O novo acordo
Poema construído quando começaram as primeiras discussões sobre as mudanças nas duas ortografias oficiais da Língua Portuguesa (a do Brasil e a de Portugal). Agora, após um bom punhado de anos, voltam à tona as questões acerca da unificação das ortografias e este poema vem a calhar.
Uma longa viagem me inspira,
Porquanto enjoado e absorto
É quando a palavra transpira.
Tomei um avião para o Porto.
Essa história de uniforme
Que tentam vestir na grafia
Vai deixá-la mais disforme
Pra quem, leigo, escrevia.
Do soneto não me enjôo
E a mudança deu-me a idéia
De escrevê-lo em pleno vôo.
Amanha, em outro voo,
Talvez tenha outra ideia
Quando tiver outro enjoo.
Mente insana
Bebi da água da imortal nascente
e tal qual ela me tornei:
borbulhante, límpido, uma semente.
Da torrente do que fui mais nada sei.
Refiz a capa, reescrevi o livro todo
da vida. Passaram-se anos, séc`los talvez...
O que de mais sério havia foi engodo
desta mente que perdeu a sensatez.
Fiz-me deus sem querer. De aprendiz,
hoje tenho a verdade e sou a glória.
Quem crer em mim - deus! - será feliz.
"A mentira dos poetas a tudo contamina",
diz Borges em "O Imortal". Serei história?
Real ou fantástico, a mente é quem determina.
Estrangeiro
Sou estranho nesta terra.
Estranho? E por que sou?
É que longe, aquém das serras,
a alma me abandonou...
Estrangeiro sou e não ardo.
Meu corpo segue em névoa calma.
Não carrego nenhum fardo:
não sofre quem não tem alma.
Piso as pedras do caminho
livre, só, sem rumo certo.
E por ser assim _ sozinho _
nada é longe, nada é perto...
Estou aqui, além, aquém,
não importa meu destino;
se não me espera ninguém,
meu viver é peregrino.
Sou estranho nesta terra.
Estranho? E por que sou?
É que longe, aquém das serras,
a alma me abandonou...
Ser estranho é ser feliz,
é ter tudo e não ter nada,
ser mestre e aprendiz,
tendo a casa na estrada.
Vai, alma, não voltes mais!
Vê se te aportas noutro porto.
Ser assim muito me apraz:
não ser vivo nem ser morto...
Se meu corpo não tem alma,
minha'alma um corpo não tem.
Tal estado hoje me acalma;
a ela não sei se convém.
Sou estranho nesta terra.
Estranho? E por que sou?
É que longe, aquém das serras,
a alma me abandonou...
Sou meio-termo inteiro,
animal de consciência;
sou ar puro e passageiro,
que de si não dá ciência.
Minha'alma foi carcereira
do corpo, as rédeas tomava.
Fingia ser companheira
enquanto só regras ditava.
Perdi amor e felicidade,
que a ela não interessava.
Hoje há paz e não saudade
da alma que o corpo matava.
Sou estranho nesta terra.
Estranho? E por que sou?
é que longe, aquém das serras,
alma me abandonou...
Desalmado sou, bem sei,
estou solto e desgarrado,
livre do mundo, da lei,
sem presente e sem passado.
Minha'alma já foi bem tarde
se perder por outros lados.
Faço tudo sem alarde:
sem alma não há pecado.
Vai, alma, pedir pousada
em corpo que te receba.
Sou feliz e não me agrada
te encontrar pelas veredas.
Sou estranho nesta terra.
Estranho? E por que sou?
É que longe, aquém das serras,
a alma me abandonou...
É bom que eu seja assim,
como nuvem passageira...
Que o mundo não saiba de mim.
Sou quem não fede nem cheira.
Fui louco, tolo, bastardo,
a alma de mim fez desdém.
Leitores, compreendam meu fado:
a alma jamais fez-me bem.
Serei o que queiram que eu seja.
Se quiserem, serei ninguém.
Sou o novo que viceja
do que já foi velho. Amém!
Sou estranho nesta terra.
Estranho? E por que sou?
É que longe, aquém das serras,
a alma me abandonou...
Encontro
No “Bar e Café Pessoa” encontrei Fernando.
Ele bebericava numa caneca de porcelana,
lendo “O Corvo”. Puxei uma cadeira da mesa ao lado
e sentei, observando seu porte magro, alheio a tudo em redor. Ali, o mundo e o pensamento eram
somente dele. Sobre a mesa de tampo fino,
repousava uma caixa envolta em papel pardo,
com uma etiqueta da Air Portugal. Ele devia ter
chegado há pouco de lá, talvez para visitar o Reis. Fiquei observando-o durante longo tempo.
Calmamente, após pousar “O Corvo” sobre a mesa,
ele dirige sua atenção a mim, uma expressão
de desalento no olhar, como a dizer:
- Fui descoberto!
