A Voz do Amor |
em 13/01/2014 12:21:08 (3493 leituras) |
Nessa pupila rútila e molhada, Refúgio arcano e sacro da Ternura, A ampla noite do gozo e da loucura Se desenrola, quente e embalsamada.
E quando a ansiosa vista desvairada Embebo às vezes nessa noite escura, Dela rompe uma voz, que, entrecortada De soluços e cânticos, murmura...
É a voz do Amor, que, em teu olhar falando, Num concerto de súplicas e gritos Conta a história de todos os amores;
E vêm por ela, rindo e blasfemando, Almas serenas, corações aflitos, Tempestades de lágrimas e flores...
Olavo Bilac, in "Poesias" |
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Hoje... |
em 04/12/2013 22:36:54 (3434 leituras) |
"Hoje declarei em casa de uns amigos que a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua intimidade. Escrever versos diante dela é qualquer coisa como parir com um Cristo à cabeceira da cama." |
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A Minha Lista dos Grandes Autores |
em 23/11/2013 12:45:30 (1889 leituras) |
Uma revista espanhola teve a ideia de pedir a uns quantos escritores que elaborassem a sua árvore genealógica literária, isto é, a que outros autores consideravam eles como avoengos seus, directos ou indirectos, excluindo-se do inventado parentesco, obviamente, qualquer presunção de relações ou equivalências de mérito que a realidade, pelo menos no meu caso, logo se encarregaria de desmentir. Também se pedia que, em brevíssimas palavras, fosse dada a justificação dessa espécie de adopção ao contrário, em que era o «descendente» a escolher o «ascendente». A cada escritor consultado foi entregue o desenho de uma árvore com onze molduras dispersas pelos diferentes ramos, onde suponho que hão-de vir a aparecer os retratos dos autores escolhidos. A minha lista, com a respectiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque, como escrevi no «Ano da Morte de Ricardo Reis», todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, porque demonstrou que não é preciso ser-se génio para escrever um livro genial, o «Húmus»; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é um coleóptero; Eça de Queiroz, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luis Borges, porque inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou a vida humana e achou-a triste.
José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1996)' |
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A Opinião Pura e Elevada |
em 16/10/2013 21:24:06 (1823 leituras) |
A opinião que se emite ou a regra que se estabelece não tem que se importar com as circunstâncias em que se encontram os homens nem com as possibilidades de acolhimento ou recusa que o mundo lhe oferece; o que é hoje grão seco levanta-se amanhã sobre as ondas do campo como a espiga mais alta e mais cheia; o culto da verdade não se compadece com a adoração dos deuses que presidem aos dias nem com a vã agitação que é de regra no formigueiro humano; cada um tomará o que se diz como quiser; a sua atitude, porém, só interessará enquanto fenómeno base para uma nova legalidade. Não há aqui nem indiferença, nem egoísmo; é mais larga a alma que a par do amor dos homens actuais sente vibrar o amor dos homens do futuro, mais forte o espírito que se orienta para o eterno; a justiça sempre o terá a seu lado armado de todas as armas, não porque sinta para ela um impulso momentâneo mas porque a defende em qualquer tempo; e sempre se há-de recusar, sejam quais forem as razões, a passar em claro uma injustiça ou a servir-se de qualquer meio, apenas porque tal proceder se aparenta vantajoso aos seus interesses ou aos interesses dos seus amigos.
O compromisso pode tornar-se necessário para que a vida se mantenha; mas já essa mesma vida é grande e bela só quando, pelo menos, tende à rigidez das regras absolutas; e a superioridade das nações, a superioridade que há-de acabar por triunfar, consiste no maior número de espíritos que são capazes de optar pela norma quando ela se encontra em conflito com a vida. Quem pretende servir os homens tem aí a melhor dádiva a fazer-lhes: a de se manter sem desvio nas épocas piores, quando todos os outros recorreram ao subterfúgio e a todos cegou a mesma escuridão de um mal presente.
