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Da miséria

 
Longe vão os tempos em que as aldeias fervilhavam de vida. As casas estavam cheias de gente que trabalhava nos campos, alegre, pois não conheciam outro modo de vida e os seus desejos de ambição resumiam-se às colheitas fartas que assim afastavam o espectro da fome. Mas havia fome, muita fome! Estou a falar de um tempo antigo, do qual ouvia histórias de sardinhas divididas por três, de côdeas de broa untadas com banha a servir de manteiga, de castanhas piladas cozidas quando as batatas já se haviam acabado e de refeições em que a malga era só uma e se colocava no meio da mesa (quando havia mesa e no caso de não haver, de roda do bordo da fogueira, ao borralho), onde a família comia em silêncio depois de dar graças ao divino por mais aquela refeição... o silêncio da refeição não se devia ao não terem que dizer, mas sim ao tempo que perderiam se ocupassem a boca com palavras em vez de mastigar o quinhão que lhes cabia. As batatas eram cozidas com a pele por via de não desperdiçar nada. A broa, muitas das vezes, mesmo dura, era o único conduto que havia.
As crianças pequenas (canalha) eram deixadas na rua todo o santo dia, entregues a elas próprias, enquanto os pais e os irmãos mais velhos cuidavam do renovo e das colheitas. Certa vez, contava o meu pai, numa tarde em que a fome começava a apertar, convenceu o amigo de brincadeiras, a escalar a parede do velho casebre onde ele sabia, estar pendurado na trave, o cesto das sardinhas trazidas na véspera, do mercado de Côja. Haveriam de durar quinze dias, não fossem eles lá pesca-las e tratar de as assar nas brasas da fogueira...
Uma valente tareia, foi tudo o que restou do episódio, para além da barriga cheia, é claro, e de uma história para contar aos filhos e aos netos, se bem que estes últimos tenham tido dificuldades em acreditar, visto que nada lhes falta e não conhecem as consequências da palavra miséria, ou, se calhar, nem a própria da palavra.


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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cleo
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Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 15/01/2012 02:36  Atualizado: 15/01/2012 02:36
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 Re: Da miséria
Adorei ler este texto Cleo! Lembra-me perfeitamente de ouvir os meus pais contarem histórias desse tipo: sardinhas para três, pão já bem duro que se comia na mesma, sopa que era mais um caldinho, a barriga a dar horas e tantas outras coisas. Nós ainda sabemos algumas coisas, porque ouvimos contar na primeira pessoa, na maioria dos casos, mas os nossos filhos realmente acho que não sabem nada sobre miséria... E ainda bem, se bem que com os tempos que correm têm mesmo que aprender a poupar mais um bocadinho.

Um beijo grande