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Esboços da consciência

 
As flores do jardim, receberam o sorriso de Esteves, que chegou primeiro e ficou sentado a escutar a melodia suave dos pássaros.

Miguel chegou:

- Então, companheiro, como vão as coisas? – disse Esteves.
Tinha começado, a chamar-lhe companheiro, com o carinho que já era um vinco certeiro entre ambos.
- Na boa, comandante! – a expressão que angariara, para se referir ao amigo, no mesma tonalidade de carinho e afeição que lhe tinha.
- O comandante vai fazer as malas e partir para outro quartel.
Miguel enrugou o sorriso; ao mesmo tempo que se acomodou no chão, com as pernas traçadas, mesmo em frente do homem maduro. A posição de atenção para receber a mensagem que se aproximava.

Esteves continuou:

- Glória quer ir comigo para a aldeia… sabe que eu lá sou mais feliz!
Ela aqui, já nada tem que a prenda. Estes meses não tem sido fáceis na digestão das saudades e a aldeia irá por certo ajudar a desvanecer as nuvens que se instalar no íntimo dela. Como podes calcular, eu regozijo, com o facto de voltar a sentir a terra entre os dedos e o verde a impregnar-me as veias.

Abrir a janela, na hora marcada, para o sol nascer e com o orvalho puro como companhia, brindar a um novo dia, com a taça erguida aos cânticos das aves.

- Vou ter saudades suas. – foram as palavras, arrancadas a ferros, da boca de Miguel.

- Companheiro, as saudades, não são um sentimento mau! – fez uma suspensão. – Só sentimos saudades, das coisas fantásticas da vida. Das pessoas fabulosas, que nos penetraram o coração e das sementes férteis dos jardins viçosos; nunca das ervas daninhas.

A saudade é a linguagem do amor.
Os instantes passam e as estrelas reúnem-se, para formar as nuances eternas da saudade. As estrelas contêm brilho; e o brilho é agradável ao olhar e ao coração. Os segredos saudosos, são também o piso da lua, a sua cor alva nas noites escuras.
Nunca um traço negro formou uma estrela ou se enquadrou nos raios lunares.
Por isso, companheiro, não penses que a saudade é tristeza, sorri com ela e para ela.
Essa saudade, irá entregar-te ao âmago, quadros e quadros de aguarelas, nos vínculos futuros.
O amadurecimento é construído, por flocos de saudade, que lhes incutem o sabor agridoce, aquele que é o mais sublime paladar, quando o soubermos apreciar.
Quando a saudade é um lamento, só rios poluídos, correm no vórtice do olhar e a cegueira, é o tropeço dos lábios, sempre frios e doridos nos fios do destino.

Miguel tropeçou o olhar numa lágrima que sorria no rosto. Ergueu-se e colocou-se ao lado de Esteves, sentado no banco. O homem assestou as rugas da mão na mão macia do jovem…

Continuo:

-Todos os quadros são pintados, primordialmente no âmago, só depois na tela, que será exposta no exterior, onde todos a poderão apreciar. Contudo se o nascimento interno não acontecer, a tela será sempre um fundo branco que ninguém vislumbrará ou criticará, jamais…

Miguel deixou as mãos ficarem unidas, e outorgou a emoção destas palavras, para se aprofundarem na mente.
Esteves entregou o rosto ao silêncio, com a férrea certeza que o quadro seria um tesouro futuro, uma criação à altura da sensibilidade que conhecia no jovem. Em Miguel tudo ainda era um esboço. As tintas, um colorido múltiplo que o amanhã lhe daria a convicção, para que o pincel se movimentasse em plena liberdade sem medo.

- Comandante, o navio está pronto e a hora de zarpar já se faz ouvir no horizonte! – disse Miguel, com o sorriso a alimentar as lágrimas que se cristalizavam na íris.
- A postos, companheiro. – respondeu Esteves, enquanto levava a mão, ao topo da cabeça a fazer continência. - A viagem é curta e podes sempre trilhar o mesmo caminho para me visitares. Aliás; espero que seja em breve. – continuou, já com um tom mais verídico e emocional.







Ana Coelho
Os meus sonhos nunca dormem, sossegam somente por vagas horas quando as nuvens se encostam ao vento.
Os meus pensamentos são acasos que me chegam em relâmpagos, caem no papel em obediência à mente...

 
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AnaCoelho
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