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A janela de Amaralis

 
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Doze semanas. Doze semanas em que contei todos os dias, todos os minutos, todos os segundos desta inexistência. Doze semanas em que a luz se reteve por detrás da cortina do tempo, em que o sol não me afagou a pele.
Doze semanas, Julião, desde aquela manhã em que fechaste, obstinado, a janela ao nosso rio. Em que me deixaste a olhar o desabitado da solidão com uma frase sem nexo “estou mal disposto, até logo…”
Sim, tentei ainda, desesperadamente, que a ventania não quebrasse vidros e caixilhos, tentei ainda que os fechos permanecessem afinados, que todos os teus gestos futuros se realizassem sem esforço.
Embrulhei o sal das minhas lágrimas na esperança vã de que o dia de hoje pudesse fazer esquecer o dia pretérito. Busquei dentro de mim, forças que não sabia ter, concertei cadeiras antigas e sentei-me, em espera, dia após dia, noite após noite. Esperei que a ventania dentro de ti amainasse e que, voltasses.
Não te diria uma palavra, não buscaria razões, não estenderia um só dedo para te acusar. Mas estenderia o corpo inteiro para te abraçar, Julião … para te abraçar.
O amor, Julião, é isto, sabes? É entender razões onde a razão as não encontra.
O amor, Julião, é ser maior que a dor, maior que a mágoa. E eu, acredites ou não, amo-te, amo-te como nunca julguei ser possível amar alguém. Não porque me ames, mas porque EU te amo. E esse sentimento, de tão intenso, basta-me. Alimenta-me e mantém-me viva, em espera.
Doze semanas … Fechei o que de nós resta lá no fundo do baú e tento (tento, Julião) seguir em frente, sem o calor virtual da tua mão. O frio retorceu-me a alma, encarquilhou-me o pensamento. Não consigo sequer trabalhar, não consigo produzir nada de que me orgulhe. Onde foi que me perdi, Julião?
Os cabelos, cada dia mais brancos, cada dia mais longos, aguardam o afago dos teus dedos, a boca espera a tua. Esperará para sempre, Julião. Doze meses, doze anos … doze séculos (que importa o tempo???).
Um dia, naqueles dias em que as distâncias não ecoavam dentro de nós, perguntei-te: “Julião … não me deixarás de novo, não me deixarás nunca? (era tanto o medo, o medo que não soubesses entender o rio - onde Lampreias desovavam e o Sável crescia - esse rio mesclado e tão nosso, que,impetuoso, corria virgem em nossa janela…). “Não, Amaralis … nunca mais te deixarei”… ainda te disse: “és um pilar em minha vida, Julião, és o meu muro, a minha sustentação!”… sorriste: “tonta, és tão tonta”…
Deixaste, deixaste-me como um farrapo sem préstimo, um pano amarfanhado… Deixaste-me e fugiste. Fugiste do que estava a crescer dentro de ti e que não conseguias mais controlar.
Naquele dia, Julião, julguei que o mundo se fechava ao meu redor. Julguei que, definitivamente, apenas o rio ali ao lado aguardava por mim. Nada, sabes, nada, me fazia sentido. Tu eras o meu sentido, a razão pela qual eu havia renascido e, contudo, de ti não mais recebi que um amor intangível, sem toque, sem forma física… Se existe? Afirmo agora, categoricamente, que sim. O amor a Deus, também não é palpável, não é verdade??? Amar é algo tão sublime que só quem é abençoado com essa ventura pode falar dela. E eu fui, Julião. Encontrar-te, foi, na vida, um dos melhores presentes que alguma vez recebi…
Todos os lugares me falam de ti: este, mais que qualquer um, mas todos! Os momentos em que a tua voz era o meu mundo, em que bebia embevecida cada palavra, cada acorde, cada mimo ou ousadia (nada me parecia demasiado, nada era por demais ousado, nada, Julião… sabia-te louco “louco varrido” e desejava-te infinitamente louco, independentemente de toda e qualquer condicionalidade, de toda e qualquer norma social ou outra). Desejava mimar-te, acarinhar-te, cobrir-te de ternuras e de afectos. Sonhava, adolescente, com coisas infinitamente pequenas – um livro, um poema, uma música -, o meu corpo no teu colo, a tua cabeça no meu regaço. Desejava entrelaçar os meus dedos nos teus dedos, Julião … a minha na tua vida. Para sempre! Ainda que à distância, ainda que só, na virtualidade deste amor. Pouco me importava. Saber-te do outro lado da janela era-me suficiente. A janela ...
Não, Julião, não era sexo que procurava (seria tua, se fosse o caso, porque te amava…), mas não, de todo não. Amei-te desde o primeiro segundo em que as nossas asas se roçaram na imensidão de um mundo que desconhecia. Amei-te sem te conhecer a forma, o cheiro, a textura da pele, o jeito do olhar ou talhe de andar. Amei-te depois, mais ainda, dia após dia, mês após mês. Aos poucos ganhavas feição. (Re)conhecia-te variações de humor, mudanças temperamentais… e tudo amava. Tanto, tanto!
Confiei-te a minha vida, Julião. Por ti, por nós, enfrentaria o mundo. Por ti, por nós, escancarei o horizonte e fui mais eu. E fui tua, na alma e no corpo, sem que entre nós se gerasse físico contacto; e porque, como sempre afirmei, só conjugo o verbo amar num tempo – eternamente -, amo-te para sempre… para sempre!

