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morreu a revolução

 
ele gostava de saber rezar, abancar-se numa qualquer praça e pregar aos pombos. vestir um fato e uma gravata e levar com portas no nariz. gostava de saber fingir que acredita nele, naquele que descerá dos céus para salvar o mundo. ele gostava de ter fé, fé em alguma coisa mesmo que fosse nele próprio. era um céptico optimista e foi para ele que o jorge palma escreveu a canção. passeava todas as tardes pela baixa lisboeta, dentro do fato cinzento do costume, com a coleira na mão. alguns diziam que era cego, outros que era sem abrigo e ainda havia quem julgasse que era louco mas ele não se importava. ele assobiava cantigas dos tempos da revolução, aliás, ele era a revolução do abril de 74 em pleno outubro de 2008, chamava-se antónio e não gostava de andar de metro. não acreditava na evolução e os seus pensamentos vagueavam entre a morte de não sei quantos corpos num descarrilamento do metro e alguns, muitos, acidentes de carro, por isso andava sempre a pé. antónio era um homem do tempo antigo, usava botões de punho e barba densa, engraxava os sapatos todos os dias antes de sair de casa e guardava o dinheiro debaixo do colchão. nunca falava de sentimentos, nunca acreditou sequer na possibilidade da existência de tal coisa, ainda que os olhos lhe saltassem das órbitas todos os anos no feriado do 25 de abril. já contara a sua vida a todas as árvores da cidade, as únicas e verdadeiras amigas que tinha, e a sua vida resumia-a sempre àquele dia. acordou cedo para a vida, antes do galo cantar, vestiu o fato e calçou as botas prontas a estrear, depois desceu a rua pelo lado mais escuro e, já ao fundo, encontrou-se com um grupo de mais sete, daí foram até alfama onde os tanques já esperavam e o resto a história já reza. mas ele nunca soube rezar. um dia destes durante um dos muitos passeios pela baixa caiu-lhe o corpo contra o asfalto e alguns pombos alinharam-se-lhe no lombo, ninguém o socorreu. quando a noite caiu a cidade estava-lhe morta nos olhos arregalados. onde ficou a cadela antónio? morreu com a revolução.


. façam de conta que eu não estive cá .

 
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Margarete
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/10/2008 20:07  Atualizado: 15/10/2008 20:07
 Re: morreu a revolução
"Há que se enforcar o último frade com as tripas do rei", Ahhh, revolução...
Deixa pra lá...
O fato é que teu texto é simplesmente fantástico!
Muitos parabéns!
Beijão
Edilson


Enviado por Tópico
Bruno Sousa Villar
Publicado: 15/10/2008 21:29  Atualizado: 15/10/2008 21:29
Da casa!
Usuário desde: 09/03/2007
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 Re: morreu a revolução
Ninguém quer saber da revolução.
E dizem-se lusos...
São lusos são : luso-qualquer-coisa.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/10/2008 09:39  Atualizado: 16/10/2008 09:39
 Re: morreu a revolução
ando por aqui a comentar, por que gosto dos teus textos...
têm tanta vida dentro que ficam eles próprios fora deste espaço, precisam de ar e sair por aí fora, são quase autónomos, um feito que tomara todos saberem fazer, o que parece espôntaneo em ti...
ah, e já agora, belas fotografias que tens no teu blog, são histórias, sabes, muito bem contadas...
há muita arte por aqui...
margarete, sai de ti rumo ao mundo...

Abraço...


Enviado por Tópico
luísfilipepereira
Publicado: 16/10/2008 10:58  Atualizado: 16/10/2008 10:58
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Localidade: Lisboa
Mensagens: 15
 Re: morreu a revolução
Mar: excelente o teu texto. O modo exímio como encaixas a trama ficcional e modelas a personagem e a tornas redonda, plena de sentidos e de desentendimentos com o mundo, com o país, com o poder, com as ideologias. António fala com as árvores, o único verde esperançoso em que confia, a única verticalidade em cuja sombra acredita para poder levantar-se e seguir, sem rumo, "pelo lado mais escuro" até à perda do único ombro a fazer sombra com a sua sombra: o da cadela - revolução - morta com a revolução. E agora antónio? quem acariciará a tua sombra, quem lamberá tuas feridas, quem morderá até aos calcanhares gastos a tua sombra se te morreu a revolução?

Parabéns Mar

um beijo terno
luís filipe pereira
www.lippepereira.blogspot.com


Enviado por Tópico
António MR Martins
Publicado: 16/10/2008 11:16  Atualizado: 16/10/2008 11:16
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Localidade: Ansião
Mensagens: 5058
 Re: morreu a revolução
Margarete,
Escreve muito bem...e diz-nos coisas importantíssimas.
Chamo-me António, felizmente (ou não), não estou nas condições do enumerado no texto...mas conheço alguns Antónios (e muitos outros nomes) que o estão...a começar pela zona onde trabalho (Av.Almirante Reis, em Lisboa) e sou do tempo da Revolução. Muitos viram seus sonhos esfumados...e para outros, muitos outros (como o cão do António), a revolução morreu.
Considero o seu texto distinto, exemplar...e extraordinário. Serve, igualmente, para meditarmos, e tentarmos ver (mas com olhos de ver), a situação em que se encontram esses Antónios todos, deste país.

Beijos