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Terceira e Última Parte de DO OUTRO LADO DE UMA LENDA

 
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Cont.

Por que estava tão nervoso assim? Logo ele, moço extrovertido, experimentado nas lides com o público em geral, gente de todo nível e faixa etária. Aquela moça morena, bonita, de fisionomia doce e gentil, o intimidava por alguma razão. Talvez fosse por causa do mistério que a envolvia, refletiu inquieto.

Nem mesmo José Antunes, fazendeiro arrogante e orgulhoso que espezinhava a quem julgasse seu inferior, lhe metera medo tempos atrás, ao lhe acusar pelo sumiço das obras raríssimas que havia doado a Biblioteca, a pedido da filha, antes de seu falecimento nesse mesmo ano...

Jovem generosa, amante da poesia e da literatura, vivia reclusa em sua bela casa, com os pais, por causa de enfermidade grave que acabou por levá-la para outro mundo, precocemente. A esse pensamento, um frio sobe-lhe pela espinha dorsal e num gesto rápido faz o sinal da cruz. Não a conhecera pessoalmente, mas sabia pela gente do lugar, de todas as bondades que a única filha do fazendeiro realizava em favor dos mais necessitados de Ribeirão Verde.

Defendeu-se cara a cara com José Antunes, à altura, enfrentou-o ante a acusação de roubo, de desvio das tais obras. Por fim, depois do conflito, o homem não voltara a importuná-lo. Não soube mais nada a respeito dele. Talvez tivesse se mudado da cidade.

Sentira-se um pouco cansado, não queria mais pensar no assunto. Uns dias de férias lhe faria bem, para recompor-se após nefasto acontecimento, de vergonha para ele, que se tratava de um rapaz integro, probo, de comportamento reto, na vida e na profissão. Para substituí-lo, a diretoria da entidade, designara uma professora aposentada, respeitável senhora, da confiança da diretoria.

Lembra que quando retornara das férias, fora preciso firmeza e muita diplomacia para afastar a sua substituta, pois, que a mesma se negava a ceder-lhe o lugar, que ele julgava seu de direito. Quanto tempo se passara desde então? Não cogitava mais disso.

Imerso nessas lembranças sentia que aos poucos a calma voltava, e já se sentia pronto para uma abordagem àquela moça que ao mesmo tempo temia, quanto o atraia. É quando ouve a doce voz vinda do interior da sala, convidando-o:
- Entre Oswaldo, estamos a sua espera.

Uma bomba sobre a cabeça, não teria surtido o mesmo efeito.

O calafrio que percorrera o seu corpo, os pêlos eriçados, e o intumescimento da musculatura das pernas, era por demais paralisante, impedindo-o de debandar dali o mais rápido que pudesse... Só não contava com aquela força poderosa que o atraia para dentro do salão de leitura.

Não foi sem espanto e estranheza que deparou com um grande número de pessoas de pé, olhando em sua direção, com expressão de simpatia e bondade.

Reconhece, surpreso, cada um ali presente. Escritores e poetas conhecidos seus, através das inúmeras obras que manuseara, nas imensas prateleiras impecavelmente limpas e organizadas. Autores que conhecia, pelas leituras que fazia noite adentro, mergulhando nos contos, histórias e poesias.

Quanta vez não citara seus nomes e seus trabalhos para jovens e crianças, objetivando a divulgação de tão belo trabalho da literatura brasileira e portuguesa? E agora, estavam ali, materializados em carne e osso, como se tivessem saído de suas próprias obras, em suas vestes originais, a sorrir-lhe, como bons e velhos amigos.

A sua frente estavam nada mais nada menos que Fernando Pessoa, Castro Alves, José de Alencar, Antero de Quental, Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Auta de Souza, Florbela Espanca, Manoel de Barros, Monteiro Lobato, Casimiro de Abreu, Guimarães Rosa, Bocage, Luis de Camões, Cecília Meireles, e com um belo sorriso, a atrair-lhe a Srta Morena Bonita, tendo fixos nos dele, os olhos profundamente negros.

