Poemas, frases e mensagens de josejorgefrade

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de josejorgefrade

olhos secos

 
olhos secos
pela manhã não nascida,
olhos cansados;

precisando aqui de um poema,
precisando aqui de uma força,
pela manhã não nascida.

ah quão raro as campanas tocam
- as que a alma despertam;

as que faltam, as que faltosas têm sido
destes olhos, matinais e ausentes,
como lágrimas redentoras
- as que à alma dão voz...

ah quão raras, precisadas,
manhãs por nascer,
mistérios
 
olhos secos

Ainda Sobre...

 
Ainda sobre todos os amores,
ainda sobre todas as vidas,
sobre o mundo dos amores,
sobre amar, ter despedidas:

Venham poetas, venham sábios,
venham os doutores de vidas,
escritores, profetas, visionários
(fossem as mentes tão sabidas...).

Que nas pedras se sentem,
que nelas fiquem, sentados:
suportando a monotonia;

amando o silêncio, fiquem,
ficando na ausência, parados:
esperando a Sabedoria...
 
Ainda Sobre...

pelas horas...

 
pelas horas mais cansadas
se arrastam meus lentos dedos
agora roxos, na pele da tua ausência,
imaginando teus cabelos
vendo-te os lábios, de olhos cerrados.

se nos afasta a presença
mais juntos separados estamos
mais forte a vontade se ergue
fraca força de partir, não sair
fechar os braços, mãos abertas
sobre tua imagem densa,
prendê-la no meu nevoeiro.

penosos passos
os que dou nesta madrugada
tensa, discreta e bruta
 
pelas horas...

Vidas

 
Tanto pode humana alma:
odiar sem fim, amor eterno,
violentar, beijar com calma,
diferenças verão-inverno...

Em leque tudo se espalha,
opções de vida espelhando;
com ou sem razão se talha
o destino se formatando...

Todos na escolha nos fazemos
simples ou não, nos construimos,
caminhantes de alma decidida;

Humanas vidas, diversidade,
plenas de complexidade,
diversas formas da Vida.
 
Vidas

Exortação À Coragem

 
que as lentas forças
macias, crescidas
nos caulinos argilosos

em doces branduras,
à sombra de brisas calmas

de tanta calma
tanta maresia aspirada
à beira de falésias

de tanta hesitação
tanta espera inacabada,
que seja agora a hora
em que venha o trovão
e que ele fale

que tudo rebente
e não se cale,que tudo se lave
com o que tanto chova
e que com o imenso vento
ninguém se atreva,
ninguém se mova!

Que acabe a treva, que acabe a treva!
 
Exortação À Coragem

o ar que nos falta

 
Quantas folhas,
do tempo filhas, desfilam
as lembranças esperadas?

Quantos fios,
fados do amor desfiado,
desafiam esperanças?

Quais e quantas?
Tantas malhas,
quantas falhas…

O ar que nos falta,
o ser que nos dói,
a chama que nos inflama,
a paixão que nos corrói…

E se nos faltar a figura,
do fulgor e da amargura,
sempre a alma nos segura!
 
o ar que nos falta

A Visão De Vincent

 
como nenhuns, viram teus olhos
as metamorfoses no teu rosto marcado,
as cores de Auvers e as espirais da noite

ondulavam-te os olhos, trémulos,
pela terrível claridade das searas
e a tua mão em desesperada fuga
deslizava turbilhões coloridos

procuravas os contrastes da alma
e revias-te sempre espelhando-te
o olhar de amargor profundo

e como ninguém nos deste
- como só o teu único olhar poderia -
a ver os ciprestes ao vento
entre o deslumbramento solitários

como homens a sofrer, resistindo
à vida de pé, verticais e delicados,
solenes e agitados.

como um cipreste ondulante
foi a tua vida
a vertigem do teu olhar
 
A Visão De Vincent

Meio

 
Meio não é boa palavra.
O esteio da minha lavra
não devia tê-la...
...de permeio!
(Acho que vou devolvê-la,
com muito asseio...)

Sinto que é feio,
anti-poético,
patético,
e até creio
ser termo meio... presumido,
em futurologias convencido,
pois que ao se terminar
o Fim virá anunciar!

Isso é chantagem, eu acho!
O Meio, assim? Abaixo!
 
Meio

Tivesse sido a história outra

 
Tivesse sido a história outra,
nos não teríamos conhecido;
tivesse sido a história outra...
outra a história teria sido!

Se aqui não entra LaPalisse;
tu e eu, noutros encontros,
mui diverso do que se disse
ouviríamos, noutros pontos...

Mutatis mutandis , meu amigo,
o que importa é o resultante
do que é fortuito e mutante.

