Cabem no meu corpo todos os rios do mundo
Cabem no meu corpo todos os rios do mundo
Trago-os nos sulcos da pele, como vida nas mãos
Com os que já morreram e com os que em mim ainda irão nascer
E tocando-lhes, percorro-os com os dedos
Seguindo novos caminhos, novos sentidos
Pois cada ruga da minha pele é água e terra
É corrente e paisagem da vida que vivi
Sinto-lhes o norte, o sul, e sei para onde vou
Assim será até ao dia que morrer, e se entretanto me olharem
Se de mim falarem, não digam que sou velho
Digam antes que sou um coleccionador de rios.
Às vezes sai-me a alma pela boca
Às vezes sai-me a alma pela boca
Mastigada, salivada
Ânsia aguda entre os dentes
Sai-me num beijo descompassada
Ou se não estás
Amargurada num poema
Nos meus amuos
Não queiras ver
Sai-me a alma pela boca
Cuspida num palavrão
Às vezes não, estou calado
E põe-se bela à janela
Num sorriso de alegria
Mas se está triste
Fica com fome de aletria
Ou de qualquer coisa muito doce
E escondida, diz-me ao ouvido
-Alegoria é uma caverna em negação
Cada vez que assomo à janela
Cada vez que assomo à janela
E o vento bate assim, fresco na cara
Ah, sinto o meu mundo todo estremecer
Sinto um arrepio no corpo inteiro.
Das savanas de África aos néones de Tóquio
Tudo me diz quem sou e que o meu lugar é aqui
Aquilo que sei de mim e do mundo, é porque não fui, indo
É porque nunca me esqueci
Apesar de todas as viagens
Nunca chego a esquecer a transparência do que me leva
E as viagens são como o vento que bate fresco na cara
As partidas espontâneas, os percursos com todos os seus tesouros
Os regressos onde o pó do caminho se torna origem de novo
Mas cada vez que assomo à janela
É sempre aqui que me encontro, que estremeço
E tenho a certeza de fazer parte de tudo.
Amanhecem Girassóis
Amanhecem girassóis.
Reguei a terra pela manhã
Com o sol que trazias na mala
E tu acenaste para Deus
Deus gostou de te ver
E fez amanhecer os girassóis
Aproveitei que Deus estava contente
E pedi-lhe muita madeira
Vou construir uma casa no campo
Para morar contigo no coração
Passaremos as tardes juntos
A ver o vento ir de encontro a tudo
Ao longe, na estrada
Passam as luzes de um carro velho
Anoiteceu e os girassóis amanhecem
Porque tu tens o coração cheio
E ninguém pode tirar-te esse amor
A não ser que o queiras dar
Vou plantar nuvens no quintal
Ao lado dos girassóis
Para que possas estar no céu junto a mim
E nunca mais o mundo te vai perder.
Deus disse-me que o mereces
E que gosta de ver-te a seu lado.
A busca inglória da felicidade nas paisagens estéreis do mundo
Desejar ser feliz é o caminho mais curto para a angústia. Idealizar o conceito de felicidade em algo ou em alguém é castrar a própria possibilidade de ser feliz. Quando alguém define, escolhe ou estabelece um objecto ou uma pessoa como imperativo para ser feliz, coloca-se na delicada situação de dependência externa para alcançar o fim. O simples facto de estabelecer uma meta, de definir um ponto na paisagem estéril da realidade como imperativo para atingir qualquer estado de espirito, no caso felicidade, coloca a pessoa perante a condição dual de alcançar ou não o propósito desejado, e a partir desse momento, depende da dualidade em que se encontra e tem a sua acção também condicionada. É, assim, quando ajustada ao propósito, o desejo de felicidade, que a própria manifestação existencial se castra da sua expressão natural e livre, ou seja, do objectivo da felicidade materializado em algo externo ou colado a alguém, resulta apenas uma busca inglória destinada ao fracasso. Isto acontece porque, ao se impor um estado de espirito à natureza humana, anula-se a própria natureza humana pela determinação consciente de que, o objectivo, está ao alcance da busca. Colar o conceito "felicidade" a algo ou a alguém, é anular o controlo que se detém sobre a existência e sobre a felicidade, pois esse controlo fica delegado a entidades exteriores que não podem ser controladas. A felicidade esconde-se nas coisas simples, resume-se à existência, ao universo de cada homem e das suas escolhas. O aceitar a existência, a vida, a morte, aceitar o caminho, o chão, a linha continua da alma, e fazer tudo isto sozinho. Aceitar a felicidade, aprender a aceitar, é escolher ser feliz. É tornar-se aquilo que se já é.
Nada se realiza sem a fundação sólida da base. Nada se forma a não ser da essência do que já é e da do que se quer formar. O próximo segundo é a continuação do actual, a realização assumida do que ainda não aconteceu. A busca inglória da felicidade nas paisagens estéreis do mundo.
