O estardalhaço
Abri os olhos e cerrei o punho
Vesti meu melhor suéter (era 21 de junho)
Asfalto molhado; ar e grama secos
O vento ecoava seus lamentos por entre os becos
De vestido amarelo e carne nua
Avistei você, divagando absorta pela rua
Rezando em febre a prece
Não há desgosto, morena, que lhe carece!
O frio à pele tormenta
Lábios carnudos debaixo da cor magenta
E meu senso, meu Cosmos, prevê
Suas pestanas em brasa, divagando o parecer
Mas enquanto o estardalhaço se afirma
Cê dança, cê brinca... cê me abisma!
Pois o coro revela-se animado
E com seus passos, sua dança, continuo abismado
Como pode, tão infeliz, dançar assim?
De repente, cê parou, cê me olhou e sorriu pra mim
A teia
Hoje é fácil saber das coisas
Calar a voz, reblogar as fotos
Difícil é alimentar a causa
Vestir a camisa, apoiar os fatos
Inventar verdades, iludir a massa
Explanando a futilidade alheia
Alimentar falácias, de graça
Prendendo a mosca na teia
Se bem aplicada tal inclusão
Haveria menos vespas
O que se vê nessa torpe expansão
É o original dando lugar às aspas
Parte do céu, parte do chão
De mãos atadas e logro cerrado, lá vai o vagabundo
De passos solenes e olhos vertidos, ele carrega o peso do mundo
Um silencio abrangido, o mito oriundo
São propícios em cadafalso distorvo, remido, profundo
E cada passo dado é um fardo pesado
Andejando entre abutres, mal vive, coitado
Ele é a natureza descabida de um mortal desajustado:
Se enleva com poesia barata, com tudo o que é torto e inacabado
Algo familiar entre as nuvens, seu quinhão
Sempre lhe fizera parte do céu e parte do chão
Com o que existe entre eles, não há alguma identificação
Seu acaso ladeia o revés. Vagabundo são!
A Viagem
Segue os passos indolentes de um vassalo que rasteja arduamente em seu legado, praguejando algo em sigilo.
— Pérfido destino!
Enquanto sua própria dor atina, segue em direção à rua calçada com pedras retangulares cheias de musgos e ipês floridos à sua beirada, se recordando das palmas estendidas, da face levemente ruborizada e dos beijos inacabáveis.
À espreita estava ela (a Lua), decorando a noite sombria. Era confidente e guardiã nas demasiadas horas da primavera. Sua única testemunha incumbida. Acima das nuvens ensanguentadas de escarlate, observava.
Repentinamente, algo o acomete, como uma epifania. Estava aprisionado, novamente, em um de seus próprios aforismos. Divagando entre os fatos coagidos e seu mundinho extraordinariamente ilusório. Era como se a utopia fosse realidade e a realidade, utopia. E, sob o efeito do clarão de uma ideia, retomou a consciência por autocompaixão e senso de coesão instantâneo. Meramente, haveria tido sorte. Após recuperar a visão, vagava a centímetros de distância de um veículo célere e descontrolado (percebera).
— Azarão! — fora o que, de fato, pensara.
— Quanto tempo se leva para ir até a Lua e voltar? — refletiu. Por dias, voltou-se para dentro de si, encerrou as coisas pela metade e recusou-se a dormir.
— Jah! Passo horas despertado, arruinando as fortalezas de minha própria destreza com abuso de paixões, devaneios, cigarro e as mentiras de sempre. — percebeu com certo horror espasmódico. — E ainda assim, é mais comovente do que aquela velha clinomania estagnada... — Antes que pudesse concluir os pensamentos, sua língua se movera lentamente enquanto a boca se abria, absorvendo ar suficiente para dar impulso às cordas vocais que, vibrando, se tornaram verborragicamente lacônicas. Apavorado, o vassalo sibilava a resposta por entre os dentes:
— Segundos.