Se pouco breve a vida fosse
e se tão farta nos soubesse,
glória nunca, e sim castigo!
 
Tivesse sido a história outra

Luís L.

 
Luciana lembrava-se como Luís L. a tinha apoiado quando lhe apresentou as dúvidas que tinham surgido, sobre as eventuais dificuldades que encontraria quando ingressasse na Escola de Artes Plásticas.
Sabiam que defrontaria preconceitos muito arreigados, até mesmo os seus próprios, mas incorrecto seria renunciar às suas tendências artísticas, recusar a expressão mais ampla da sua sensibilidade estética, apenas porque à sua frente certamente veriam levantar-se, pelo menos, o machismo e a comiseração paternalista, ambas afinal faces da mesma moeda, olhar de pretensa superioridade sobre os seres diferentes, daninha erva presente onde quer que se veja surgir alguém capaz de criatividade.
Luís dissera a Luciana ser esse combate inevitável, pelo que ela só teria vantagens em travá-lo no campo da sua escolha.
Lembra-se de como passaram então, já decididos, a analisar aspectos "técnicos", os que lhes pareceram mais relevantes.
Por exemplo: seria a natureza dos materiais a determinante da selecção dos artistas segundo o seu sexo? Concretamente, a questão levantava a perplexidade: a razão da maior percentagem de pintoras do que de escultoras teria algo a ver com a dificuldade de manejo da dureza das matérias escultóricas? Tal facto teria algo a ver com a cultural aptidão, secularmente desenvolvida, para a destrinça das tonalidades cromáticas, mais tradicionalmente veiculada à mulher?
Por outro lado, a predominância masculina de escultores poderia explicar uma característica que sempre notara: a dominância das formas do corpo da mulher e a paralela exaltação da virilidade, quer uma quer outra, quantas vezes por indefinida moda, ou por ambígua encomenda.
Na Antiguidade Clássica os belos corpos masculinos da estatuária grega não eram produto da sensibilidade nem do olhar femininos. Onde a Escultura Feminina?
Aí Luís protestara: a sensibilidade convencionalmente qualificada de feminina não era exclusiva das mulheres!
Luís lembrara que poderiam enquadrar nessa análise aquela citação do Ricardo Reis: "O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudo clássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda que ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível. A arte pseudo clássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia".

(Capítulo 2 de Lúcido Mar)
 
Luís L.

Perguntas a Eugénio de Andrade

 
tenho a sangrar-me dos braços
as palavras que me atiro:
em que medida te suspendo
no tempo de me ouvires?

tenho caladas na boca
as perguntas que me faço:
em que palavra estou,
onde fiquei agarrado
às pedras do teu assombro?

tenho nas mãos
o papel com que me firo:
será o breve de um grito
o susto que me acorde?
 
Perguntas a Eugénio de Andrade

Condição De Bardo

 
junto a bravura na luta
de um coração celta
em peito de gaivota
à doçura de um homem do sul
na paixão pela sua amada...

entre a rudeza do sangue
e a brandura do amor,
a minha condição de contrárias forças
me conduz por caminhos, ermos...

de montes e pedras,
sobre vales e rios,
sob sopradas nuvens
de molhados gelos
ou repentinos frios...

e se faço uma pausa na caminhada
é para ouvir o silvo do vento;

porque Ele é como a música
que me penteia os neurónios,
e é ela que me diz
para onde devo seguir.
 
Condição De Bardo

caçados

 
Despe o teu corpo
meu olhar predador
que em sonhos me entretém,
em fantasias...

Enquanto assim algo
de invisível, insuspeito,
se passa sob a minha pele,
máscara impassível,

surgem da flexão
da tua cabeça, rodando,
teus olhos - surpresa,
neles se suspendendo
a imaginária caça dos meus:

porque os trazes limpos,
já desnudados.
 
caçados

Corpos

 
Teu corpo é arco
na ponta dos meus dedos
três leves polpas
na flor da minha mão
com que inflamo a manhã
no teu ventre.

mergulhado
nos teus braços
envolto em lábios,
em perfume.

em beijos,
na água do teu pescoço
brando de rosas
nos bicos doces
no peito leve.