Agostinho da Silva, in 'Considerações' |
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O Pessimismo é Excelente para os Inertes |
em 02/10/2013 12:26:17 (2936 leituras) |
O Pessimismo é uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o tornar uma lei universal, a lei própria da Vida; portanto lhe tira o carácter pungente de uma injustiça especial, cometida contra o sofredor por um Destino inimigo e faccioso! Realmente o nosso mal sobretudo nos amarga quando contemplamos ou imaginamos o bem do nosso vizinho - porque nos sentimos escolhidos e destacados para a Infelicidade, podendo, como ele, ter nascido para a Fortuna. Quem se queixaria de ser coxo - se toda a humanidade coxeasse? E quais não seriam os urros, e a furiosa revolta do homem envolto na neve e friagem e borrasca de um Inverno especial, organizado nos céus para o envolver a ele unicamente - enquanto em redor toda a humanidade se movesse na benignidade de uma Primavera? (...) O Pessimismo é excelente para os Inertes, porque lhes atenua o desgracioso delito da Inércia.
Eça de Queirós, in 'A Cidade e as Serras' |
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Emprego e Desemprego do Poeta |
em 22/08/2013 20:45:24 (1570 leituras) |
Deixai que em suas mãos cresça o poema como o som do avião no céu sem nuvens ou no surdo verão as manhãs de domingo Não lhe digais que é mão-de-obra a mais que o tempo não está para a poesia
Publicar versos em jornais que tiram milhares talvez até alguns milhões de exemplares haverá coisa que se lhe compare? Grandes mulheres como semiramis públia hortênsia de castro ou vitória colonna todas aquelas que mais íntimo morreram não fizeram tanto por se imortalizar
Oh que agradável não é ver um poeta em exercício chegar mesmo a fazer versos a pedido versos que ao lê-los o mais arguto crítico em vão procuraria quem evitasse a guerra maiúsculas-minúsculas melhor Bem mais do que a harmonia entre os irmãos o poeta em exercício é como azeite precioso derramado na cabeça e na barba de aarão
Chorai profissionais da caridade pelo pobre poeta aposentado que já nem sabe onde ir buscar os versos Abandonado pela poesia oh como são compridos para ele os dias nem mesmo sabe aonde pôr as mãos
Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates" |
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O mundo só se dá para os simples |
em 20/08/2013 15:04:06 (2953 leituras) |
Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo e a fome com que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo não se queria comível. Ele se queria comível sim — mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta é exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por orgulho que não doía eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver — e eu pensava que esta sim, é livre. Mas como foi que transformei sem nem sentir a alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? No entanto no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não era uma doçura de amor pelo mundo: era uma avidez de luxúria pelo mundo. E o mundo de novo se retraiu e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo me espantava na minha insónia sem eu entender que a noite do mundo e a noite do viver são tão doces que até se dorme.
Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1971)' |
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Grandeza do Homem |
em 30/07/2013 16:16:04 (2278 leituras) |
Somos a grande ilha do silêncio de deus Chovam as estações soprem os ventos jamais hão-de passar das margens Caia mesmo uma bota cardada no grande reduto de deus e não conseguirá desvanecer a primitiva pegada É esta a grande humildade a pequena e pobre grandeza do homem
Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates" |
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Conheço o Sal |
em 13/07/2013 17:44:12 (2289 leituras) |
Conheço o sal da tua pele seca depois que o estio se volveu inverno da carne repousando em suor nocturno.
Conheço o sal do leite que bebemos quando das bocas se estreitavam lábios e o coração no sexo palpitava.
Conheço o sal dos teus cabelos negros ou louros ou cinzentos que se enrolam neste dormir de brilhos azulados.
Conheço o sal que resta em minha mãos como nas praias o perfume fica quando a maré desceu e se retrai.
Conheço o sal da tua boca, o sal da tua língua, o sal de teus mamilos, e o da cintura se encurvando de ancas.
A todo o sal conheço que é só teu, ou é de mim em ti, ou é de ti em mim, um cristalino pó de amantes enlaçados.
