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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida -Parte 10

 
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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 10

Eram quinze horas em Lübeck; onze da manhã em São Paulo. Júlia estava diante do lap-top. Há dias enviava relatórios financeiros atualizados e planilhas detalhadas com balancetes de custos da igreja e, sobretudo, as doações arrecadadas. Embora fossem valores muito significativos, ainda estavam longe da meta estabelecida. Carlos Vinícius se impacientava cada vez mais. Após a assinatura do cessar-fogo entre as forças do governo e as forças antigoverno, havia pressão de todo tipo para que aquela missão começasse a apresentar algum esforço executivo. O "casal missionário do Sudão do Sul" era cada vez mais questionado em meio às igrejas. Já havia quem falasse em fraude financeira e mesmo em estelionato religioso!...

Desde a experiência inicial malograda, Júlia insistia que a formação de missionários fosse prolongada, pois, era preciso ter pessoas fluentes nos idiomas meridionais do Sudão, pessoas fluentes em árabe-Jaba e em inglês.

Júlia buscava a todo custo ganhar tempo. Pelas notícias que recebia, acolher os missionários, formá-los e enviá-los com segurança para os nichos pacificados pela ONU e pela UA era tarefa para anos. Pr. Carlos, contudo, parecia ignorar aquela realidade. Nem parecia que ele mesmo estivera em pânico diante da iminência da morte. Se os missionários fossem enviados pelo corredor humanitário que se negociava com os milicianos e com os exércitos que actuavam no extremo sul do território sul-sudanês, junto à fronteira de Uganda, talvez conseguissem estabelecer uma presença continuada na missão depois do fim da estação das chuvas, quando é impraticável transitar pelas péssimas estradas do lugar. Antes, impossível.

Mas o deus do Pr. Carlos era o deus dos impossíveis!...

A verdade é, pressionado, ele procurava aproveitar o breve estabelecimento com o governo de Uganda d’um corredor humanitário para criar uma base de operações da missão evangélica em solo sul-sudanês. Uma vez implantado como instituição actuante na região, o importante seria fazer o dinheiro assistencial chegar enquanto as tropas da ONU mantiverem a patrulha e a segurança em torno de Jaba, a capital, e das vilas adjacentes na Equatória Central. O acordado com as autoridades responsáveis pelo cessar-fogo na região e o estabelecimento do corredor assistencial era construção d'um hospital de campanha e uma escola infantil em Moyo, Uganda. A localidade escolhida para a construção igreja cristã pentecostal fora Kajo Keji, teria de funcionar primeiro em tenda e depois ser levantada em mutirão com as comunidades.

O plano, no papel, parecia bom. Na prática, a localidade de Kajo Keji fora seguidas vezes alvo de violência d’uma parte e d’outra entre 2015 e 2017… A bem da verdade, boa parte da população da região já havia se deslocado para Uganda, gerando uma grave crise de refugiados no norte d’esse país. Pr. Carlos escolhera o lugar sobretudo pela proximidade com Moyo, onde estivera pessoalmente e percebera um ambiente amigável às igrejas cristãs, com as mais diversas denominações cristãs ali presentes e prósperas. Nada parecido com sua experiência em Khartoum.

Pr. Carlos esperava levantar nos próximos dias -- mediante seus contactos na Europa -- uma soma capaz de pagar de os custos de transporte e de segurança privada -- Sim, a missão deveria manter um pequeno exército para viabilizar suas actividades, tanto em Uganda quanto no Sudão do Sul -- esperava, portanto, com as doações arrecadadas e com os missionários enviados do Brasil calar a boca dos pessimistas e maldosos que duvidaram d'ele e de sua igreja. Não havia tempo a perder.

O grupo de pessoas da igreja se dividia entre missionários, corpo assistencial, equipe logística… Totalizando apenas de 20 pessoas. A pastora viria chefiando a missão no Sudão do Sul, ao passo que Pr. Carlos estabelecia uma base logística na Uganda, cerca de quinhentos quilômetros distante da base missionária. O rei movia a rainha para a vanguarda enquanto se encastelava atrás das torres, tal-e-qual n’um movimento de roque do xadrez...

O tempo médio que um missionário passava na África variava de 12 a 20 meses. Raramente voltavam para outro período. A tensão de viver n'uma zona de conflito afectava as pessoas de maneira diversa mas profunda. Na prática era estar na guerra sem treinamento militar e sem armas. Inobstante, ainda era muito melhor que se estabelecer em Khartoum e atravessar um país hostil que só queria se ver livre d'aquele no men's land no centro do continente.

