A minha História IV
Passada a euforia desse grandioso e histórico acontecimento, que culminou com a entrega da Carta de Foro aos habitantes da vila e ao seu reverenciado Alcaide; que era auxiliado frequentemente pelo alcaide-menor (aquando das suas repetidas ausências), e por mais dois alvasis que, por ventura, eram eleitos anualmente pelos homens mais considerados do povo, aos quais todos nós, respeitosamente, chamávamos de “Homens-Bons”.
Essa Carta de Foro, produzida pelos escribas da Corte, em Santarém, tinha como finalidade criar um “Concelho Perfeito”, administrado pelo enunciado Alcaide, que, com a preciosa ajuda dos dois alvasis lá ia gerindo a governação do concelho no aspecto civil, judicial e militar… Essa nova Constituição, aflorou as ideias luminosas dos Homens-Bons, que inventaram e decretaram algumas Leis curiosas… Recordo uma que dizia que, para penalizar os mais indignos e os mais indecentes homens aqui da terra, o preço a pagar por essas diabruras e por essas atrocidades podia variar, se o crime fosse cometido dentro ou fora do Couto… Apenas para concluir este pesado trecho e para não me alongar demasiado nos pormenores da conversa, exemplifico somente uma das Leis mais importantes e curiosas da época - “Por cometer um homicídio, os vilões pagavam, na altura, qualquer coisa como quinhentos soldos de peite, se a desumanidade fosse cometida dentro do Couto, e duzentos soldos de peite se o delito fosse efectuado fora dos limites do Couto.
Discorrida a parte maçuda da História e revividas as Leis dos Homens-Bons, nos anos seguintes, assisti impávido e sereno à heróica governação de Dom Afonso IV (o bravo), que andou por aí a pelejar contra milhares e milhares de cavaleiros, enfrentando paladinos, nobres e ginetes, para as bandas de Albuquerque e de Badajoz…. Por falar em tal, foi nesse mesmo reinado de Dom Afonso IV, que deparei novamente o Professor José Hermano Saraiva, e se a memória não me falha foi exactamente no dia vinte e sete de Maio de mil trezentos e cinquenta e cinco, junto à fonte dos Monchões. Poderei mesmo dizer que foi o início de uma grande cumplicidade, de uma enorme empatia e de uma eviterna amizade…
Chegámos quase ao mesmo tempo às proximidades da fonte, cumprimentámo-nos, recordámos a festa do Foral, e encetámos imediatamente uma conversação sobre o crescimento e a prosperidade da província; debatemos os frequentes conflitos do Rei Dom Afonso IV com o seu irmão bastardo, Afonso Sanches; murmurámos o propósito do filho do ilegítimo, João Afonso, que pretendia invadir a província. Mas, segundo as palavras do Professor, após algumas escaramuças junto à ribeira de Ouguela e uma quantas tantas desordens em Albuquerque, tudo se recompôs… Ainda bem! Parece que estou a ouvir as eloquentes palavras do meu grande amigo, quando disse a província de Entre-o-Tejo-e-Odiana ganhou assaz, com o Tratado de dez de Julho de mil trezentos e quarenta, assinado em Sevilha. Esse acordo, além de nos conceder a ronceira paz com Castela, permitiu a união dos dois Reinos na guerra contra os Mouros… onde é que eu já vi isto? Prosseguindo… Momentos depois, tentei apaziguar o fervor da conversa e o calor que o próprio dia nos concedia, dirigindo-me até às imediações da água da fonte dos Monchões. Convidei seguidamente o Professor a refrescar a garganta num cocho feito da casca de um sobreiro que nos olhava nos olhos, e, enquanto o cocho gotejava a fresquidão da vida para cima de umas margaridas quase secas e murchas, o ilustre Professor voltou à interlocução, e, solenemente, falou-me ainda do terrorífico e trágico acontecimento, ocorrido uns meses antes, que culminou com a morte de Dona Inês de Castro, a quem os coevos e os nobres apelidaram de “Colo de Garça”, encontrando o seu trágico destino nos braços de um amor proibido e indesejado… Passados uns momentos em honra do silêncio e do amor, a pressa do Professor falou mais alto, e depois de atestarmos cordialmente os barris com água fresca, despedimo-nos, e, pela passagem do tempo e pelo pó da estrada, vi partir aquele sábio homem, pensando que talvez lhe calhasse em sorte uma qualquer frente de batalha…
Apesar de todas as situações romanescas, recordo muito bem os dez anos em que Dom Pedro I tomou conta do Reino… De como ele próprio aplicava a justiça; das famosas Cortes de Elvas, onde Dom Pedro prometeu respeito pelos direitos municipais e eclesiásticos.
Seguidamente, com a subida Dom Fernando ao poder e ao trono, tive a sorte de encontrar inúmeras vezes nesse período o Professor, na Adega da Foupana, aquando das suas frequentes passagens pela província. E foi na Foupana que conheci também outro grande amigo na altura, o senhor Fernão Lopes, que desde logo me informou da criação da Companhia das Naus, da famosa Lei das Sesmarias, e ainda teve tempo para me falar sobre as pretensões de El Rei ao trono de Castela, deixando toda a região em pé de guerra… Mas essas são outras histórias que recordarei brevemente!!