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Introspectus - Cap. 1 [O Encontro]

 
Às vezes minha memória me trai, mas não pelo fato de que eu não me lembre de algo ou de alguém em especial, mas sim porque me obriga a lembrar de coisas que eu quero esquecer.
Tudo começou a mudar num dia cinzento, chuvoso e triste...
Era inverno e eu me sentia terrivelmente só. Um grande vazio inundava o meu peito causando em mim uma contradição. Como poderia estar meu interior tão oco se estava tão cheio de vazio?
O vazio entrara na minha vida não fazia muito tempo; na verdade, ele foi bem rápido em entrincheirar-se, enraizando-se, tomando forma, dominando o máximo que podia, sempre em curto prazo.
Conheci outros como eu, muitos outros... eles ainda estão por aí, espalhados pelo mundo afora, arrastando-se numa vida escrava, sentindo-se impotentes diante de uma força que não compreendem.
Olhei pela janela e vi que a chuva forte parecia querer entrar no meu quarto. Em meio aos lençóis, estava agasalhada e protegida. Ainda havia o calor de uma imponente lareira. O tempo parecia não existir enquanto minha mente trabalhava vagarosamente, entorpecida por um resíduo de dor. Verifiquei meu braço e notei uma pequena marca roxa que parecia ter sido causada por uma agulha. Suspirei fundo sem ter idéia do que ainda me aguardava.
Estava cansada de sempre me perguntar como fugir de algo do qual não posso me esconder, afinal o vazio estava em toda parte e parecia que o ar estava impregnado por ele; é como uma doença com a qual se é obrigado a conviver. Quando somos alcançados por ele, nos envolve totalmente, nos tornamos infectados.
No momento, eu não via cura para o meu mal; não no meu caso. Quem sabe alguém, em algum lugar, tenha alcançado a liberdade? Um fio tênue de esperança teimava em sobreviver dentro de mim, apesar de nunca ter ouvido falar que tal situação tivesse acontecido.
Meus devaneios foram interrompidos quando a porta do quarto se abriu. Uma mulher de aspecto franzino surgiu. Estava muito bem vestida e dirigiu-se a mim sentando-se à beira da cama:
_ Sente-se melhor? Ainda confusa?
Antes que eu pudesse formular uma resposta, ela se apresentou:
_ Meu nome é Lyria e a partir de hoje sou responsável por você. Ao sair do hospital, você nos foi trazida por pessoas especiais, que se preocuparam com seu estado e querem que melhore.
Minha memória devia ainda estar comprometida, porque eu não conseguia lembrar de nada; minha mente estava vazia.
_ Desculpe, eu não entendo...
_ Não se preocupe com nada, sua memória voltará com o passar to tempo. Saiba que estará muito bem entre nós e há um futuro promissor à sua espera.
_Mas... como eu fui parar em um hospital? E quem são as pessoas que me trouxeram para cá? Que tipo de lugar é esse, afinal?
_Vejo que tem muitas perguntas...ótimo, é curiosa, isso é bom...! Bom, vejamos...você foi desenganada pelos médicos porque tentou o suicídio, ao que parece. Ingeriu muitos tranqüilizantes, acho que foram várias cartelas. Você ficou muito mal chegando à beira da morte, mas naquele hospital temos várias pessoas que trabalham para nós, que pertencem à nossa Ordem e uma delas - uma enfermeira - viu que você tinha um potencial espiritual muito grande e falou conosco a seu respeito. Eu pessoalmente fui ver seu estado e constatei que realmente sua condição não era nada boa, mas minhas ordens eram para que tirasse você do coma e restaurasse suas condições. Foi o que fiz. No dia seguinte trouxemos você para cá, portanto esta casa agora é o seu novo lar. Você experimentará algo que nunca imaginou e verá como é bom ser... digamos, diferente!
_ Agradeço muito o que fizeram por mim, especialmente você... mas eu realmente não tenho como pagar tudo isso. Não vou poder ficar...
_ Não se preocupe, sua fidelidade à nossa causa será o nosso pagamento; sua dedicação e esforço serão suficientes. Agora, levante-se e vá se vestir, não podemos nos atrasar. Belthar nos aguarda. – disse Lyria levantando-se.
Sobre a cama vi uma túnica comprida, preta, com mangas largas e ao lado dela, uma corda branca, parecida com um cinto, com borlas nas extremidades.