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Iluminuras |
em 06/07/2013 17:43:35 (2284 leituras) |
ILUMINURAS Artur Rimbaud
DEPOIS DO DILÚVIO Assim que a ideia do Dilúvio sossegou, Uma lebre se deteve entre trevos e campânulas cambiantes, e fez sua prece ao arco-íris, através da teia de aranha. Oh! as pedras preciosas que se escondiam, - e as flores que já olhavam. Na grande rua suja açougues se abriram, e barcos foram lançados nos degraus do mar lá no alto como nas gravuras. O sangue correu, no Barba-Azul, - nos matadouros, - nos circos, onde o selo de Deus empalidecia as janelas. O sangue e o leite correram. Castores construíram. "Mazagrans" enfumaçaram os botecos. Na imensa mansão de vidros ainda gotejantes, meninos de luto admiram imagens maravilhosas.
Uma porta bateu, - e sobre a praça da vila, o menino girou os braços, compreendidos os cata-ventos e galos dos campanários de toda parte, sob um temporal cintilante. Madame *** instalou um piano nos Alpes. A missa e as primeiras comunhões foram celebradas nos cem mil altares da catedral. As caravanas partiram. E o Splendide-Hotel foi erguido no caos de gelo e da noite polar. Desde então, a Lua ouviu o uivo dos chacais nos desertos de timo, - e écoglas de tamancos grunhindo no pomar. Depois, na floresta violeta, florescente, Êucaris me disse que era a primavera. - Lago, salte, - Espuma, role sobre aponte e por cima desses bosques; - panos negros e órgãos, - trovão e raio, - subam e rolem; - águas e tristeza, subam e renovem esses Dilúvios. Pois desde que dissiparam, - Oh as pedras preciosas se enterrando, e as flores se abrindo! - tudo é um tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa num pote de barro, não vai querer jamais nos contar tudo o que sabe, e que nós ignoramos. |
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O Inferno de Ser Eu |
em 27/06/2013 19:41:49 (3222 leituras) |
Ficarei o Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta, Expulsão-Ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo, mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do próprio mistério, da própria Vida. Habitarei eternamente o deserto morto de mim, erro abstracto da criação que me deixou atrás. Arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia (estéril) do regresso a ser. Não poderei sentir porque não terei matéria com que sinta, não poderei respirar alegria, ou ódio, ou horror, porque não tenho nem a faculdade com que o sinta, consciência abstracta no inferno do não conter nada, não-Conteúdo Absoluto, [Sufocação] absoluta e eterna! Oco de Deus, sem universo, (...).
Fernando Pessoa, 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (1915)' Tema(s): Auto-conhecimento |
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Como Amo |
em 10/06/2013 23:10:16 (3200 leituras) |
Como? Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles eu vos disse: Eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita. Sinto-me de repente tão responsável. Porque se sempre eu soube usar a palavra — embora às vezes gaguejando — então sou uma criminosa se não disser, mesmo de um modo sem jeito, o que quereis ouvir de mim. O que será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não sei tocá-lo, eis a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de coragem? Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto o que sinto: amor pelos outros? Para salvar esta madrugada de lua cheia eu vos digo: eu vos amo. Não dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras. E dói ser tão pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao terraço e vi a lua cheia — sou muito mais lunar que solar. É uma solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão me toma se eu não escrever: eu vos amo. Como explicar que me sinto mãe do mundo? Mas dizer «eu vos amo» é quase mais do que posso suportar! Dói. Dói muito ter um amor impotente. Continuo porém a esperar.
Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1968)' |
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Canção dos romances perdidos |
em 05/06/2013 18:13:39 (3239 leituras) |
Oh! o silêncio das salas de espera Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...
O silêncio das salas de espera E aquela última estrela...
Aquela última estrela Que bale, bale, bale, Perdida na enchente da luz...
Aquela última estrela E, na parede, esses quadrados lívidos De onde fugiram os retratos...
De onde fugiram todos os retratos...
E esta minha ternura, Meu Deus, Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!... |
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Quando me amei de verdade |
em 28/05/2013 16:08:29 (4792 leituras) |
Quando me amei de verdade, deixei de me contentar com pouca coisa.
Quando me amei de verdade, tomei contato com a minha própria bondade.
Quando me amei de verdade, comecei a valorizar o dom da vida com a maior gratidão.
Quando me amei de verdade, pude compreender que, em qualquer circunstância, eu estava no lugar certo, na hora certa. Então, pude relaxar.
Quando me amei de verdade, consegui moderar meu ritmo e minha pressa. E isso fez uma enorme diferença na minha vida.
