Interior
Amo, nas tardes quase noites
O teu corpo de dia, amante
Bebo como se tivesse sede
Um líquido quase dor
Mente, a sabor fresco na boca.
Não sei se o que escrevi
É o peito deserto aos olhos de não saber ler
Mas o sol diz que brilhou
Sobre a ausência do corpo depois de morrer
Mármores deitados
Sinto-me cobertores de sombra
Então adormeço a vida
E amo a dor de não te ter.
Fortuna
Os anos passaram e tive a sorte de envelhecer muito depressa
De ficar velho ainda novo
A tempo de voltar a ser criança
Um pouco antes de ficar velho.
Forma de cair
Não há outra forma de cair
Senão a forma que a vida mostra
Nem outra maneira de viver
Do que aquela que cair ensina
Quem isto entende, tem como endireitar as costas
Seguir em frente e levantar a cabeça
Porque depois da queda, o momento em que ergue o corpo
É todo força, movimento e vida
Não se pode viver curvado
Com uma visão deformada das coisas
Abrir os olhos ao acordar, é natural até morrer
Mas acordar não é viver
Nascer é estar vivo, até porque nascer todo o homem nasce
Só que estar vivo não é viver
Viver é movimento somado à vida, à existência
É atrito, é sentimento, é uma química que acontece na alma
De alguém que cai e depois se levanta
E sem mágoa, cresce pelas cicatrizes do corpo
Para elevar o patamar do mundo.
A busca inglória da felicidade nas paisagens estéreis do mundo
Desejar ser feliz é o caminho mais curto para a angústia. Idealizar o conceito de felicidade em algo ou em alguém é castrar a própria possibilidade de ser feliz. Quando alguém define, escolhe ou estabelece um objecto ou uma pessoa como imperativo para ser feliz, coloca-se na delicada situação de dependência externa para alcançar o fim. O simples facto de estabelecer uma meta, de definir um ponto na paisagem estéril da realidade como imperativo para atingir qualquer estado de espirito, no caso felicidade, coloca a pessoa perante a condição dual de alcançar ou não o propósito desejado, e a partir desse momento, depende da dualidade em que se encontra e tem a sua acção também condicionada. É, assim, quando ajustada ao propósito, o desejo de felicidade, que a própria manifestação existencial se castra da sua expressão natural e livre, ou seja, do objectivo da felicidade materializado em algo externo ou colado a alguém, resulta apenas uma busca inglória destinada ao fracasso. Isto acontece porque, ao se impor um estado de espirito à natureza humana, anula-se a própria natureza humana pela determinação consciente de que, o objectivo, está ao alcance da busca. Colar o conceito "felicidade" a algo ou a alguém, é anular o controlo que se detém sobre a existência e sobre a felicidade, pois esse controlo fica delegado a entidades exteriores que não podem ser controladas. A felicidade esconde-se nas coisas simples, resume-se à existência, ao universo de cada homem e das suas escolhas. O aceitar a existência, a vida, a morte, aceitar o caminho, o chão, a linha continua da alma, e fazer tudo isto sozinho. Aceitar a felicidade, aprender a aceitar, é escolher ser feliz. É tornar-se aquilo que se já é.
Nada se realiza sem a fundação sólida da base. Nada se forma a não ser da essência do que já é e da do que se quer formar. O próximo segundo é a continuação do actual, a realização assumida do que ainda não aconteceu. A busca inglória da felicidade nas paisagens estéreis do mundo.
A água cai e fertiliza a terra
A água cai e fertiliza a terra sem explicar como nem porquê
Assim nasce uma vida enquanto realizo o mundo inteiro
E sinto na planta dos pés esta verdade universal
Nos primeiros passos que dou a descobri o passar das horas
A imaginar o passar dos dias e a inventar o passar dos anos
Vivendo breves metamorfoses
Numa directa existência rumo a um vazio memorável
…
Do nada nascem poemas
E nascem jardins entre prisões
Da liberdade nasce uma brisa que suave me toca o corpo.
Vivo breves metamorfoses sem me conhecer
Vivo outra vez
Mas estranho-me sempre nas úlceras do tempo.