Prelúdio
Eu ouço passos apressados. De pés que pisam com rancor no chão amadeirado. Como um predador à procura. Voraz. Imponente. Prestes a dominar sua caça. As luzes estão apagadas e a casa vazia. Exceto pela presença de mim. E dos passos apressados. Me recobro de fios de algodão e de horror. A porta do quarto está entreaberta. E do meu cobertor, sobressalta um olho. A retina do meu glóbulo ocular esquerdo presencia a mais assombrosa cena de sua vida útil. Uma sombra monstruosamente gigantesta, sobrehumana, peranbula pelo corredor. Sem adentrar o cômodo. Num instante, o que era sombra, agora é apenas um feixe de luz. Instante. Segundos. Tempo o suficiente para pestanejar e acordar em um sonho perturbador. Eu sinto medo. Do inimigo que ronda meus aposentos. Eu ouço passos e dobradiças chiando. Passos e dobradiças. As portas e janelas do casarão foram implantadas nos anos 70 e jamais substituidas. Por isso são repletas de sinfonia. Mas nunca imitaram o som das andanças humanas. Os passos seguem firmes. Como de alguém que pisa com o calcanhar. Num ritmo acelerado. Esse tal andande de passos abruptos continua a sua ronda. E eu continuo ouvindo seus passos. Agora também, o som da maçaneta. Mas não a maçaneta do quarto. Uma outra qualquer. Talvez a da porta dos fundos. De repente não há mais som algum. Um silêncio abrangente acaricia meu desespero. Como um afago. Caio no sono. Lentamente. Desperto no meio da noite suando pavores. Respirando precárias. Acendo a luz do quarto e reparo em um detalhe. A porta do quarto está fechada. Sem brecha alguma. Antes, semiaberta. Agora completamente fechada. Elevo minhas mãos ao puxador. Perplexo. Logo sinto uma corrente de ar emanando do corredor. E parece que vem da cozinha. Me desloco aos fundos da casa por impulso. A porta, de madeira com dois trincos de ferro e uma fechadura está escancarada. Em plena madrugada. Nao me recordo de tê-la destrancado. Saio por ela todavia. Respiro fundo me debruçando no parapeito da varanda. Observando a rua vazia de passos humanos, os carros estacionados nas calçadas, o silêncio do breu e as falhas nas lâmpadas dos postes de luz. Que horas acendem, horas apagam. Sem alguma razão. Permaneço ali. Acompanhado de minhas olheiras. E não mais retorno ao leito. Pelo menos até os primeiros raios solares do dia aparecerem e as primeiras almas andantes saírem de suas casas em marcha sincronizada à labuta diária. Com seus passos apressados, destinados. Porém humanos.
nos confins
é condicional
a sua eloquência
depende da falta
de todo rancor
depende do vento
por consequência
a minha indecência
te faz desistir
te causa pavor
te afasta de mim
eu era leal
a tal confidência
por tantos afins
por todo encanto
e todo o sentir
agora é banal
e aquela essência
se perdeu nos confins
do espaço entre nós
no desencantamento
(do seu julgamento)
caleidoscópio
detrás
da fumaça
que escapa por entre os dentes
amarelos
ela só sabe ver seu rosto
barbado
como miragem apreciada
no alto das pedras
do Arpoador
em uma tarde chuvosa de segunda
(ela não liga)
seus olhos embaçados, alumiados
pelo lusco-fusco
avermelhados, irritados
te enxergam
mesmo em meio ao blecaute
ela adora quando você aparece
no caleidoscópio dela
sabia?
poque ela só te vê
ela vê as cores
e você
quando dorme, tarde da noite
adivinha quem da o ar da graça
enquanto ela sonha
?
e quando acorda
descabelada
esboça um sorriso
manso
e fecha os olhos
castanhos
para te ver de novo
rapaz
só para te ver
Projeção
Como um retrato, eu vejo nós dois.
