o peso da bigorna
não consigo mais escrever
eu preciso
exorcizar os meus demônios
com água benta
cachaça de banana
ou poesia
será um reflexo da lida contínua
excesso de bagagem
acúmulo de vida?
o que a gente deveria ser
diante dos olhos alheios
em meio ao caos e ao desespero?
o que a gente deveria ser?
diante da culpa
que pesa como uma bigorna
atrofiando meus músculos
atrofiando minha história
atrofiando minha alma
o que?
depois que acordo cínico
de tanto imitar o convencional
não consigo mais
Debaixo dessa pele vive uma mulher
Por dentro deste corpo atravessado
Existe uma alma vadia
De baixo dessas mãos calejadas, de fado
Sê uma bruxa arredia
Os mesmos lábios que conjuram amores
Entoam mil cantigas de escárnio aos trovadores
Debaixo dessas vestes puritanas tem uma diaba
Contida, sofrida, calada.
A QUEDA
eu caí
há uma distância imensurável do chão
e enquanto meu corpo cedia à ordem gravitacional
presumi
que se eu estivesse no outro lado do mundo
estaria flutuando
Delírio
Um diálogo perdido, uma certa apatia
Arrastam as horas de sobra para o fim
O toque maciço, a ferida profunda
Despojam à vera teu anseio por desastre
Repúdio em massa de jovens errantes
À lua distante, se forma diariamente
A velha ranzinza sozinha no mundo
Alimenta os gatos da sua alucinação
O sino da igreja peleja, peleja, peleja
Aporrinhando os vizinhos solenes, sem dó
O delírio dos autos sustentam a farsa
Mania de desgraça habituada a mim
instante
suscita minha febre
com o frio dos teus olhos
(que desviam dos meus)
arranha teu ego
inflama meu ódio
machuca meu senso
e me faz esquecer
que um dia eu existi
Sinergia
Os ócios em clara denúncia despontam o lado abstruso de minha percepção. Eu era fato, eu era tato, eu era são. Eu era, de fato, um estranho velho desconhecido ensaiando infidos sorrisos de fronte para o espelho. A água tórrida do banho me abrangeu e eu desejei ser parte dela; ser diluído; ser transparente; escorrer pelo ralo (...)
Cambaleei pelo corredor estreito até o quarto com o olhar na direção dos pés, impelindo meus restos mortais sem qualquer sinergia. Era tarde da noite, o quarto estava escuro e a mente, vazia. As pálpebras cansadas, o corpo descuidosamente abandonado em leito, uma terrível amnésia vindo à tona e minh’alma vagarosamente se esvaindo.
Logo desejei transformar em palavras escritas cada pensamento errante de minha cabeça. Mas não havia papel, não havia caneta, não havia mão. Não havia nem mesmo cabeça. Não havia nada que pudesse chamar de meu. Destarte, já não era uma questão de possuir, mas de ser. Não era mais. (Não era o que?) Não era eu.
--
A alvorada declara sua apatia em degradé, manifestando-se em tons abrasadores de um novo ciclo. Nenhuma cor, nenhuma dor, era plausível de ser sentida, admirada, respectivamente. E nenhum raio de Sol era convincente o bastante para se fazer entender que todo o valor não jaz na perda, e sim, no recomeço.
Com a face abrigada entre um cobertor negro e penas finas de ganso ou outra ave qualquer, o estranho partiu, rumo à outra dimensão. Se entregou nos braços de Morpheu e então, sucumbiu.
Dandelion
Longínquo campo de amor
Amor-dos-homens, amor de flor
Amor secreto como livro fechado
De fé se move, por asas, alado
Ao campo onde habitas terno
Esperando a brisa do vento eterno
És meu Oráculo e eu o vento
Que sopra tua dor com dor de alento
Para um infinito de porta semi-aberta
Que logo se encerra, em parto, secreta
Como o livro de couro azul-céu encapado
Intitulado "âmago" e pássaros nele desenhado
De liberdade vive, mas finca em teu chão
Nutre-te autotróficamente, meu Dente-de-leão
Coma
PARTE I - O DESPERTAR
Acordei de um sonho, abismado. Molhado de suor, sentindo vertigem e com as pernas trêmulas - mal conseguindo me manter de pé - cambaleei até o lavabo retirando as remelas da face que enfeitavam o amarrotado e me deparei com o espelho. Naquele instante ele era apenas um pedaço de vidro cortado. Emoldurado. Refletindo a parede ladrilhada através de mim. Nada mais. Naquele instante eu só conseguia enxergar o espelho e a parede. Todo o resto ficou embaçado. A única imagem nítida (que provinha do reflexo dos ladrilhos azulados atrás de mim) era estarrecedora. Desmaiei. De fascínio e de pavor. Pela beleza do mosaico. Pela ausência de mim.