Ouço a voz da garçonete e viro o rosto:
- Sim, traga-me café numa caneca de porcelana.
Volto-me e já não o vejo. Corro até a porta,
perscruto a rua parcamente iluminada.
Não o encontro, ele sumiu definitivamente.
Retorno à mesa onde ele estivera.
A garçonete se aproxima e repete:
- Não temos caneca de porcelana, senhor.
Abro o pacote que, na pressa, ele esquecera.
Há vários livros, entre os quais um de Poe
que me chama a atenção, intitulado
“Histórias Extraordinárias”.
O amante
Finda o dia e já 'scurece...
Horas vespertinas em que divago
no meu leito inda sem flores.
Estou lúcido e tu me apareces.
Espera! que a dor não trago
e ainda há dia em minha vida.
Minha mente está caduca
e vazio é o saco escrotal das minhas palavras.
Quisera ejaculá-las todas, aos borbotões,
em tua página vermelha e negra...
Ah! Se não fosses infecunda!
Transformar-te-ias com a maternidade.
Reagirei, ó Dona Morte, Viúva Triste, Mulher Fatal!
E incutirei em tuas veias os versos deste poema,
marcapasso do meu coração.
Desposaste Mallarmé, Camões, Bilac...
Não te contentas?
A mim, hás de ler-me vivo!
Ninguém é totalmente insensível à Poesia.
Assim, absorta em ouvir-me, enamorada,
amar-te-ei ao ocaso e, antes que anoiteça,
tendo-te aos meus pés, exausta e subjugada,
de posse do teu segredo e em prol da Vida,
matar-te-ei, ó Dona Morte!
Classificado
Contrata-se um assassino, um matador de aluguel
que tenha na profissão bastante experiência.
Deve ser frio, calculista, insensível e cruel.
Exige-se carta de referência.
Quem o trabalho puder assumir,
favor encontrar-me na mais triste praça.
Direi que a vítima não vai reagir,
que é homem semimorto, descartável e sem graça.
Mas que seja certeiro o tiro ou o golpe do punhal:
não quero que o ferido se arrependa.
Melhor no coração, pra ser fatal.
Depois, já não haverá dor ou ferida.
E que o contratado não se surpreenda
ao saber que o pagamento é a minha vida.
Para ver-te
Estás inteira dentro em mim.
Basta para tanto um pensamento.
A ilusão da esperança faz-me viver:
a mentira bem contada satisfaz...
Não te vejo há muito, há muito
e muito tempo...
Talvez nunca te tenha visto,
mas minha mente diz o contrário,
insiste com argumentos que a razão
não ousa combater.
Não é preciso que estejas aqui...
O vento acaricia com mãos invisíveis
e és parte dele, atravessando as frinchas,
sussurrando delícias aos meus ouvidos.
Não é preciso que estejas aqui, não...
Para que eu te veja, bastam-me
os olhos do pensamento...
Áurea
Faço poemas
em versos negros
e
em versos brancos
para que todo poema seja
LIVRE.
HERANÇA
E eu morro a cada dia
quando cada coisa morre.
Outrora Deus me socorria;
agora já não socorre...
Vai um pássaro, coitadinho,
de hirtas e opacas asas.
Vai com ele um bocadinho
da minha alegria tão rasa.
Vão-se o amigo, o cão, o gato, o boi,
tudo vai nesta infalível jornada.
Só fica a angústia do que foi
na minha memória cansada.
Até um jovem filho se vai
sem mesmo saber p'ra onde,
na vã liberdade que atrai
e mil armadilhas esconde.
Nenhuma alegria perdura
e todo gozo é passageiro.
Só de tristeza há fartura
todo dia, o ano inteiro...
Quando eu me for (e será breve!)
levarei comigo esta carga.
Não quero que alguém herde
tanta lembrança amarga.
ENVOLTURA
¿Idiota! ¿No ves que nada eres?
Apenas fina capa mohosa te protege
de la podredumbre. Gusanos hambrientos te rodean.
¿Ignoras que en un pase mágico, en un segundo apenas
cae por tierra toda la altivez y el bello
papel de regalo revela la fétida masa?
El gusto amargo de la hiel, la visión incierta,
el torcerse de las piernas, el descontrol total...
todo es inevitable!
Cualquier día serás presa fácil:
el tiempo es impiedoso.
El trágico fin no depende de tu voluntad.
La arrogancia que derramas no pasa
de ser faceta inútil de tus diversas faces
vanas y mundanas.
Al sol poniente, el rostro marchito y los huesos corroídos
dolerán más que en aquellos que tuvieron
la precaución y el buen tino de ser
simples y ocultos.
Quedarán tus lindos cabellos...
¿Y qué utilidad tendrán tus cabellos, hilos
huérfanos y subterráneos, dispersos, opacos
sobre los huesos.
Traducción: Graciela Cariello
http://revistainternacionaldepoesia18.es.tl/