Desde que fora enviado para Lübeck, Pr. Carlos viera a Uganda duas vezes. Tivera muito sucesso no contacto com as igrejas cristãs do país e visitou campos de refugiados sul-sudaneses em Palabek, mantido por salesianos. Ao mesmo tempo, na Alemanha, conseguiu acesso a operadores de fundos missionários de várias instituições religiosas, além da promessa de ajuda de instituições assistenciais, uma vez implantado o pequeno hospital de campo.

Aquele era o Carlos Vinícius que todos conheciam e admiravam: O homem que fazia as coisas acontecerem.

Por isso, sobretudo, se impacientava tanto com os resultados limitados de Júlia. A atenção e as doações brasileiras eram fundamentais para que, uma vez estabelecido o corredor humanitário, sua igreja mantivesse a missão com recursos e novos missionários. Era preciso que fossem ousados para aproveitar a rara oportunidade. Tudo no Sudão do Sul mudava muito rápido. O cessar-fogo, negociado por meses e recentemente assinado pelos dois líderes beligerantes em Adis Abeba, na Etiópia, podia ser rompido a qualquer momento

-- “A situação do Sudão do Sul” -- explicara Júlia à Tereza n’um de seus encontros a sós -- “Era um caso típico do caos absurdo em que se transformara a África após a descolonização. Dividida em peças d’um quebra-cabeças o Continente tinha fronteiras totalmente arbitrárias. O Sudão, que havia sido colônia ao mesmo tempo de Egito e Grã-Bretanha tinha uma história recente de conflitos étnicos desde a independência do país, em 1956. Duas guerras civis sangrentas -- a primeira entre 1955 e 1972; e a segunda, entre 1985 e 2005 -- tornaram aquela parte da África um dos lugares mais pobres do mundo. Quando parecia que tudo melhoraria, com o processo de secessão que originou o Sudão do Sul, concluído em 2011, a guerra civil entre etnias agora do próprio Sudão do Sul; os dinka, do presidente Salva Kir, e os nuer, do qual faz parte o vice Riek Machar. A ONU, presente em quase todas as regiões do país, reconheceu que processos de limpeza étnica tem sido impetrados por ambos os lados por meio da fome, estupros colectivos e pelo assalto e incêndio de vilas… O resultado foi o deslocamento de cerca de dois milhões de refugiados e a configuração d’uma catástrofe humanitária sem precedentes no século vinte um. É para esse lugar que estou indo… -- Tereza lhe observou -- “E eu irei contigo!” -- mais uma vez, Júlia tentou lhe demover d’aquela ideia -- “Tens tuas filhas, Tereza, é muito perigoso”. -- mas ela insistia -- “Irei aonde fores, meu amor. Minha filhas ficam com minha mãe. Irei como missionária da igreja onde fui acolhida e que frequento. Tenho te acompanhado pelo Brasil e tenho muita experiência com administração e suporte logístico. Sou fluente em inglês e posso aprender o que for necessário. Não estou abandonando minhas filhas, estou seguindo com meu trabalho.” -- Júlia, porém -- “Não posso permitir que me acompanhes sabendo que podes morrer lá, meu amor.” -- ao que Tereza --”Tu também, Júlia!” -- e ela se calou.

Tereza a olhou nos olhos e disse -- “Irei aonde fores, a não ser que não me ames” -- Júlia comoveu-se às lágrimas -- “Eu te amo, Tereza. Mas não quero que morras por minha causa.”-- Agora Tereza quedou silenciosa. Após alguns minutos, ela se levantou e se encaminhou para a porta e disse -- “Eu estarei lá, pela missão ou não. Apenas será mais arriscado”. E saiu.

Júlia encarava seu marido pela tela do lap-top enquanto informava a adesão de sua secretária executiva, Tereza Dias, ao corpo logístico da missão. Relatou a sua importância nas viagens que realizou pelo país, bem como seu fervor pela igreja como fiel e ainda brincou -- “Parece que minhas palavras de esperança pela África encontraram eco em seu coração". Carlos Vinícius comemorou aquela novidade enquanto estabelecia como data-limite para a chegada do grupo ao aeroporto de Kampala, capital de Uganda, ainda em outubro de 2018, já perto do fim da estação das chuvas…

… e continua ...








Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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