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FLOR DE SAL (Excerto II)

 
RENASCER A SUL DO TEJO

Gouveia e Mello apenas conhecia da Vila onde fora colocado, e por via do seu pai, a fama do comendador Estêvão de Oliveira, homem afável, político respeitado e conhecido por todos por “Estêvão de Alcochete”. Por isso, havia tido o cuidado de procurar nos escritos algo da sua história, usos e costumes.

Já instalados na vila ribatejana, casa escolhida não longe dos Paços do Concelho, ficara a cargo de Maria Madalena o prover ao conforto e governo doméstico, com o auxílio de uma criada que com eles viera, enquanto Gouveia e Mello começava a dar os primeiros passos nas suas novas funções que, pelas primeiras impressões, lhe iria dar água pela barba, pois a situação financeira da Câmara era catastrófica e a organização dos serviços pouco mais que inexistente.

O relacionamento com o presidente da Câmara era bom, e depressa algumas medidas postas em marcha por sugestão do novo secretário, começaram a surtir efeito, não sem que, todavia, fossem deixando marcas entre alguns notáveis da terra e partidários do novo regime, sem que isso, pelo menos no início, parecesse apoquentar Gouveia e Mello, que no seu jeito de atalhar a direito, recuperou em pouco tempo muitas das dívidas que eram devidas à Câmara. Isso lhe dera fama de funcionário diligente e pessoa recta e íntegra.

Uma vez por semana, a família deslocava-se a Lisboa, à casa de família, na Baixa lisboeta, onde residia Dona Carolina, mãe de Gouveia e Mello, no barco a vapor que fazia a travessia diária entre as duas margens, atracando na ponte dos caminhos de ferro de sul e sueste no Terreiro de Paço, bem perto do destino, numa viagem que não ultrapassava os 45 minutos. Fora a maneira do secretário da câmara reatar velhas amizades e antigos hábitos de convívio, como a frequência do teatro e da ópera, para cujas récitas tinham camarote reservado, herança cultural que o pai lhes deixara. As livrarias e os cafés completavam o roteiro. Para Maria Madalena, no início, a grande cidade assustava-a: muito movimento, muitas lojas, muitos automóveis, muita gente a que não estava habituada. Também a vida social era diferente do que era uso nos lugares onde vivera: mais intensa e diversificada, não apenas centrada na casa, mas em família, ou com Dona Carolina e as amigas dela, habituara-se a tomar chá numa daquelas casas elegantes do Rossio ou Chiado. Apreciava sobremaneira os concertos que ocorriam com certa regularidade na cidade, chegando a sonhar – devaneio supremo para quem vivera, onde vivera e como vivera - que talvez pudesse ter ido mais longe no domínio do instrumento a que devia as melhores horas da sua vida antes de conhecer Gouveia e Mello. Apesar de algum snobismo que a sua maneira de ser detestava e que grassava entre as senhoras que frequentavam esse tipo de espectáculos, em que por vezes parecia mais importante o vestido e a presença do que o apreço pela música, a jovem Carolina ia naturalmente crescendo entre contrastes que só faziam bem ao seu desenvolvimento harmonioso.

Nessa altura, ainda a velha senhora mantinha um invejável vigor físico. E, assim, embora quase sempre nas alturas festivas, juntava-se à família, como por ocasião das Festas da Senhora da Vida, nos primeiros dias de Setembro, que fazia acorrer à vila muitos forasteiros. Gouveia e Mello, tendo ainda bem presente a dificuldade e embaraços por que passara para arrecadar quantias há muito devidas à Câmara, lembrava-se sempre de um artigo do compromisso dessas Festas, confirmado pelo príncipe regente em 25 de Janeiro de 1674 (como iam longe esses tempos e como se assemelhavam as situações…), que lera reproduzido em crónica de Alberto Pimentel, publicada num vespertino da capital, e a que não podia deixar de achar graça pela sua originalidade, ousadia e mão certeira, pois os relapsos eram o mais das vezes proprietários, e não os desprovidos de meios de fortuna. Dizia a regra: “Ordenamos que as fogaças e leilões, que se costumão fazer na festa de Nossa Senhora da Vida, se não possa rematar nada a pessoa nobre, sem que pague o dinheiro logo, por escuzarem queixas de escandalos na cobrança d’ellas”. Prudentes e bem avisados andavam os autores do regulamento da Comissão das Festas... do mesmo modo, invejava, procedesse a Câmara para os actuais figurões.

Quando caía a noite, Queiroz e Mello e Dona Maria Madalena costumavam dar um pequeno passeio bordejando o rio, entrando na ponte dos vapores da carreira, onde sempre paravam para melhor admirar os reflexos de prata nas águas pouco profundas e mansas, cujo rumorejar apelava à melancolia e à intimidade.

arfemo´
Do romance do autor no prelo "FLOR DE SAL"

 
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arfemo
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Enviado por Tópico
(re)velata
Publicado: 07/06/2009 19:31  Atualizado: 07/06/2009 19:31
Membro de honra
Usuário desde: 23/02/2009
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 Re: FLOR DE SAL (Excerto II)
Excelente, como o primeiro excerto!
Muitos parabéns!

Um abraço


Enviado por Tópico
Antónia Ruivo
Publicado: 07/06/2009 19:34  Atualizado: 07/06/2009 19:34
Membro de honra
Usuário desde: 08/12/2008
Localidade: Vila Viçosa
Mensagens: 3855
 Re: FLOR DE SAL (Excerto II)
Acabei de ler o primeiro,tal como os outros leitores ia pedir outro capitulo,agora, peço o terceiro, deixe lá o editor rsss, estou a adorar,e vou aprendendo com as leituras que lhe faço seja na poesia e neste caso na prosa,obrigado, beijinhos


Enviado por Tópico
j.sofia.bernardes
Publicado: 07/06/2009 20:58  Atualizado: 07/06/2009 20:58
Muito Participativo
Usuário desde: 08/05/2009
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 Re: FLOR DE SAL (Excerto II)
Boa noite arfemo,

Apesar de apenas excertos, o romance parece-me não desmerecer os créditos que lhe reconheço sobretudo na poesia e no ensaio.
Estarei no lançamento, sim senhor.

Bjos

Sofia


Enviado por Tópico
miriade
Publicado: 07/06/2009 21:08  Atualizado: 07/06/2009 21:08
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 Re: FLOR DE SAL (Excerto II)
Sem duvida ao sair do prelo, vai ser um sucesso. Muito interessante e informador, em relação à politica,a nobreza da história,ao carater ilustre da prosa, continue... bjs Lu


Enviado por Tópico
Joabreu
Publicado: 07/06/2009 23:09  Atualizado: 07/06/2009 23:09
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 Re: FLOR DE SAL (Excerto II)
Pois a "FLOR DE SAL" para além de estar muito bem escrita evoca uma realidade pouco conhecida: o emergir do salazarismo. Ah e a mulher protagonista, a Maria Madalena tem sumo "Em tempos de escravidão"

Bjos

Joabreu