Contos : 

Uma Janela para a Eternidade

 
Tudo começou há muito tempo. Mas tudo não começa assim? Quando as perguntas vêm mais fáceis que as respostas é quando você entende que ainda é a aurora de uma vida. Toda aurora encontra obstáculos, a minha também encontrou, como a luz ao nascer do dia, ainda fraca por natureza, encontra as altas e negras montanhas que procuram embarga-la. Toda criança tem uma peculiaridade, a minha pelo que me lembro, era perder-me no bosque até altas horas da tarde, quando então, a minha mãe mandava o cachorro ir me buscar, e ele sempre me encontrava entre a colina mais alta, e lá de baixo me lançava aquele olhar vívido e brilhante, tendo a calda a balançar com especial entusiasmo, como se houvesse passado décadas sem me ver. Então, eu já sabia que era hora de ir embora.
Essa é uma das doces lembranças que me alcançam ainda hoje. Dádivas, porque não se costumava ser feliz naquela época, e esse privilégio não era concedido nem mesmo às crianças. A guerra deixava marcas profundas, e o ser humano nunca mais fora o mesmo, mesmo para um menino escondido do mundo, que brincava perdido entre os ramos das árvores. Anos seriam necessários para reconstruir de novo a inocência das crianças, e porque não, dos adultos, e penso que isso só foi possível nas gerações posteriores, aquelas que nunca viram ou ouviram uma guerra.
Por isso, ainda diante de uma realidade tão contundente, sei que fiz o possível para manter viva a criança dentro de mim. Apesar do adulto que às vezes emergia reivindicando o seu lugar de direito, amargo e com os olhos trincados de lágrimas, eu sabia, lá no íntimo, que a criança precisava sobreviver. Disso dependia a minha própria existência. Eu procurei sufocar um, mas entendi com o tempo que os dois precisavam um do outro. Entendi que um braço forte era necessário numa estrada atribulada, mas é um olhar inocente que o mantem no caminho certo. De forma que um dia os dois aflorariam juntos, e então nunca mais eu os deixaria morrer.
A vida na fazenda era simples, uma doce simplicidade, que não apenas supria todas as minhas necessidades, como também me enchia com uma plenitude difícil de traduzir. E talvez por isso eu nunca tenha entendido porque os homens necessitam tanto complicar tudo.
A infância um tempo na vida da pessoa, em que todas as coisas são possíveis, em que se aceita tudo, pois ainda não cristalizou em si os alicerces da realidade. Eu poderia ter acreditado em Papai Noel naquela época, se eu não tivesse visto o meu próprio pai, antes de morrer na guerra, ridiculamente entalado na pequena chaminé da humilde choupana. Mas mesmo assim, tudo ainda era possível. Nunca realmente entendi o porquê das minhas visões de criança, se por eu ter vivido no bosque longínquo, ou se por eu ainda não ter determinado definitivamente em mim as regras da realidade imposta a um adulto. Mas o fato é que sim, eu via seres estranhos e pequenos, que entravam na casa a correr e brincar. E via luzes que cintilavam, vindas do nada. E até mesmo mulheres trajadas em vestidos brancos esvoaçantes com a sua longa cabeleira a cortar o corredor da casa. Mas isso tudo era normal, pois pra mim não havia nada de estranho. Fazia parte dos acontecimentos naturais da vida. E mesmo minha mãe, vez ou outra, dizia ver e ouvir essas coisas.
Nunca vou me esquecer, da noite de frio, em que uma nevasca terrível caiu sobre a terra, e embora o meu cobertor estivesse no chão do quarto, e eu com medo demais do escuro para pegá-lo, um pequeno ser semelhante a um gnomo, subiu na cama com um sorriso matreiro, trazendo com ele o meu velho cobertor e me cobrindo com carinho. Depois de uma piscada amistosa ele pulou para uma pequena janela de luz que abrira no meu quarto, para nunca mais voltar.
Lembranças como essa, e o doce amor que eu tinha pelos que eu amava, forjaram o que eu viria a ser posteriormente. Nunca fiz nada que não fosse por autêntico amor. Eu não saberia ser diferente, ainda que quisesse. É preciso dizer isso, para que entendam o que farei ao longo dessa história e os caminhos que irei trilhar nela. Nunca e jamais os bens materiais ditaram os rumos da minha existência e sempre vivi com um quê, de que nunca havia realmente saído daquela fazenda, se assim posso chamar aquele diminuto pedaço de terra perdido no bosque, e de que nunca perdera o doce e bucólico sentimento daquela inocência de menino. Por que afinal, eu iria querer perder isso?
Mesmo quando conheci a cidade grande, e o seu céu enegrecido pelo fumo e as suas pessoas de olhares vagos perdidas em suas ruas. Não perdi a essência dentro de mim. A impressão que eu tinha é que aquelas pessoas haviam perdido as suas almas, não sei para quem, mas haviam perdido. Eu trouxera a minha comigo. E as enormes e ameaçadoras chaminés das fábricas e o som escravizante do sino do relógio não a tomariam de mim.
Quando Azelda, minha mãe, morreu, eu não a vi partir. Minha avó surgiu do nada em pé na porta da cozinha, depois da minha escola, pegou o pequeno menino pelos braços e disse que agora ele iria viver na cidade, porque não havia mais nada ali pra ele. Foi então que eu entendi, sem saber como, que nunca mais a ouviria sorrir, como só ela sabia sorrir, quando sem querer eu deixava a água do balde da cisterna cair, quando eu, com o meu corpo franzino, demorava meia hora só para tirá-lo do fundo do poço. Ou dar um gritinho abafado, quando as rãs do lago, em épocas de chuva, tentavam invadir a casa passando por seus delicados pés de mãe.
A janela do quarto estava estranha aquele dia. Nunca houve nada lá de especial. Mas naquele dia estava mais vazia. Oca. Eu sabia que ainda havia algo dentro do quarto, mas não era mais a minha mãe. E de certa forma, eu não fiz questão de entrar lá dentro. Ela estava, e eu sabia, era dentro do meu coração...


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London
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