Crónicas : 

Deus na terra, o Homem no céu

 
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Deus na terra, o Homem no céu
 
Na televisão anuncia-se um milagre . Os resultados de ecografias, e de outros exames médicos, faziam crer que a criança que se desenvolvia no ventre de sua mãe, apresentaria deficiências profundas à nascença. Os conselhos médicos vão no sentido de interromper aquele ciclo, abortar a imperfeição da natureza. A ciência coloca-nos agora essa possibilidade, alargando o leque de opções, todas elas resultando invariavelmente em perdas, nestas circunstâncias. Por certo, também aquela mãe, como qualquer outra, deseja concretizar o seu sonho de maternidade num rebento perfeito. Não há ninguém que deseje trabalhos acrescidos, cansaços culminados em esforço afectivo suplementar. Um dilema verdadeiro, angustiante nas emoções mais profundas que se podem vivenciar. Independentemente das motivações, que a natureza dá-lhe esse direito, a sempre difícil decisão foi de seguir em frente. À nascença acontece o milagre proclamado. Sem dúvida um verdadeiro! Aquela criança, contra todas as indicações, nasce e chora como qualquer outra. Vem-se a perceber mais tarde que a criança, não sendo perfeita, porque ninguém o é, terá um desenvolvimento normal. A mãe acredita piamente na intervenção divina de que fala com alegria. É certo que mereceu a reviravolta com que foi presenteada, depois de amargurar no seu íntimo, com todas as incertezas.

É fácil admitir esta possibilidade, não com a intervenção de alguma entidade que estala os dedos, mas com os recursos da natureza, bem maiores do que imaginamos. De qualquer forma, parece-me bastante mais plausível a falibilidade dos exames, e da sua interpretação médico-científica. Parece-me incrível que, no intuito de justificar as nossas crenças, coloquemos Deus na terra e o Homem no céu. Que se atribua à força, um milagre de última hora a Deus, corrigindo a sua própria perfeição, a mesma que os apresentadores apregoam! No programa, não se verificam possíveis erros na avaliação dos testes, ou falhas na sua execução, ou ainda as mais de mil e uma razões para que aconteçam enganos ou azares, a nós Homens ou aos processos que criamos, submetidos à nossa condição. É certo que a produção do programa, está determinada em demonstrar a sua teoria, e não a realizar uma análise profunda, sistemática e alargada. Sucintamente, o objectivo era, provar uma suposta confiança, que Deus colocara naqueles portadores da Sua verdade. Passar a ideia de que, quem aderir à sua crença, também será abençoado, e objecto das boas graças divinas, através da fé, e não raras vezes, através de alguns contributos.

Que esta subjectividade da realidade apareça uma vez, não me parece grave. Grave é que esta lógica se repita mais ou menos constantemente, ao longo dos dias. Que tanta gente esteja mal sentada, num sofá pouco ergonómico, a enfiar comidas imprestáveis pela goela abaixo, ou a afagar um cão que larga pêlo por toda a casa, passivamente. Se virmos todos os noticiários, julgamos o mundo como zona de guerra, quase inóspito, com atrocidades, cataclismos e hecatombes em directo, e lutas viscerais pelo poder. Se virmos publicidade, não teremos problemas, já que existem soluções para todos os anseios e dificuldades que nos possam apoquentar. Se virmos novelas, o mundo é dual, como na realidade, mas como azeite e água. Se virmos um filme de ficção científica ou policial, é um stress, mas não há problema, está tudo controlado, pois os argumentistas decretaram que “...aqui ninguém morre sem eu o dizer!”, e a seguir… vem a publicidade!

A televisão subverteu a verdade. Não a absoluta, mas a individual. Cada pessoa tem o espírito crítico suficiente, para construir o mundo de pequenas verdades próprias. É a diversidade de verdades, que dá à realidade um rumo inconsciente, mas natural. Pode-se falar de evolução, como a deslocação de um cardume, dando seguimento a uma vontade, eventualmente divina. A televisão formatou o íntimo de cada um, reduziu-o a um punhado de conhecimentos de cultura geral, misturados com projecções da imagem individual muito fashion, como se diz agora. A consciência de nós mesmos, é substituída por duas horas de fast-food emocional, sendo a chave para a realização pessoal, oferecida em pequenas doses pré-confecionadas. As imagens do nosso ego, deixam de ser baseadas na perspectiva própria das vivências do dia-a-dia, assumindo o estereótipo mais recente da televisão. Criam-se frustrações e insatisfações que nunca poderão ser superadas. Mas não há problema, a seguir vem a publicidade! E assim guiamos as nossas vidas…

Garrido Carvalho

Abril 2008


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