- Quanto mais antigo é um fato, mais ele se mistura às lendas, não é mesmo, Oswaldo?
Conheço os acontecimentos relacionados com o desaparecimento das obras literárias doadas à Biblioteca, por José Antunes, no ano de 1990.

Parece que há um bloqueio em sua memória, pequeno detalhe do episódio naquele período em que tudo aconteceu. Lembra-se dele, agora?

Oswaldo empalidece. O que ela queria dizer com “bloqueio na memória”?Como se um estampido rompesse forte muralha, abre-se em sua mente uma fresta e, o bibliotecário constrangido, vê uma cena a muito esquecida. Ao receber na portaria da Biblioteca inúmeras caixas contendo livros, vinda da fazenda de José Antunes, pensara, naquele dia, que antes de organizá-los nas estantes da sala de leitura, pudesse lê-las uma por uma, adentrar àquelas obras raras, que somente a jovem Antunes tivera o privilégio de fazê-lo. Autores brasileiros e portugueses a quem admirava. Talvez tivesse sido um egoísmo seu apropriar-se de tais leituras antes do público, e depois da dona dos livros. Quanta honra. Irresistível tentação. Mas, dentro de pouco tempo, toda aquela riqueza literária estaria à disposição a quem desejasse lê-las. Depois dele, certamente.


Mas, muita gente visitava a Biblioteca em busca de tais livros. Ainda mais sabendo trata-se de doação da falecida, obras raras, de excelentes autores. Muita gente protestava por não encontrá-los nas prateleiras, e gritava à porta. Até que José Antunes, viera pra resolver tal questão.

Homem rude acostumado a resolver suas pendengas com violência, ainda mais que se encontrava inconformado, revoltado com a morte da filha amada, sentia necessidade de extrapolar os sentimentos feridos. E extrapolou!


- Estamos aqui reunidos com a finalidade de lembrar-lhe que é chegada a sua hora de deixar as suas funções – continua a moça com voz suave e firme. - A população da cidade não freqüenta mais a Biblioteca Municipal, nem os seus filhos, nem os estudantes das escolas.
A cada dia, vemos os livros apodrecerem nas estantes, principalmente nos dias que se seguem, com o advento da Internet, as bibliotecas parecem condenadas a um “santuário cultural”, infestadas de pó e pragas a devorarem as nossas mais preciosas obras. Precisamos revitalizar esse patrimônio cultural da cidade, e contamos com sua preciosa colaboração.

- Que eu... posso fazer...para ....a...judar? – murmura o homem, com humildade sincera.

- Aceite que outra pessoa o substitua. Se afaste da porta de entrada, onde insiste em permanecer dia e noite, cumprindo de forma obcecada uma tarefa que não mais lhe pertence. Temos uma nova ocupação para você em outros departamentos da vida, em que temos plena certeza, de que será efetivamente mais útil.

Meu nome é Elisa Antunes. Antes de falecer, no ano de 1990, comuniquei o desejo ao meu pai José Antunes, de doar todos os meus livros, da minha biblioteca particular à biblioteca da Ribeirão Verde. Há meses tenho vindo à Biblioteca, com o firme propósito de atraí-lo até mim, para convencê-lo a partir conosco, de livre espontânea vontade, convencido de que o seu prestimoso trabalho por aqui, não se faz mais necessário.

Nossos poetas e escritores vieram especialmente para acompanhá-lo, haja vista, a sua grande dedicação e divulgação de suas obras. Pelos cuidados e gosto pela leitura, foi considerado justo, conduzi-lo em sua nova ocupação, em outra “biblioteca” da vida.