PARTE II - AS LUZES
De volta ao sofá, com o sentidos menos apurados, trupiquei. Em sapatos, livros, sacolas de lixo e outros objetos. Havia um mar de coisas dentro da minha sala. Todas elas, jogadas no chão, sem sentido ou valor algum. Me sentei após acender todas as lâmpadas da casa. Exceto a do banheiro - seria anseio por sobriedade ou mera covardia? O relógio marcava 8 e 17 da manhã. Liguei a tv. Sintonizei no canal de esportes olímpicos e assisti à uma partida. Parecia uma espécie de basquete sem rivalidade. Curioso que no lugar de uma bola, haviam várias. Que mais pareciam luzes de neon. Controladas através do poder das mentes de alguém (dos atletas, de seus treinadores, da torcida ou até de mim mesmo mesmo, quem sabe). Era um tipo de poder sobrenatural como a telecinese. Não sei. Desliguei o caixote. Acendi um cigarro. Cochilei.
PARTE III - O RELATO
Em meio a outro sonho, estava eu. Cercado por uma dúzia de jacarés, dentro da minha própria sala. o sofá onde eu dormia tinha se tornado uma ilha rodeada por dentes. Dentes e escamas. Os animais pareciam inofensivos - um não tinha patas, outro lhe faltava a metade do crânio e alguns pareciam mortos - eu sentida medo, todavia. Ao despertar reparei na rosa cor de champanhe que definhava dentro de uma garrafa de cerveja sobre a mesa. Ela não havia sobrevivido nem um dia. Sequer um dia. E ela era tão bonita. Mesmo depois de morta. Ao lado da rosa, havia um notebook. Abri minha caixa de e-mails e descrevi meus sonhos na página de envio. Porque eu nunca me lembrava deles. Desta vez, por alguma razão, resolvi relatar. Depois, me arrumei para o trabalho escutando música clássica. Saí e peguei o metrô. Achei uma vaga disponível pra sentar num banco não preferencial e me acomodei. Adormeci novamente.
PARTE IV - O MECANISMO
Quando abri os olhos, estava há uma estação de distância do meu desembarque. Caminhei sem entusiasmo até o prédio de 31 andares localizado no centro da cidade. Entrei no elevador. Apertei o 12. Trabalhei. Trabalhei não. O que é que as máquinas fazem? Tudo o que eu fazia era apertar botões. E beber café. Troquei algumas palavras vazias com colegas que não sabia o nome e com outros que me chamavam de amigo. Quem era aquela gente toda afinal? Na hora do intervalo, tirei uma soneca de 20 minutos e adivinha só: sonhei de novo! Desta vez, parecia a continuação de um sonho anterior. Algum que eu havia me esquecido de relatar. O do cochilo no metrô, talvez. Eu era Mozart. E tocava numa roda de samba. Certa música bem triste que eu não conseguia identificar. Logo voltei à interminável labuta. Antes a eloquência do espírito. Previamente, digitei outro e-mail com o enredo dos novos sonhos. Recomecei o processo mecânico até o fim do expediente. Bati o ponto e fui o primeiro a descer o elevador. Sozinho. Graças a deus. Não me despedi de ninguém. Tudo o que eu queria era pegar o meio de transporte mais lento para demorar um pouquinho mais pra chegar em casa naquele dia. E cochilar mais um pouco no caminho. Foi o que ocorreu.
PARTE V - A LUCIDEZ
Durante este repouso não houve projeção alguma. Eu estava ficando cada vez mais lúcido e isso me abateu como frango no abatedouro. O frango, neste caso, era eu. E o abatedor, a verdade. Queria mesmo era escapar dessa tal distopia disfarçada de realidade, ora. No caminho de volta pro cafofo, esbocei algumas notas melancólicas. Sibilando entre os lábios e a alma algo que me fizesse voltar ao meu estado mais criativo. Minha casa cheirava a mofo e nicotina. Todas aquelas coisas ainda estavam espalhadas no chão. Me despi e fumei uma palha enquanto checava meus e-mails recebidos durante o dia. E lá estavam minhas notas. Enviadas para mim mesmo. Movi para a lixeira. Todas elas. Tomei um banho quente que durou cerca de uma hora. Um incenso de alfazema aromatizava o ambiente. O espelho, estava embaçado. Provável. Pela presença da fumaça que emanava do chuveiro elétrico. E pela do incenso. Certeza. Não olhei na sua direção. Não desta vez. Me vesti e fui deitar no sofá. Apático. Aumentei minha dose de calmante diária e apaguei ali. Sem sonho. Sem realidade. Sem mim. Em coma.
Interrupção
Gostava de esbarrar nas plantas pelo caminho
Era o único momento que algo sentia
As folhas verdes tocando sua pele
As folhas
Elas
Tocavam
Mais do que a pele
Despertavam um senso de veemência
Por um instante
E a vida fazia algum sentido
Por um instante
Tudo era mais cabido
Só por um instante
Seu corpo, sua mente e tudo ao seu redor
Estavam completamente vivos
Renascimento
Perdi a conta de quantas vezes eu já morri nesta vida.