Passeando pela Avenida 9 de Julho, em pleno setembro.
Mascando goma de tabaco e divagando sobre como éramos insanos. Bons tempos, até.
Eu, vestindo um suéter novo, barba mal feita e você, com os velhos sapatos de sempre
E esse sorriso – tenro em face destemida.
Teus olhos brilhando pela intensidade de tudo
E os meus, choramingando paixão pela arte da vida, das coisas e você.
Imagino com serão as tuas rugas (pausa reflexiva);
Que tamanho teriam as tuas orelhas (pausa reflexiva dramática)
E como seria o seu cabelo.
Como uma imagem, eu te vejo.
Projetando os sonhos de uma sociedade mais franca/justa/progressiva
E eu, como sempre, divergindo – contudo, o apreciando em segredo.
Eu vejo nós dois;
Eu vejo teu rosto e me arrepio, só de ver;
Eu vejo você dançar ao som de uma canção pop e me sinto embaraçado.
Ah, mas como eu me sinto seguro! A ponto de pegar na sua mão, sem receios
(em plena Avenida 9 de Julho)
Que debaixo de uma chuva efêmera, me vem uma vontade de dizer:
– Os bons tempos nunca se foram.
Coma
PARTE I - O DESPERTAR
Acordei de um sonho, abismado. Molhado de suor, sentindo vertigem e com as pernas trêmulas - mal conseguindo me manter de pé - cambaleei até o lavabo retirando as remelas da face que enfeitavam o amarrotado e me deparei com o espelho. Naquele instante ele era apenas um pedaço de vidro cortado. Emoldurado. Refletindo a parede ladrilhada através de mim. Nada mais. Naquele instante eu só conseguia enxergar o espelho e a parede. Todo o resto ficou embaçado. A única imagem nítida (que provinha do reflexo dos ladrilhos azulados atrás de mim) era estarrecedora. Desmaiei. De fascínio e de pavor. Pela beleza do mosaico. Pela ausência de mim.
PARTE II - AS LUZES
De volta ao sofá, com o sentidos menos apurados, trupiquei. Em sapatos, livros, sacolas de lixo e outros objetos. Havia um mar de coisas dentro da minha sala. Todas elas, jogadas no chão, sem sentido ou valor algum. Me sentei após acender todas as lâmpadas da casa. Exceto a do banheiro - seria anseio por sobriedade ou mera covardia? O relógio marcava 8 e 17 da manhã. Liguei a tv. Sintonizei no canal de esportes olímpicos e assisti à uma partida. Parecia uma espécie de basquete sem rivalidade. Curioso que no lugar de uma bola, haviam várias. Que mais pareciam luzes de neon. Controladas através do poder das mentes de alguém (dos atletas, de seus treinadores, da torcida ou até de mim mesmo mesmo, quem sabe). Era um tipo de poder sobrenatural como a telecinese. Não sei. Desliguei o caixote. Acendi um cigarro. Cochilei.
PARTE III - O RELATO
Em meio a outro sonho, estava eu. Cercado por uma dúzia de jacarés, dentro da minha própria sala. o sofá onde eu dormia tinha se tornado uma ilha rodeada por dentes. Dentes e escamas. Os animais pareciam inofensivos - um não tinha patas, outro lhe faltava a metade do crânio e alguns pareciam mortos - eu sentida medo, todavia. Ao despertar reparei na rosa cor de champanhe que definhava dentro de uma garrafa de cerveja sobre a mesa. Ela não havia sobrevivido nem um dia. Sequer um dia. E ela era tão bonita. Mesmo depois de morta. Ao lado da rosa, havia um notebook. Abri minha caixa de e-mails e descrevi meus sonhos na página de envio. Porque eu nunca me lembrava deles. Desta vez, por alguma razão, resolvi relatar. Depois, me arrumei para o trabalho escutando música clássica. Saí e peguei o metrô. Achei uma vaga disponível pra sentar num banco não preferencial e me acomodei. Adormeci novamente.