Conduzo, chove! Cada espaço desta estrada me fala de ti. Das vezes (tantas e tantas) em que estanquei o carro na berma do alcatrão e te liguei. Das vezes (tantas) em que me desligaste o telefone, em que a chamada “caiu” ou que (se de maré) me atendeste com um sorriso e um “olá…” ou um “olá querida”… ou ainda “ ia-te ligar agora mesmo, Amaralis, tive um dia de cão …” Depois, Julião … o mundo lá fora não existia mais, nada mais existia. Nem sequer a distância de mais de 500 Km que nos separavam. O meu mundo eras tu, Julião … em alta voz dentro do carro, ou, ao meu ouvido, fundido no meu ouvido (onde te guardo para sempre) … o meu mundo, Julião eram as tuas palavras, os teus sorrisos as tuas loucuras e as minhas (tão loucos, meu amor, tão loucos …) “… és louca, Amaralis” … “sou? E tu, Julião?” … Rias… , "semos querida” … semos, gosto de tu …"Brincavas com as palavras… e até isso, Julião, eu recordo nesta hora, nesta saudade de ti.

Conduzo, chove… não vejo nada lá fora, nada, sabes? Faço os 50 Km que me separam de casa sem saber de estrada … maquinalmente. Chove em mim para sempre, hoje, como em todos os dias destas doze semanas de solidão. Chove! Chove tanto, em fio e logo em pranto … Puxo o teu número da memória do telemóvel (ocultei o meu… Julião, necessito de ouvir a tua voz, uma última vez que seja, uma última vez) …

- Nada a fazer, esta vinha desgovernada, enfiou-se de frente… passou todos sinais vermelhos lá atrás e o separador central … vinha alucinada…
- A identificação, procurem a mala dela, malas de mulheres, só tralhas … deve ter ai o telemóvel… verifiquem para quem ligou … Julião Pedrosa! Quem será?... Bilhete de Identidade … Amaralis Costa Macedo, 46 anos, casada … Natural de Alcácer do Sal

- Senhor Julião Pedrosa?
- Sim, quem fala?
- Brigada de Transito de Setúbal, desculpe, conhece a Dª Amaralis Costa?
- …
- Conhece? Pode dizer-nos a morada da senhora… aconteceu um acidente, ao Km 20 …
- … não, não conheço ninguém com esse nome…

Doze semanas, Julião … Chove! Atende Julião, por favor atende, necessito de ouvir a tua voz … por favor, Julião … Para sempre!!! Amar-te-ei para sempre! Adoro-te Julião … atende …

in Colectânia "Contos de Mulheres" ©



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Autor
Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 14/02/2008 12:03  Atualizado: 14/02/2008 12:03
Membro de honra
Usuário desde: 04/10/2006
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Mensagens: 4098
 Re: A janela de Amaralis
Mel... estou sem palavras...

"O amor, Julião, é ser maior que a dor, maior que a mágoa. E eu, acredites ou não, amo-te, amo-te como nunca julguei ser possível amar alguém. Não porque me ames, mas porque EU te amo. E esse sentimento, de tão intenso, basta-me. Alimenta-me e mantém-me viva, em espera."

Penso que esta frase deonstra bem o que é o Amor em si. Amar por amar, sem nada esperar em troca...
A Amaralis teve um fim trágico e nem depois da morte ele a mereceu.
Mel... deixaste-me um nó na gargante. Está muito bem escrito e esta história bem pode ser verdadeira...

Beijo grande e OBRIGADA! Foi um grande momento!