Quando me amei de verdade, aprendi a gostar de estar sozinha, rodeada pelo silêncio, usufruindo sua magia, prestando atenção ao meu espaço interior.
Quando me amei de verdade, percebi que posso não ser uma pessoa especial, mas que sou única.
Quando me amei de verdade, reformulei meu conceito de sucesso e a vida ficou mais simples. Ah, quanto prazer isso me trouxe!
Quando me amei de verdade, entendi que sou digna de conhecer Deus diretamente.
Quando me amei de verdade, comecei a ver que eu não tinha de sair em busca da vida. Se eu ficar quieta e parada, a vida vem até mim.
Quando me amei de verdade, deixei de achar que a vida é dura, e pude perceber que o sofrimento emocional é um sinal de que estou indo contra a minha verdade.
Quando me amei de verdade, aprendi a satisfazer meus desejos, sem achar que era egoísmo.
Quando me amei de verdade, partes minhas que eu ignorava desistiram de disputar minha atenção. Foi o início da paz interior. Comecei então a ver tudo mais claro.
Quando me amei de verdade, comecei a perceber que os desejos do coração acabam se realizando e passei a ter mais calma e paciência, exceto quando esqueço disso.
Quando me amei de verdade, desisti de ignorar ou de suportar meu sofrimento. Comecei a perceber todos os meus sentimentos, sem analisá-los. Sentindo-os de verdade. Quando faço isso, acontece uma coisa incrível. Experimente. Você vai ver.
Quando me amei de verdade, meu coração se encheu de tanta ternura que pôde acolher tanto a alegria quanto a tristeza.
Quando me amei de verdade, comecei a meditar diariamente, e descobri que este é um ato de profundo amor por mim mesma.
Quando me amei de verdade, sempre que fico ansiosa, zangada, inquieta ou triste, pergunto a mim mesma: “Quem, dentro de mim, está se sentindo assim?” Se eu escutar com paciência, descubro quem é que precisa do meu amor.
Quando me amei de verdade, deixei de precisar das coisas e das pessoas para me sentir segura.
Quando me amei de verdade, parei de desejar que a minha vida fosse diferente e comecei a ver que tudo o que acontece contribui para o meu crescimento.
Quando me amei de verdade, comecei a entender a complexidade, o mistério e a vastidão da minha alma. Que tolice pensar que posso conhecer o sentido da vida de alguém!
Quando me amei de verdade, desisti de projetar nos outros as minhas forças e fraquezas, e guardei-as comigo.
Quando me amei de verdade, comecei a perceber uma presença divina dentro de mim e a ouvir sua orientação. Estou aprendendo a confiar e a viver de acordo com ela.
Quando me amei de verdade, desisti de ficar exausta por me empenhar tanto. Comecei a sentir uma comunidade dentro de mim. Essa equipe interna, com múltiplos talentos e características próprias, é a minha força e o meu potencial. Fazemos reuniões de equipe.
Quando me amei de verdade, parei de me culpar pelas escolhas que fiz e que me faziam sentir segura. Passei a me responsabilizar por elas.
Quando me amei de verdade, comecei a perceber como é ofensivo tentar forçar alguma coisa ou alguém que ainda não está preparado. Inclusive eu mesma. Quando me amei de verdade, passei a caminhar todos os dias, a usar a escada em vez do elevador e a escolher sempre o caminho mais bonito.
Quando me amei de verdade, passei a ser a minha própria autoridade, ouvindo apenas a sabedoria do meu coração. É assim que Deus fala comigo. Isso é o que se chama de intuição.
Quando me amei de verdade, comecei a sentir um grande alívio. O meu lado impulsivo aprendeu a esperar pelo momento certo. Então eu me tornei lúcida e corajosa. E passei a aceitar o inaceitável.
Quando me amei de verdade, comecei a ver que o meu ego é parte da minha alma. Ao perceber isso, meu ego perdeu sua estridência e paranoia e pôde me servir melhor.
Quando me amei de verdade, comecei a me livrar de tudo que não fosse saudável. Isso quer dizer: pessoas, tarefas, crenças e hábitos - qualquer coisa que me pusesse pra baixo. Minha razão chamou isso de egoísmo. Mas hoje eu sei que é amor-próprio.
