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MAIS UM ASSALTO NAS BOCADAS BRASILEIRAS

 
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Gê Muniz

MAIS UM ASSALTO NAS BOCADAS BRASILEIRAS


- Quietinha, velhota. A casa caiu, madama!
- Como assim? Aonde caiu? Além do mais que nem em casa estou... Como caiu então?
- Quer levar uma azeitona nus corno? Qualé, dona, num tem noção do perigo, não? Isso é um assalto, porra! Tá surda?
- Eu ouço até melhor que o senhor. Foi você quem começou com esse negócio de “a casa caiu”. Não tem nenhuma casa para cair por aqui, meu jovem. O senhor está vendo alguma, mesmo de pé?
- É o meu jeito “funk” de trocar as idéia, dona madama. Num tô aqui para entrar nas isculástica, com a dona madama. Agora, passa logo a porra da grana, as jóia, os relógio... Passa, passa tudo!
- O senhor não tem educação, não? Assim, nesse tom imperioso me recuso a atendê-lo. Não é porque o senhor é assaltante que precisa ser grosso.
- A madama não tem o menor amor à vida, né? Num tá vendo aqui na minha mão esse ferro (mostra o revólver)? Num é surda, mas pelo jeito é cega... Aqui eu num peço, eu mando, porra! E chega de lengalenga, pode ir passando os ouro...
- Aí justamente está o problema.
- Que pobrema, madama?
- O “pro-ble-ma”, o senhor precisa aprender a se expressar para se fazer entender. Na marra como o senhor quer fazer comigo, sem explicar nada, sem justificar essas atitudes, usando termos incompreensíveis como este em que a casa caiu, não vai chegar a lugar nenhum.
- A dona madama tá me irritando... Eu nunca fui pra escola pra aprender a falar como a madama quer. Meu revórvi exprica pra mim tudo o que a madama precisa sabê, porra. Agora, passa a merda da grana, caralho.
- Eu ouvi bem o senhor dizer, cara... cara...? Olhe aqui, eu sou uma senhora de quase 70 anos, se bem que não aparento é verdade (passa a mão ajeitando o cabelo)... Mas não estou acostumada com esse palavreado chulo, tanto que nem consigo repeti-lo. Só não lhe aplico uma bolsada bem-dada na cabeça porque o senhor disse que nunca foi à escola e por isso eu lhe tenho certa piedade e até lhe perdôo, mesmo porque o senhor nunca aprendeu nada nessa vida de valores que realmente prestem. Mas comigo não violão, o senhor tem que me respeitar sim e pedir desculpas pelo palavreado. É o mínimo para a gente continuar se entendendo... O senhor quer ou não quer me assaltar?
- (pausa de 5 segundos com os olhos direcionados para o céu) Ai, puta merda, onde que eu fui amarrar minha égua... A madama é muito da doidinha mesmo. Nem vô discutir pra não perder mais tempo. Vai, lá: Olha, madama, me desculpa, eu sou desbocado mesmo, positivo? Num tenho berço. Faz um favorzinho pra mim? Dá pra madama me passar todos os seus bens de valor? Eu podia tá trabalhando, eu podia tá vendendo “bunginganga” na rua, eu podia tá até pedindo esmola, mas eu tô mesmo é aqui na bandidagem porque sou assaltante de berço e quase analfabeto. Só sei ganhar a vida praticando roubo pra sobreviver. Agora, me dá uma força aí, madama e libera o patrimônio...
- Humm... Mas isso melhorou mil por cento! Nem parece mais aquele homem bruto que chegou cheio dos gritos e envolto em violência uns minutos atrás. Mas que belezinha (aperta as bochechas do assaltante)! Assim até dá gosto a gente ser assaltada. Aposto que se o senhor usar essa abordagem nos próximos assaltos vai aumentar em muito a sua renda...
- Pode ser madama, bom que a senhora gostou. Agora, de boa, passa o que eu pedi.
- Tá bom. Espera um instante mocinho (pega a carteira, tira o dinheiro e conta). Olha, aqui tem 250. Eu vou ficar com uma nota de 50, ok? É que eu preciso comprar ração pro Juraci, o meu gatinho e pra ele eu só compro da melhor...
