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Ele (Insolência)

 
Ele (Insolência)
 
"(...)took me in your white dress like wind made human(...)
I married you under the roof how warm
the world was how unbroken everything became(...)"


Anis Mojganis, you came into my dream

Do veneno melífluo, expurga-o, o corpo, algures na seara esfumada dos cobertores. Pressinto-o.
Como usa a cantiga nos conflitos bélico-matrimoniais, o filho da puta nesses esquemas, por certo arquitectados unicamente por criaturas do signo de Vénus, sou eu. Não tens vergonha, escumalha da mais fedorenta estirpe, de maltratar a menina, de ousar, sim! ousar! diz-se bem, contrapor a deusa-mãe, aquela que te sustenta com tudo que pode destilar do seu suor, sangue e lágrimas, a toda-poderosa?

Não senhor. Quarenta e seis anos e nem um pingo de culpa. Que se foda, em bom e correcto português.

Quer dizer. Em tempos afagar-lhe-ia os, ainda que hoje parcos em determinados pontos, cabelos; no que interpreta sempre como uma tentativa de domar uma qualquer besta enraivecida.
Subir, subiria, ainda que apostasse esquartejar as plantas nuas dos pés nos estilhaços rombos, resultantes das granadas verbais gastas entretanto.

Que se foda. Com toda a combinatória e probabilidades, dentro de dois dias e meia manhã descerá, com os lábios gretados e purpúreos, a dignidade arrastada como a placenta do filho do meio, semi-expulsa e decomposta, presenteando-me com o olhar canceroso de remorsos recém-descobertos e uma inodora indiferença.
Nada comparado com o olhar primeiro e pré-primaveril, com que do muro caiado de cantos gregorianos e luminosidade etérea, sobre o qual mo lançou, foi meu o ímpeto de saltar não apenas esse, mas outros muros.

Escusado será dizer: a partir daí delineara-se o esquisso das suas níveas mãos, com traços de doura glória coroando as suas falanges, que desse por onde desse, haveria de ser eu a dar-lha.
Não o sabe, mas passei dias a escolher a malfadada aliança. De uma míriade de sonoras e ofuscantes constelações, de uma catadupa de exuberantes gemas que constavam nos mostradores,

É para a mulher? Antes fosse. Não, é para uma amiga. Sorriso de bom entendedor do outro lado do balcão.

prevaleceu a simplicidade, de uma zircónia encrustada num leito de límpido ouro, e as limitações de quem tem mais de coração mole do que de bolsa.
Ensaiei o discurso. Divaguei a noite toda, fingindo-me já no cais, passeei-me e cingi o ar em piruetas desconcertadas, em alucinação com o ventre que nutria e albergava já toda a minha asfixiante afeição: pelas pessoas, pelas casas, todos os limoeiros carregados de acidez e a irregularidade das pedras nas calçadas, as rugas das faces mais arcaicas, a serenidade ornada e ignóbil dos ciclos naturais. O mundo em flor, la vie en rose. O homem irreversivelmente transfigurado pela insanidade temporária.

Recusou. Alegou o carácter recente de uma união para mim já enraizada, nos jardins que possuo.
Ingrata.
Ingrata.
Foi tudo quanto lhe quis deixar. Uma palavra, uma arroba de frustração, raiva, fúria. Faça favor, é toda sua.
Virei-lhe as costas, dizendo-lhe telepaticamente que provavelmente viria mais tarde no domingo seguinte. Assentiu, em silêncio.

No domingo prometido, quem não aparecera fora ela. Durante vinte e cinco minutos, dilatados, e com prolongamento; durante uma era, infindáveis evoluções e revoluções, deixei-me ficar, contra o verde caduco do marco de linha.

Ingrata.
Ingrata.

Ainda hoje o é. Ainda hoje.
Subir, subiria. Mas continuaria impedido de, finalmente, reencontrar a rapariga que um dia deixei no cais.

 
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MEduarda
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Enviado por Tópico
Aninhas
Publicado: 07/07/2011 20:25  Atualizado: 07/07/2011 20:25
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Mensagens: 146
 Re: Ele (Insolência)
ora nem mais.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/07/2011 21:29  Atualizado: 07/07/2011 21:29
 Re: Ele (Insolência)
Seja muito bem vinda(haeremai) a este espaço de prosa e poesia.

quanto ao seu trabalho... estou de queixo caído! Ainda estou a tentar me recompor.

Mas la que gostei, gostei!

Beijo azul