Quando me amei de verdade, consegui falar a verdade sobre meus talentos e minhas limitações.
Quando me amei de verdade, consegui ter consciência, nos períodos de confusões, disputas ou desgostos, de que essas coisas também fazem parte de mim e merecem o meu amor.
Quando me amei de verdade, passei a saber qual era o meu objetivo e a me afastar suavemente das distrações.
Quando me amei de verdade, vi que tudo a que eu resistia persistia. Igual a uma criança pequena dando puxões na minha saia. Hoje, quando a resistência fica me puxando, eu olho para ela e afasto-a gentilmente.
Quando me amei de verdade, aprendi a dizer não quando quero e a dizer sim quando quero.
Quando me amei de verdade, passei a encontrar um prazer cada vez maior na solidão e a usufruir a inexplicável e profunda satisfação que sua companhia traz.
Quando me amei de verdade, confessei serenamente minha coragem e meu medo, minha ingenuidade e minha sabedoria, e arranjei um lugarzinho para cada um em volta da minha mesa.
Quando me amei de verdade, descobri as lições que a minha raiva me dá sobre responsabilidade, e a minha arrogância, sobre humildade. Agora ouço as duas com muita atenção.
Quando me amei de verdade, desisti de querer ter sempre razão, e com isso errei muito menos vezes.
Quando me amei de verdade, aprendi a chorar as dores da vida no momento em que elas acontecem, em vez de sobrecarregar meu coração arrastando-as por aí.
Quando me amei de verdade, comecei a ouvir a sabedoria do meu corpo. Ele fala claramente através do cansaço, das sensações, das antipatias e dos desejos.
Quando me amei de verdade, deixei de ter medo do medo.
Quando me amei de verdade, desisti de ficar revivendo o passado e de me preocupar com o futuro. Isso me mantém no presente, que é onde a vida acontece.
Quando me amei de verdade, percebi que a minha mente pode me atormentar e me decepcionar. Mas quando eu a coloco a serviço do meu coração, ela se torna uma grande e valiosa aliada.
por Kim McMillen - do Livro "Quando me amei de verdade" |
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O Poeta canta a si mesmo |
em 27/05/2013 22:39:04 (2405 leituras) |
O poeta canta a si mesmo porque nele é que os olhos das amadas têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...
O poeta canta a si mesmo porque num seu único verso pende - lúcida, amarga - uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...
Porque o seu coração é uma porta batendo a todos os ventos do universo.
Porque além de si mesmo ele não sabe nada ou que Deus por nascer está tentando agora ansiosamente respirar neste seu pobre ritmo disperso!
O poeta canta a si mesmo porque de si mesmo é diverso.
(Esconderijos do Tempo) |
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CANÇÃO PARA A MINHA VIÚVA |
em 19/05/2013 01:42:06 (1400 leituras) |
Canção para a Minha Viúva
quando for chegada a hora de vestirem-me a mortalha não faz da minha morte amor teu cavalo de batalha
deves chorar mas bem pouco e de maneira discreta três lágrimas pelo louco cinco ou seis pelo poeta
seja tudo sem delongas poupa-me desses horrores das inúteis preces longas e das coroas de flores
livra-me das frases feitas na verdade nunca fui bom mas enfeita a minha testa com a marca do teu batom
por mim ficas dispensada da condição de viúva desejo que minha morte caia-te como uma luva
se acaso sobrar dinheiro não maldiz a tua sina laça de cara o primeiro e vai com ele pra china
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Namorados do Mirante |
em 03/05/2013 19:53:57 (2529 leituras) |
Eles eram mais antigos que o silêncio A perscrutar-se intimamente os sonhos Tal como duas súbitas estátuas Em que apenas o olhar restasse humano. Qualquer toque, por certo, desfaria Os seus corpos sem tempo em pura cinza. Remontavam às origens - a realidade Neles se fez, de substância, imagem. Dela a face era fria, a que o desejo Como um hictus, houvesse adormecido Dele apenas restava o eterno grito Da espécie - tudo mais tinha morrido. Caíam lentamente na voragem Como duas estrelas que gravitam Juntas para, depois, num grande abraço Rolarem pelo espaço e se perderem Transformadas no magma incandescente Que milênios mais tarde explode em amor E da matéria reproduz o tempo Nas galáxias da vida no infinito.