_ Quem é Belthar?
_ Ele mesmo se apresentará a você. Vamos, não se demore...- disse, me dando a entender que a conversa tinha terminado.
Saí da cama lentamente, ainda sem entender exatamente tudo o que estava acontecendo comigo. Notei que o quarto onde eu estava era bem espaçoso e ao lado da cama havia um grande tapete vermelho com detalhes em negro e dourado, assim como toda a decoração. Procurei evitar meu reflexo no espelho, pois sabia que minha aparência não estava muito agradável.
Arrumei-me da melhor forma possível, colocando a túnica e amarrando a corda na cintura. Observei que por dentro da veste havia um forro de cor púrpura, acetinado. Estava confusa e não conseguia pensar com muita rapidez, talvez ainda afetada pelo que quer que tenham injetado em mim, o que não ousei perguntar.
Lyria me aguardava do lado de fora e me olhou da cabeça aos pés, quando saí, me analisando. Eu ainda não sabia, mas ali, naquele lugar, qualquer deslize meu não seria propriamente meu, mas o dela, pois era sua responsabilidade agradar ao Mestre, deixando os iniciados à margem da perfeição e isso, com certeza, não era tarefa das mais fáceis.
Seguimos por um grande corredor e dos dois lados haviam quadros enormes pintados a óleo, bem antigos. Não reconhecia nenhuma daquelas figuras por mais que as observasse. Pareciam querer penetrar em minha alma, com seus olhos escuros e frios, mas seria demais da minha parte esperar um olhar acolhedor por parte de uma simples pintura.
Naquela casa os corredores eram diferentes e havia uma corrente de ar que incomodava, e era quase gélida, percorrendo todo o lugar.
“Atravessar corredores, definitivamente, não é meu passatempo preferido.” – pensei.
No fim do corredor havia uma escadaria toda em madeira escura, muito bonita, coberta pelo mesmo tipo de tapete que decorava os quartos. Sentia-me como um robô, com o automático ligado, mas estranhamente, não havia medo no meu coração. Lyria levantou a mão repentinamente quando chegamos aos pés da escadaria.
_ Daqui você segue sozinha. Suba e entre na primeira porta à sua esquerda. O Grande Mestre a aguarda, mas lembre-se... jamais o questione. Você agora pertence à nossa Ordem e faz parte do Grupo Primordial. Dentre todos os integrantes, você é a mais promissora. Seu destino é muito poderoso e por isso será treinada e instruída por nós. A partir de hoje, você será reconhecida na ordem por um novo nome: Aynnah. É de origem celta e significa alegria.
_ Mas por que tenho que mudar meu nome?
_ Ainda não entende? Você renasceu, é uma nova criatura, por isso seu nome antigo deve ser esquecido, varrido da sua memória, pois representa seu estado anterior, primitivo. Agora, você é uma de nós e em breve será iniciada.
_ Quem escolheu esse nome para mim?
_ Os “Eikons” escolheram seu novo nome quando passamos pelo corredor...
_ Eikons? Quem são? Lyria, eu não vi ninguém no corredor...
Lyria deu um pequeno sorriso e disse:
_ Tudo a seu tempo, Aynnah... tudo a seu tempo. Você entenderá.
Vi-me então sozinha diante de uma grande porta entalhada com o que me pareciam ser símbolos mágicos; senti um calafrio percorrer minha espinha, fazendo meu coração acelerar. Com certeza, tudo aquilo era uma experiência nova para mim. Ao fazer menção de tocar na porta, ela se abriu lentamente e uma voz ecoou forte:
_ Entre, eu a aguardava.
Obedeci, dando três ou quatro passos adiante. A pesada porta se fechou atrás de mim e confesso que por um décimo de segundo pensei em fugir.
Comecei a ficar ansiosa, mas quando olhei em volta, fiquei deslumbrada pois nunca tinha visto algo semelhante. O luxo e a riqueza impregnavam aquele local. Os móveis eram antigos, mas absurdamente lindos.
Grandes estantes abrigavam centenas e centenas de livros e a única janela estava coberta por uma pesada cortina carmesim com franjas douradas que pendiam desde o alto até a sua metade. O ambiente estava carregado, eu podia sentir; forcei meus pulmões a fim de respirar melhor e então senti aquele odor...meio doce, quase enjoativo.
Mais adiante, à minha frente, vi como que um trono bem grande que combinava com a cortina. O assento virou-se em minha direção e lá estava ele, o Grande Mestre.
