Sexto sentido
Tenta ouvir o silêncio...
Ver a luz na escuridão profunda...
Cheirar o aroma da mais pura água...
Sentir a textura do vento...
Saborear a doçura do sal...
Quando o conseguires...
Irás te descobrir...
Crosta
Paredes escuras, humidade viva e sufocante.
Doce lar infernal que me embriaga os sentidos,
E me faz seu escravo, um defunto amante...
Não sou mais que isso desde tempos antigos...
As minhas vísceras já as consumi eu próprio;
Entusiasmei-me com falsas e frágeis esperanças
Que findaram antes mesmo de se tornarem vício,
Tornando meus fortes desejos em atitudes mansas...
Alimentava-me de mim próprio sofregamente
Para não morrer consumido pelo meu cubículo.
E assim lá ía sobrevivendo dolorosamente,
Deixando a Morte abandonada e o Diabo fulo.
Agora que me conheço por dentro e por fora,
Submeto minha alma e espírito aos meus caprichos.
Expulsei-os de mim e em muito boa hora.
Não passavam de vermes, repelentes bichos.
Os espíritos, outrora atrás de minha alma,
Atacam-me, atazanam-me, enlouquecem-me.
Riem-se de mim, ouço-os à noite na cama.
Cheio de medo e intranquilo querem ver-me...
Não me dão um minuto de tréguas que seja.
Querem os restos que deixei de mim próprio
Mesmo que nas derradeiras forças eu me veja,
Querem-me desperto, alerta e sóbrio...
Chupam-me as entranhas até ao tutano;
Sou seu alimento e desprezível brinquedo;
Uma oferenda a um deus tirano,
Que se livrou de meus irmãos muito cedo...
Vagueio de mão em mão à espera
De que um dia felizmente me abandonem.
Era o princípio de uma nova Era;
Desejem-me isso, rezem e sonhem.
Necessito de liberdade; não, de ser livre!
Longe da merda, perto da vida...
Talvez o único sítio onde não estive,
Pois sou alguém que só com a Morte lida.
Com Ela faço todo o tipo de jogos,
Mas o que mais gosto é o das "Escondidas"!
Digo-lhe:-"Não me apanhas, talvez mais logo!"
E enfadada vai ceifar outras vidas...
Mas morrerei e tal como nasci.
Sem nada e com nada para sempre.
Com um vazio foi como vivi...
Quem me dera ainda estar no ventre...
Inimigos
São coleccionáveis;
Alguns mais fiéis que aqueles que por assim os tomas...
Dão a cara,
Ou escondem-se na tundra, movimentam-se nas sombras...
Insignificantes
Ou requintados, tenazes, aplicados e assim, temíveis...
Serão eternos
Ou efémeros, passageiros, recordações do passado...
Tens os preferidos,
Os que já são de estimação e fazem parte de ti...
Os que vais ganhando,
Formando propositadamente, ou mesmo sem o quereres...
E os outros,
Os que deixam de o ser e passam a teus companheiros...
Ou aqueles,
Que companheiros eram, mas agora estão do outro lado da luta...
E os de ocasião,
Que o são simplesmente consoante...a ocasião...
Os inexistentes,
Que deambulam apenas na imaginação, mas que te consomem...
Os históricos,
Que mesmo não os conhecendo, detesta-los pela sua história...
Os não palpáveis
Como o tempo, as doenças e os mais derivados problemas...
Os caprichosos,
Que o são apenas por não serem iguais a ti...
Os intoleráveis,
Porque muitas das vezes, esses sim são teus iguais...
Os rivais,
Que só por isso são, quer se trate de políticas, amores, jogos...
São muitos,
Variados; estão em toda a parte, até depois da morte...
Mas o pior de todos,
Esse sem dúvida, tem a tua forma e mais não é que tu próprio...
Anjo da Guarda
És o meu anjo da guarda...
Nesta queda infinita,
És o meu amparo...
Susténs-me, aguentas-me,
Embalas-me nas tuas asas...
A tua aura envolve-me,
E mantém-me longe do perigo...