Céu distante
Saíste
Sem avisar
E a tua ausência espalhou-se pela casa
Como um manto de horas longas
Cobrindo tudo o que breve foi nosso
As petúnias que cuidavas, perguntaram ontem por ti
Disse que voltavas hoje para jantar
Menti-lhes
Guardei
Sem pensar
A saudade dobrada em dois
Naquela coisa brilhante que prende os guardanapos
E deixei-a entre os dois copos
Postos sobre a mesa
Nos fragmentos daquele dia claro de Abril
Ainda és mulher e fogo em mim
És Sol, num céu distante, sem ocaso
E do intervalo que se impôs, és o adeus do meu fracasso
Não sei bem porque quero que voltes
Se é porque ainda te amo do fundo das entranhas
À superfície das linhas deixadas nesta folha
Ou se porque o meu fígado não aguenta mais a tua ausência
Na dúvida trago à noite mais um copo que bebo até ao fim
E sinto o teu ar espalhado pela sala
Onde ainda és a mulher, o fogo e a musa em mim.
Império
Império só, embrenho no mistério desse reino longínquo, impossível de conquistar.
Este mistério é o manto com que deus se cobre de noite para não ter frio enquanto dorme, deitado na relva do seu jardim.
Porque deus é tudo o que existe entre a terra e o céu.
Vago reino impenetrável de candeias acesas em procissão, marcha lentíssima que enfeita de luzes o céu e de ilusão a minha alma, roubando-a para a segurança dos seus portões.
Sinto, imaginando-o, como a única realidade de o sentir. E se por ventura consigo senti-lo real, sinto-o por fora da alma, como se tivesse outro corpo.
Porque este reino de mistério é de ilusão e a minha alma real.
19.06.16
enquanto existimos somos tão pouco, somos apenas um pouco mais do que nada, e isso é ser muito...somos o aroma que a nossa essência liberta em comunhão com o mundo...tocamos, sem realmente tocar, somos tocados, sem verdadeiramente o sermos, estendemo-nos fora de nós e do limite do que é físico, chegamos além do que compreendemos e a este alcance, chamamos sentimentos...somos o aprendizado que deixamos, o compêndio final do que fomos e que ficará no tempo, para ser lido quando não precisarmos dos olhos para ver...estamos e permanecemos agarrados à hipótese de existir sem nunca a experimentarmos, sem nunca nos testarmos por dentro...fora ela, a hipótese, somos tudo, tudo o que está fora da consciência da nossa acção e do seu alcance, todos a quem o aroma da nossa essência envolve e nos são perfeitos desconhecidos, o tudo que somos e não entendemos, e que só entenderemos, quando suprimirmos este desejo de ser a qualquer custo que nos cega o coração.
É possível ler a paisagem
A linguagem da terra é simples
É possível descodificar o prodígio da natureza
Apenas ao ler a paisagem
E espalhar no mundo a paz desta conquista
Mas, há o espelho que faz guerra à realidade
E, se reflecte ao mundo a minha imagem
Que sendo parte, também é ego e fera e falha
Traz à tona um ser que não tem alma
É possível ler, em silêncio, a paisagem
Calar o ego, acalmar a fera sem quebrar o espelho
E assim, trazer de volta ao peito a natureza
E o prodígio renasce, devolvendo-me ao corpo a alma.
De frente para o amor
Não deixes
Que te convença
Não te demovas
Por mim
Ou por alguém
Finca os pés na terra plana com aquele sentimento luminoso
Com o brilho que tinhas nos olhos quando eras criança
Agarra-te à convicção como se fosse uma nuvem preciosa
Só tua, guarda-a e não a deixes escapar
Faz como os postes elétricos cravados no chão
Que se agarram aos cabos, à energia que por eles flui
E jamais os largam
Deixa que seja este o teu propósito.
Não te apresses
Mastiga o tempo devagar
Define-te primeiro
Antes de mim
Antes de todos
E digere-te
Depois
Não te demores
Que o vento não espera pela ave
E os girassóis não querem saber das sombras
Não percas tempo com as sombras que a vida tem
O momento é o sol, encara-o
Sempre
De frente
E não tentes convencer-me
Que isto que digo é verdadeiro
Não acredites no que falo
Pois já nem eu acredito nos pensamentos que tenho
Nas filosofias trabalhosas e elaboradas
Que causam cãibras às sensações e adormecem os sentidos.
Não se devia poder estar vivo sem sentimentos
Nem ser filósofo, nem ser poeta.
É de uma inutilidade extrema
Quando um poeta escreve poemas de amor como este
Porque os poetas apenas devem escrever sobre temas profundos
Em verborreias racionais e lógicas sobre a realidade
E depois, cansados da lucidez de estar no mundo
Sem filtros, sem sonhos
Sem um beijo de língua, sem uns amassos num vão de escada de madrugada
Secam por dentro e sem inspiração, deixam de escrever poesia
Ficam insensíveis e tornam-se filósofos.
Acredita amor
No amor que sentes
Mas ama-te primeiro e ama-me só depois
Como eu sempre te amei
E ama, então, depois os outros
Mas, se descobrires
Meu amor
Que existem mundos
Dentro de mundos
Ficarás a entender
Que dentro de cada mundo que existe dentro de nós
Há um prato de caracóis e umas minis geladas
Há um fim da tarde, no tasco do Xico à esplanada
Onde, de mão dada, vemos juntos o benfica.