Havia algo diferente em seu aspecto pois não me parecia um ser humano normal e sua roupa era um pouco diferente da minha. Apesar de também ser uma túnica negra, ela tinha bordados.
Meus olhos começaram a lacrimejar e os fechei. Quando os abri, percebi que ao lado do trono estavam criaturas do tamanho de um homem. Pareciam harpias e eu nunca tinha visto nada igual! Era fantástico! Como surgiram? Já estavam lá e não tinha reparado antes? Por que estavam ali? O Mestre pareceu sentir minha agitação interior. Olhando fixamente para mim, ofereceu-me a mão esquerda...ele usava um grande anel dourado e nele havia uma imagem gravada, um pássaro muito bonito.
_ Não tem o que temer aqui. Aproxime-se e toque minha mão.
Obedeci e ao faze-lo, senti imediatamente um calor muito intenso; Logo após o calor, me veio uma sensação agradável.
_ Ajoelhe-se diante da presença do seu Mestre.
Mais uma vez obedeci, pois parecia não haver resistência em meu corpo. Meus pensamentos ainda estavam confusos e só conseguia ouvir a voz daquele homem soando dentro da minha mente.
_ Aynnah, eu sou Belthar, o Grande Mestre da Ordem do Fênix. Desde o dia em que chegou aqui trazida pelos Recrutadores, fui avisado a seu respeito. Seu potencial é grande e não pode, de maneira alguma, ser desperdiçado. Sua vida lá fora de nada vale, mas aqui dentro suas chances de crescimento são incalculáveis. A Ordem do Fênix hoje tem seu valor e sua entrada nela é motivo de grande alegria para nós. De hoje em diante ocupará seu lugar e iniciará rigoroso treinamento imediatamente, pois há um novo patamar a ser alcançado.
Eu ouvia tudo e me sentia estranha. Como se conhecesse meus pensamentos, o Grande Mestre continuou:
_ Não é a quantidade de tempo neste lugar que ocasionará as mudanças, mas a qualidade do poder que você possui. Ele deve ser desenvolvido para ir além dos demais e aquele que é a fonte de todo o poder, o Supremo, vai usá-la intensamente no momento certo. Lyria será sua instrutora e com ela você aprenderá tudo o que deve ser aprendido e esquecerá tudo o que deve ser esquecido.
Com um rápido movimento das mãos, me fez levantar e senti que era hora de ir. Notei naquele encontro, que em todo o tempo, seus lábios não se moveram.
Quanto às duas criaturas, não tiraram os olhos de mim, em nenhum instante. Observavam-me e não tenho dúvidas de que me destruiriam se eu ousasse questionar o que quer que fosse.
Retirei-me do aposento lentamente. Aguardei as portas se abrirem e continuei andando para trás, sem dar as costas a Belthar.
Ao sair da sala, as portas se fecharam da mesma forma, mas no último instante, antes que se fechassem por completo, pareceu-me ver um vulto enorme por trás do trono do Grande Mestre.
Tendo em vista o que vinha acontecendo comigo ultimamente, já não era novidade ver o sobrenatural interagindo com o mundo natural.
Ao pé das escadas, Lyria me aguardava.
_ Pronta para um novo tempo?
_ Acho que sim. Não compreendo ainda a maior parte das coisas que estão acontecendo na minha vida, mas se faz parte do meu destino, que assim seja.
_ Que assim seja... Prevaleça sobre ti o desejo do Supremo. – respondeu.
Acompanhei-a escadas acima e não perguntei mais nada, pois um grande cansaço tomara conta do meu corpo. Estava exausta e as forças começaram a me faltar. Não conseguia pensar racionalmente quando voltamos ao meu quarto. Naquele momento eu só queria descansar, dormir profundamente.
Estava cativa enfim... física e espiritualmente.


Cláudia Banegas

Este é o primeiro capítulo de "Introspectus". A capa do livro pode ser visualizada no blog "Borboletando Poesia". Acompanhe a história de Aynnah, uma mulher vazia, que foi tomada pelo Vazio. Haverá esperança? Haverá uma saída? Quem sabe?

This is the first chapter of "Introspectus". The book's cover can be visualized at "Borboletando Poesia"
http://claudiabanegas.zip.net
Read Aynnah's history, an empty woman, taked by "Empty". There will be a hope? There will be a exit? Who knows?
 
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Cláudia Banegas
 
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