A tua luz desbrava caminhos
E mantém-me longe do abismo...
És o meu anjo da guarda,
A minha protecção do mal...
O meu escudo divino,
Que detém golpes fatais...
Zelas por mim dia e noite,
Mantendo acesa minha centelha...
Caminhas sempre a meu lado;
Não me abandonas a um futuro incerto...
E afastas assim o medo...
És o meu anjo da guarda,
O meu apoio, minha salvação;
A minha benção de fé,
Que me mantém de pé,
Firme, para a redenção...
O Demónio governa!
Saudações a todos!
Eu sou o vosso padre que rezará por vocês ao Senhor!
Confessem-me os vossos pecados!
Satisfaçam-me com os mais negros!
E satisfaçam assim o Senhor!
Assim é o Seu alimento!
E será esse o vosso destino!
Saciar a maldade...
Com um dos mais satisfatórios frutos das trevas...
O puro pecado!
O que outrora era decadência...
A serpente...
Agora é a realidade...
É esse o fogo que arde na Humanidade...
Que cada vez mais o alimenta...
Ateia-o com a imoralidade, malvadez e hipocrisia!
Adoração ao Demónio!
O meu Senhor!
O vosso Senhor, que vocês tanto idolatram...
E que cinicamente vestem de branco!
Para se esconderem dos fantasmas morais do passado!
Que em certas épocas festivas vos assolam!
Mas no fundo...
Não perdem tempo para retirar as máscaras...
Quando tais épocas findam...
E apressam-se a retomar a doutrina habitual...
Cheia de egoísmo e egocentrismo...
Repleta de crimes e falsidades!
Mas desenganem-se!
Assim, o meu Senhor cada vez mais aumenta a Sua força...
Sustentada por filhos que não são seus...
Mas que traiem seu Pai...
Sem tal se aperceberem, ou talvez não...
Sem se incomodarem...
Sem mão na consciência!
Que agrado me fazem, meus renegados!
Que rica Era que atravessamos!
O Mal impondo-se ao Bem sem ter quem lute pelo contrário!
Mas com tal o meu Senhor não se contenta!
Irá sim, ceifar vossas reles vidas!
Colher vossas almas!
Alimentar-Se do vosso mundo!
Impor-lhe as trevas para todo o sempre!
E tudo, graças a vocês!
À força que lhe transmitiram, praticando a Sua doutrina!
A vossa recompensa?
Irão fazer parte do Seu mundo!
Irão vaguear com Ele pelas trevas!
Serão Seus escravos!
Tudo consequência de um genocídio que será impiedoso...
E que estará para breve!
Rezemos então ao Senhor...
Para que o destino se consuma sem demora...
Descarga
Enquanto me beijas, olho-me ao espelho...
Desces-me ao pescoço e enojo-me com o que vejo...
Cuspo para o reflexo enquanto me babas o corpo...
Arrefeço enquanto aqueces; choro à medida que suas...
Apetece-me fugir mas tens-me bem acorrentado...
...literalmente, já que me algemaste ao cano do lavatório...
Aprisionas-me corpo e espírito em prole do teu prazer...
Esfregas-te num ritmo cada vez mais estonteante, à medida que vais ficando mais molhada, e não é só suor...
Nem te dás conta da minha frigidez, pois teu calor dá para os dois...
Já sufoco de tão açambarcado que estou pelo teu apetite voraz...
Mais não sou que um pedaço de carne atirado aos cães...
À medida que me retalhas, já minha alma havia sido dilacerada à muito...
Dás o golpe final mesmo sem consumares o acto; a excitação transcendeu-te e antecipou-te...
Mas não faz mal! Não te sentes frustrada pois não interessa como, mas sim que o conseguiste...
Regozijas-te assim...
O auge foi rápido e a letargia ainda mais...
Sem mais demoras, despes-te da nudez e abandonas o lugar do crime...
Eu, nem me dou conta que fiquei algemado; o meu pensamento deambula à medida que olho fixamente um rasgo de papel higiénico usado que transborda do caixote do lixo...
Que inveja!...
Caruncho
Estou no meio de um bosque...