…
A água cai e fertiliza a terra sem explicar como nem porquê
Nascem jardins entre prisões enquanto realizo uma dor.
Quero-me através do tempo como se fosse hoje falar de mim
Para não me esquecer que vivi.
Amanhecem Girassóis
Amanhecem girassóis.
Reguei a terra pela manhã
Com o sol que trazias na mala
E tu acenaste para Deus
Deus gostou de te ver
E fez amanhecer os girassóis
Aproveitei que Deus estava contente
E pedi-lhe muita madeira
Vou construir uma casa no campo
Para morar contigo no coração
Passaremos as tardes juntos
A ver o vento ir de encontro a tudo
Ao longe, na estrada
Passam as luzes de um carro velho
Anoiteceu e os girassóis amanhecem
Porque tu tens o coração cheio
E ninguém pode tirar-te esse amor
A não ser que o queiras dar
Vou plantar nuvens no quintal
Ao lado dos girassóis
Para que possas estar no céu junto a mim
E nunca mais o mundo te vai perder.
Deus disse-me que o mereces
E que gosta de ver-te a seu lado.
19.06.16
enquanto existimos somos tão pouco, somos apenas um pouco mais do que nada, e isso é ser muito...somos o aroma que a nossa essência liberta em comunhão com o mundo...tocamos, sem realmente tocar, somos tocados, sem verdadeiramente o sermos, estendemo-nos fora de nós e do limite do que é físico, chegamos além do que compreendemos e a este alcance, chamamos sentimentos...somos o aprendizado que deixamos, o compêndio final do que fomos e que ficará no tempo, para ser lido quando não precisarmos dos olhos para ver...estamos e permanecemos agarrados à hipótese de existir sem nunca a experimentarmos, sem nunca nos testarmos por dentro...fora ela, a hipótese, somos tudo, tudo o que está fora da consciência da nossa acção e do seu alcance, todos a quem o aroma da nossa essência envolve e nos são perfeitos desconhecidos, o tudo que somos e não entendemos, e que só entenderemos, quando suprimirmos este desejo de ser a qualquer custo que nos cega o coração.
É possível ler a paisagem
A linguagem da terra é simples
É possível descodificar o prodígio da natureza
Apenas ao ler a paisagem
E espalhar no mundo a paz desta conquista
Mas, há o espelho que faz guerra à realidade
E, se reflecte ao mundo a minha imagem
Que sendo parte, também é ego e fera e falha
Traz à tona um ser que não tem alma
É possível ler, em silêncio, a paisagem
Calar o ego, acalmar a fera sem quebrar o espelho
E assim, trazer de volta ao peito a natureza
E o prodígio renasce, devolvendo-me ao corpo a alma.
Hoje, a espera
Sou um esboço daquilo que planeei ser
Um projecto adiado, a espera, uma folha amarrotada
Largada no chão.
Hoje, espero mais um pouco
Sem forma concreta, vou deformando os dias
Saltando metas, esperando, adiando prazos definidos
Na esperança de um dia me definir
E espero mais um pouco, só mais um pouco
Por esse dia que ainda há-de vir.
Hoje, a espera.
Poema e chuva
Enquanto, lá fora, chove despropositadamente
Tento escrever, nesta folha, um poema com muito propósito
Que seja algo mais que a extensão de um pensamento
Mais que a resistência e que o atrito dos labirintos da mente
Tento escrever um poema que venha de dentro
E se cumpra inteiro, morrendo nos olhos de quem o lê
Se eu o escrever corpo, vida e cor
E me sentar à porta a olhar para ele
Será poema em tudo o que existe
Em tudo o que vejo, puro e livre, e aceito porque me é dado.
Sempre que o céu se curvar e tocar a terra
Por meio de brilho e de chuva a salpicar as pedras
Desprender-se-á de mim sem choro e sem dor
Todo ele paisagem, perfeição e paz
Porque sendo céu, não é terra, e sendo terra, não é céu
Um equilíbrio que é bom de ver, sem que precise de pensar nele.
Ter-se-á então cumprido ao morrer-me nos olhos
Nascendo, sem esforço, no momento seguinte
Também ele, poema e chuva.