- Putz, só pode tá de comédia comigo, madama. Eu vou levar tudo, tudo! Porra, quem tá no comando aqui? A madama quer me desmoralizar, assim num é possível. A madama já viu um assaltante nesse mundo dividir com a vítima o produto do roubo? Isso é a esculhambação total do profissional porra...
- É. De fato eu nunca vi. Mas bem que o senhor podia ser o primeiro, o pioneiro. Bem que o senhor podia inaugurar uma forma mais humana de praticar os assaltos dividindo parte do roubo com a própria vítima. Olhe que coisa bonita: repartir! Imagine o sucesso fantástico que o senhor iria fazer. Acho que até em jornal o senhor iria sair: “o Robin Hood moderno”.
- Eu não quero ser famoso, madama, prefiro a minha parte de sucesso em cacau mesmo. Mas se a senhora não contar pra ninguém, eu deixo de boa uns vintinha. Se vira aê pra comprar o rango do bichano com essa grana.
- Mesquinho!
- Mesquê... o que?
- Eu disse mesquinho, sovina, pão-duro!
- Ah, pão-duro, caiu a ficha... Olha, num sou isso aí não madama, qualé? Vai pergunta pras minhas nega se eu recuso algum mimo pra elas! Caraca madama, fica então com os tals 50 paus, porra! E nem minha nega a madama é! Tô começando a variar das idéias, num é possível...
- Isso, o senhor é mesmo um cavalheiro. Tem mais uma coisa: o relógio eu não posso dar. Foi presente de noivado do falecido. Isso num tem acordo.
- (nova pausa com olhar para o céu) Na boa madama, me passa a corrente de ouro e tá liberada. Fica com a porra do relógio. Já disse que não sou pão-duro...
- (pausa para pensar) Quer saber? Vou lhe doar o relógio. O falecido nunca foi bom marido mesmo. Já está mais do que na hora de enterrar de vez as lembranças desse maldito (tira o relógio e dá). Na verdade o senhor me faz um grandecíssimo favor por me ajudar a me livrar disso. Agora... Já que o senhor não é mesmo pão-duro e lhe dei o relógio, vou ficar com a corrente, tá?
- (irritado) O mais valioso, madama? Aí num tem acordo. Vai me passar a corrente sim. Assim a madama me quebra as pernas!
- Tá bem, tá bem... Então vamos fazer assim: nem para mim, nem para você. Eu lhe entrego o cordão de ouro que posso comprar outro, mas fico com a medalhinha da Nossa Senhora Aparecida que ganhei do meu pai quando era criança.
- Porra, tudo bem, madama, a senhora é jogo duro, mas vamos acelerar agora, que os cana pode baixar...
- Pronto! (Tira a medalhinha). Tome a corrente. Bom... Então é isso... Transação acabada.
- É isso madama... Tá liberada, foi até bom fazer negócio com a patroa. Agora madama, de boa, nunca pensei que ia falar isso, mas vai: vê se não marca bobeira e pára de passar por aqui nesse horário. Essa bocada é perigosa pacas e a madama já tem certa idade. Se continuar passando a casa vai cair de novo...
- Olhe meu filho, obrigado pelo conselho. No fim acabou sendo um prazer ser assaltado por você, tão carinhoso, tão preocupado com a minha saúde... Eu podia ter pego um assaltante inflexível, sem moral, mas Deus me mandou justo você que tem esse bom coração... Se quiser bater um papinho amanhã eu venho para o “footing” neste mesmo horário, viu? Venho até sem bolsa para você não cair em tentação...
- Prefiro que não, madama... Não posso misturar amizade com trabalho. A dona entende, né? Mas fica a dica. Brigadão pela força.

(e a velha senhora afasta-se embora de coração apertado. Não pelo fato de ter sido assaltada, mas por estranhamente ter se lembrado da sua frustração do filho que nunca teve. Já o assaltante nem percebia com nitidez, porém, de alguma forma, encarava um inconsciente lamento por nunca ter tido mãe)

- Gê Muniz
 
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