Cavo uma vala no chão...
Deito-me nela, e deixo-me estar...
Cubro-me de terra...
Ao fim de uns dias, já sou amigo dos bichos...
Ao fim de umas semanas, já tudo são raízes...
Ao fim de uns anos, sou um belo carvalho...
Quando dou por mim, sou um caixão...
Toque de Luz
Desde que te foste, não mais parou de chover... O próprio mundo chora, partilha o meu sofrer... Todos os dias me pergunto, algo que não sei responder... Como posso ter a ousadia, de sem ti continuar a viver?!... Caminho de cabeça caída; assim está o meu espírito... Ergo-a apenas para o céu, na esperança de ver o teu... A minha dor é tanta; perdi-te e estou perdido... Se alguém tinha que ir, porquê tu e não eu?!... Só me acho em sonhos, pois aí também te encontro... Acordar é o meu pesadelo; viver, o meu tormento... Tornei-me um farrapo humano, tamanha é a amargura... Porque Deus deixou uma alma imunda e levou uma pura?!... Às vezes dou comigo, jogado num canto qualquer... Com o álcool como amigo, uma garrafa como mulher... Todos passam por mim, olham mas sem me ver... Pouco importa também, o que quero é me esconder... Por momentos no meio deles, parece que te vislumbro... Corro no teu encalço, grito mas não me ouves... Entro novamente no vazio e deixo-me ir ao fundo... Meu Deus, chamo tanto por ti, porquê nunca respondes?!... Desespero com o desespero, enquanto espero pela minha hora... Gostava tanto que me viesses buscar, que me levasses daqui para fora!... Já paguei os meus pecados, entrego-me sem mais demora... Mas Deus quer-me a fazer companhia, à restante gente que chora... Egoisticamente que seja, dos outros quero lá saber... Só a ti queria aqui, os outros bem podiam morrer... Por favor volta, não aguento mais esta solidão... Por uma vez mais que fosse, gostava de sentir a tua mão... Encostar a cara ao teu peito, ouvir teu coração... Dormir junto contigo, embalados pela nossa canção... Mas sei que tal não é possível, que estupidez a minha... Teimo em viver no passado, encarcerado nas lembranças... Mas o caminho que percorres agora, não queria que o fizesses sozinha... Não me importo de te ter, mesmo que em falsas esperanças... Assim faço do passado o meu efémero presente... Sei que estou desgastado, cada vez mais demente... Mas não me censurem, em paz deixem-me somente... Pois cá no meu mundo, vou sobrivendo contente... Aqui tudo são fantasmas, espectros errantes... Almas penadas, espíritos deambulantes... Mas a paz é total, acabaram-se os sofrimentos constantes... E para todo o sempre, eu e ela continuaremos a ser amantes...
Cínico espelho meu
És tão promíscuo...
Olho para ti e dá-me vontade de chorar...
Pervertido também...
Tornas-te nojento...
Na tua cabeça desenrolam-se batalhas carnais...
E os soldados, belas amazonas lutam sem armadura...
Dilacerando-se; o sangue, a nu...
E tu, que baba...
Repugnante...
Já nem pensas claramente...
Despes tudo e todas a olho nu...
Já não contolas os teus instintos...animalescos...
A beldade do erotismo passa-te ao lado...
A pornografia?! Ah, doce pecado...
À noite, os teus lençois mais não são que peles macias...
Tacteiam-te a silhueta, intoxicando-te...
Belo sonho que não queres abandonar...
E deixas-te dormir...
Embalado por aromas tépidos e suados...
És marinheiro navegando num mar de mulheres...
Mas não comandas...
És sim comandado, hipnotizado...
És Ulisses sem amarras, ouvindo o cântico das sereias...
Mas de mitológico ou lendário nada tens...
És um simples mortal...
Nada mais...
Emanas um cheiro a fervor, a testosterona e excitação...
Como se quisesses demarcar um território...
Besta selvagem...
Olho para ti e dá-me vontade de rir...
Tenho pena de ti...
Nunca mais te quero ver...
Meu reflexo...