ah... tudo ali, dentro do “daguerreótipo”, estojinho de nome estranho, mas de efeito delirante!

Não passava dois meses sem que ele pousasse ali no casarão da fazenda. Os retratos eram feitos fora, imaginava Cidoca. Aquilo era coisa de ser feita na cidade, por algum doutor. Mas ele mesmo os fazia. Voltava depois para a entrega, sempre carregando o seu daguerreótipo. Podia surgir a surpresa de uma nova encomenda. Não tinha outro na região, era o único.

Cidoca precisava de coragem. Talvez se demonstrasse curiosidade sobre o aparelho, talvez quando fosse arrumar o quarto onde ele dormia!! Tinha uns cobrinhos guardados e bem podia dar conta de pagar. Até porque, “Seu” Juca o tinha na sua confiança, e se precisasse fazer uma prestaçãozinha, teria crédito. Assim comprava rendas e fitas de Tião Norato, o caixeiro viajante da região.

Naquele dia ele chegou debaixo de chuva. Entrou no casarão, como gente de casa, que era, carregando o “daguerreótipo” embrulhado no pano preto. Tirou as botinas e caminhou pro quarto onde costumeiramente descansava.

Depois de preparar-lhe a janta Cidoca estufou o peito, criou a coragem que vinha acumulando desde tempos e puxou conversa, na intenção de fazer o seu pedido. Deixaria a proposta da prestação pra falar no final da prosa, se precisasse.

- Sô Zias, carece do senhor tomar um banho e vir jantar que deve de tá morrendo de fome. Num minuto preparo a comida pro senhor. Vô fritar ovo, o senhor vai querê que faiz ele mais mole ou mais duro?

Sem se voltar para Cidoca, enquanto cuidava de preservar sua ferramenta de trabalho respondeu-lhe na maior sem cerimônia:

- Ah... pode fazer três moles, três duros, o resto pode ser de qualquer jeito!

Cidoca não entendeu nada. Teria aquela fome alguma coisa a ver com um daguerreótipo? Fome do Capeta!!! Pensou. Deixou o pedido pra quem sabe quando!


Leia de Wagner M. Martins

FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira

UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho

Participação:

Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira

No prelo:

UM INTRUSO NO QUINTAL

(Publicado em “Fala, filho da mãe!!!”)
 
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wagner
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