Sua presença, caro Oswaldo, há anos aí na frente da Biblioteca Municipal, já se tornou uma lenda aos olhos dos habitantes de Ribeirão Verde. E é uma lenda “viva”, convenhamos, vivamente horripilante, que o senhor há de concordar, pois, que despido de suas vestes da matéria densa, ou seja, do seu corpo de carne, tem assustado e afugentado muitos leitores há trinta e dois anos, logo após o tiro certeiro do revolver do meu infeliz pai, que acabou por vitimá-lo. Assim sendo, muitos leitores dessa cidade deixam de conhecer o que tanto o senhor cuidou e divulgou.

Podemos ir, agora?

FIM



Maria Lucia (Centelha Luminosa)



Por não saber do brilho das estrelas,
alumio veredas dentro de mim


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Semente
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Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 28/10/2015 00:20  Atualizado: 28/10/2015 00:20
Usuário desde: 03/09/2012
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Mensagens: 18165
 Re: Terceira e Última Parte de DO OUTRO LADO DE UMA LENDA
Lúcia
Por esse final eu não esperava! Adorei!
Beijos!
Janna


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/10/2015 09:45  Atualizado: 28/10/2015 18:52
 Re: Terceira e Última Parte de DO OUTRO LADO DE UMA LENDA
Simplesmente maravilhoso, Muito me encantou,


Enviado por Tópico
Upanhaca
Publicado: 28/10/2015 12:02  Atualizado: 28/10/2015 12:02
Usuário desde: 21/01/2015
Localidade: Lisboa/loures
Mensagens: 8305
 Re: Terceira e Última Parte de DO OUTRO LADO DE UMA LENDA
Afinal, a misteriosa Srta, Elisa Antunes, era uma morta-viva que quis levar Oswaldo para outra face do mundo, será que conseguiu? É pena este conto ser aberto, não se conhece o fim do personagem principal (Oswaldo). Podia- se acrescentar a 4ª parte para fechá-lo.

Apesar de não conhecer o final, gostei do conto-parabéns.
Abraço!
upanhaca


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/10/2015 18:02  Atualizado: 28/10/2015 18:03
 Re: Terceira e Última Parte de DO OUTRO LADO DE UMA LENDA
Adorei!!!! Sério mesmo...gostoso de ler e com diversas mensagens entrelinhadas...mas uma me salta aos olhos...como é comum que após a desencarnação muitos espíritos não reconheçam o fato. Por vezes está tão claro, mas o apego à vida na Terra é tanto que não se percebe...e sem saber, sem qualquer intenção maldosa, obsidia-se pessoas ou lugares..." amai-vos e instruí-vos"...nesse caso, como é importante a instrução, como é importante entender quem somos nós...mas Deus envia os bons espíritos, e quando começa-se a "pensar", a refletir um pouco, nos tornamos hábeis em receber a ajuda...e mesmo que aqueles não fossem os próprios, aquela ajuda , naquele momento pode ter feito a diferença....Parabéns!!! Excelente texto. Beijo grande!!!!


Enviado por Tópico
Eureka
Publicado: 01/11/2015 11:58  Atualizado: 01/11/2015 11:58
Membro de honra
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Localidade: Lisboa
Mensagens: 4297
 Re: Terceira e Última Parte de DO OUTRO LADO DE UMA LENDA
Olá Semente,

Ora então, já li tudinho até ao fim.
Um final nada esperado para mim, mas que completou condignamente o conto " Do outro lado de uma lenda".

Ficou muito interessante e cativante. Fiquei a pensar se tudo o que escreveste foi ficção ou se tem alguma coisa real que te tenha levado a escrever o conto.

Gostei muito mesmo, e te dou os meus parabéns pela inspiração. Será que vais fazer outro ou outros contos ou histórias, narrativas, romances? Hein?

Acho que a Semente virou um lindo Girassol, neste momento - grande, lindo e cheio de cor, como só tu sabes ser em versos ou em prosa.

Muitos beijinhos querida

Eureka


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/11/2015 00:49  Atualizado: 14/11/2015 00:49
 Re: Terceira e Última Parte de DO OUTRO LADO DE UMA LENDA
Tenho que dar meus parabéns, é muito bom escrever e dessa vez você se superou!