Quando somos amor
nossos corpos são arcos
 
Corpos

A Escrita

 
Naquele dia, os amigos debatiam as suas diferentes concepções da escrita:
Wirsung analiticamente iniciou:
- É verdade que por vezes questionamos o valor do que escrevemos, indagando-nos da força destes comprimidos de pensamento, do seu conteúdo em miligramas de entendimento. Desejando escrever algo de definitivo, imaginamos ilusoriamente transformar, principiar algo de novo. Assim, a escrita poderá, apenas, ser a materialização dos sonhos imperfeitos – notem que resisto à tentação de dizer “sempre”…
Álvaro Urbano, muito sucinto e minimalista, resumiu:
- É coisa fugaz e irremediável, portanto histórica.
Ana receitou, da sua experiência de vida:
- Titubeando no mundo do Intervalo, o ideal é deixar solta a Imaginação, deixar correr livre a palavra, escrever “em bruto”, directo a seguir ao pensamento.
Luciana criticamente pincelou:
- Circular pelos traços das avenidas literárias, cercadas nos campos da visão estreita dos “ismos” da moda, em escrita linear e fechada num só plano, é cavar o fosso dos intelectuais-intelectualistas, a quem o povo nunca dará o seu entendimento.
Domingos trouxe da bancada o exemplo:
- É como madeira trabalhada, pronta a ser olhada, tocada e cheirada, antes de ser arte ou utilidade.
Henrique, de olhos líquidos:
- No fulgor da palavra pura, deixamos fixar o nosso pasmo de encantamento.
Luís, de olhar iluminado:
- Na poesia da brevidade, deixamos correr o fluxo vivo de quotidianos inexplicados.

Capítulo 22 de "Lúcido Mar"
 
A Escrita

NOITE DE AMOR

 
Um sonho de amor,
um sonho;
imorredoiro amor,
sonho de uma vida.

Vivido sonho real;
real amor, tão vivo.

Noite de sonho,
noite de amor;
a vida num dia,
numa noite a vida.

Numa noite tanto,
numa noite tudo.
Em Amor, em espanto!
Despertar na vida,
em vivas memórias
despertando o encanto.
 
NOITE DE AMOR

Amor, Estranha Palavra

 
tanto nos disse
o primeiro ar ao nascer

tanto nos disse o colo,
as mãos da mãe;

tanto falou o chão às nossas,
mãos gatinhando, antes dos pés
sentindo, os torrões
ou planos alisados

tanto nos disseram
bancos de várias cores,
formas e densidades;

tanto as paredes
esfolando os dedos nos disseram

tanto os muros
aos joelhos nos falaram

tanto as pedras dos caminhos
aos dedos dos pés doeram...

Sobre o Amor,
essa estranha palavra,
tudo nos disse a Vida.
 
Amor, Estranha Palavra

Voz Minha

 
Oh! Voz minha não te cales,
pelo ardor do meu coração!
Que sejas Lança, sempre fales
- que me ilumines a escuridão!

De volta ao tempo clandestino,
voltou a "apagada e vil tristeza";
resta-me só a Lança da Pureza:
este puro coração de menino...

Já que a chama se apagou,
nesta jornada discreto vou,
e sigo à sombra dos anões...

Ficando nas trevas os dias,
fúteis vaidades e honrarias,
chegue a Lança aos corações!
 
Voz Minha

Por Companhia

 
Por companhia O temos
na vida, em todos os dias.
Bem seguros seguiremos,
se o crês, Nele confias.

No destino confiantes,
por Ele acompanhados;
tranquilos caminhantes,
seguimos abençoados.

Traz sereno o coração,
com bondade e razão
- assim seja a tua Vida.

A Alma te seja querida,
que nela sempre seja dia.
Ele virá, por companhia!
 
Por Companhia

Dívida

 
Ana tratara de trazer para bordo um equipamento indispensável, e agora explicava aos companheiros desta barca de muitos mestres e aprendizes a sua composição:
-“A farmácia essencial compreende: bisturi, tesoura, pinça de dissecção, porta agulhas, pinça de bicos finos para a extracção de corpos estranhos, duas pinças hemostáticas, seringas e agulhas descartáveis, agulhas e sedas de sutura de vários tamanhos, algodão, compressas esterilizadas, ligaduras de várias larguras, adesivo, solução antisséptica, álcool a setenta graus, ampolas de anestésico, analgésicos, colírio, protector solar, antiácido, antidiarreico.”
-“Quem vai ao mar, avia-se em terra!” – exclamou, ufano e irónico, Álvaro Urbano, sentindo-se logo em seguida bastante ridículo.
Depois de Henrique ter esclarecido quais as manobras para a recolha de um náufrago, Ana explicou ainda a técnica correcta de reanimação de um afogado.
Chapinhando em memórias que de súbito o assaltaram, o marinheiro já não a ouvia, recordando-se da longínqua planície, e do pedaço de si que nela ficara, como náufrago num pântano verde.
De olhos salgados e alma amarga, nele soava agora o tom grave e solene de uma canção alentejana:
“Eu sou devedor à terra
e a terra me está devendo.
A terra paga-me em vida,
e eu pago à terra em morrendo.”

Capítulo 18 de "Lúcido Mar"
 
Dívida

José Jorge Frade