PARTE IV - O MECANISMO
Quando abri os olhos, estava há uma estação de distância do meu desembarque. Caminhei sem entusiasmo até o prédio de 31 andares localizado no centro da cidade. Entrei no elevador. Apertei o 12. Trabalhei. Trabalhei não. O que é que as máquinas fazem? Tudo o que eu fazia era apertar botões. E beber café. Troquei algumas palavras vazias com colegas que não sabia o nome e com outros que me chamavam de amigo. Quem era aquela gente toda afinal? Na hora do intervalo, tirei uma soneca de 20 minutos e adivinha só: sonhei de novo! Desta vez, parecia a continuação de um sonho anterior. Algum que eu havia me esquecido de relatar. O do cochilo no metrô, talvez. Eu era Mozart. E tocava numa roda de samba. Certa música bem triste que eu não conseguia identificar. Logo voltei à interminável labuta. Antes a eloquência do espírito. Previamente, digitei outro e-mail com o enredo dos novos sonhos. Recomecei o processo mecânico até o fim do expediente. Bati o ponto e fui o primeiro a descer o elevador. Sozinho. Graças a deus. Não me despedi de ninguém. Tudo o que eu queria era pegar o meio de transporte mais lento para demorar um pouquinho mais pra chegar em casa naquele dia. E cochilar mais um pouco no caminho. Foi o que ocorreu.
PARTE V - A LUCIDEZ
Durante este repouso não houve projeção alguma. Eu estava ficando cada vez mais lúcido e isso me abateu como frango no abatedouro. O frango, neste caso, era eu. E o abatedor, a verdade. Queria mesmo era escapar dessa tal distopia disfarçada de realidade, ora. No caminho de volta pro cafofo, esbocei algumas notas melancólicas. Sibilando entre os lábios e a alma algo que me fizesse voltar ao meu estado mais criativo. Minha casa cheirava a mofo e nicotina. Todas aquelas coisas ainda estavam espalhadas no chão. Me despi e fumei uma palha enquanto checava meus e-mails recebidos durante o dia. E lá estavam minhas notas. Enviadas para mim mesmo. Movi para a lixeira. Todas elas. Tomei um banho quente que durou cerca de uma hora. Um incenso de alfazema aromatizava o ambiente. O espelho, estava embaçado. Provável. Pela presença da fumaça que emanava do chuveiro elétrico. E pela do incenso. Certeza. Não olhei na sua direção. Não desta vez. Me vesti e fui deitar no sofá. Apático. Aumentei minha dose de calmante diária e apaguei ali. Sem sonho. Sem realidade. Sem mim. Em coma.
sucumbi
estive tentando lembrar
de um sonho que sonhava dormindo
um sonho qualquer
nada específico
algo que despertasse uma loucura
ou um senso de criatividade mórbido
não consegui
aos 30 nem tudo parece cabível
nem mesmo o tempo
que se passa devagar
e quando vejo, já passou
e o que eu perdi?
o que eu perdi?
enquanto sonhava acordado esse tempo todo
divagando sobre alentamentos
amores e tal
quantos cigarros eu fumei?
quantos cigarros fumei?
enquanto encenava inúmeros atos
que nunca cometi
meus olhos ainda choram
meu coração ainda bate
meu peito ainda arde
em chamas brandas
mas arde
pelas coisas da vida
por um rosto bonito
em outro corpo
em outro lugar
em outro tempo
eu estive acordado
eu estive consciente e
(na maioria das vezes)
impaciente
desejando mais do que podia ter
prometendo mais do que podia dar
seria eu apenas
uma peça de um jogo mal jogado?
uma piada fraca e mal contada?
já é hora de deitar
porque eu não posso mais me atrasar
depois dos 30
me convenci de que sonhar dormindo
é muito mais produtivo