Eles eram mais antigos que o silêncio...
Vinicius de Moraes, in 'O Operário em Construção'
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Para ler ouvindo um Tango |
em 25/04/2013 13:51:54 (1834 leituras) |
gosto quando me fisgas com as tuas fugas e sem querer querendo corres e me escapas procuro-te em vão nos imaginários mapas perdidos no meu rosto coberto de rugas
tal como num tango me sangras e me sugas envolves o meu corpo nessas negras capas tecidas em cetins ou ordinárias napas restos de funerais que por bom preço alugas
gosto quando me matas em lentas facadas e no dia seguinte surges em sorrisos depois de reduzir-me a todos os nadas
me cobres a boca com beijos tão precisos oferecendo-me o bom mel das madrugadas que eu faço que apago todos os prejuízos
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de Sapato Florido |
em 17/04/2013 19:53:20 (5657 leituras) |
PROVÉRBIO O seguro morreu de guarda-chuva.
MEU TRECHO PREDILETO O que mais me comove, em música, são essas notas soltas — pobres notas únicas — que do teclado arrancam o afinador de pianos...
CARRETO Amar é mudar a alma de casa.
ENVELHECER Antes, todos os caminhos iam. Agora todos os caminhos vêm A casa é acolhedora, os livros poucos. E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
Versos extraídos do livro “Mário Quintana — Prosa e Verso”, Editora Globo (9ª edição).
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Poema do Futuro |
em 16/04/2013 14:00:35 (2554 leituras) |
Conscientemente escrevo e, consciente, medito o meu destino.
No declive do tempo os anos correm, deslizam como a água, até que um dia um possível leitor pega num livro e lê, lê displicentemente, por mero acaso, sem saber porquê. Lê, e sorri. Sorri da construção do verso que destoa no seu diferente ouvido; sorri dos termos que o poeta usou onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo; e sorri, quase ri, do íntimo sentido, do latejar antigo daquele corpo imóvel, exhumado da vala do poema.
Na História Natural dos sentimentos tudo se transformou. O amor tem outras falas, a dor outras arestas, a esperança outros disfarces, a raiva outros esgares. Estendido sobre a página, exposto e descoberto, exemplar curioso de um mundo ultrapassado, é tudo quanto fica, é tudo quanto resta de um ser que entre outros seres vagueou sobre a Terra.
António Gedeão, in 'Poemas Póstumos' |
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O que é um Romance? |
em 09/04/2013 15:36:07 (2572 leituras) |
Um romance é aquilo que o autor quiser que seja. O Herberto Helder tem razão quando diz que está tudo misturado: não se sabe quando é que a poesia não dá origem a um romance, quando é que um ensaio não é um romance, quando é que no interior de um ensaio não aparece um poema… Não vejo por que é que essas coisas hão-de ser catalogadas. Há páginas de grandes romances que são grandes páginas de poesia. Bom, mas isto é mais um pressentimento que uma certeza, que o início de uma teoria… É uma interrogação. O meu problema é que sempre li mais prosa que poesia. Na verdade, a poesia aborrece-me mais. Não é bem isso… é no sentido de que ocupa um espaço muito menor nas minhas leituras. A poesia é assim: abro um livro, leio este poema, leio aquele, depois arrumo, um dia volto…
Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)" |
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Cultura e Civilização |
em 03/04/2013 20:13:55 (2176 leituras) |
Uma mesa cheia de feijões. O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão. O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo. Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas. O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território é o processo da CIVILIZAÇÃO. O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA. É mais difícil a passagem da civilização para a cultura do que a formação de civilização. A civilização é um fenómeno colectivo. A cultura é um fenómeno individual. Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.
Almada Negreiros, in "Ensaios" |
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Baladas Românticas - Branca... |
em 28/03/2013 20:28:51 (1892 leituras) |
Vi-te pequena: ias rezando Para a primeira comunhão: Toda de branco, murmurando, Na fronte o véu, rosas na mão. Não ias só: grande era o bando... Mas entre todas te escolhi: Minh'alma foi te acompanhando, A vez primeira em que te vi.
Tão branca e moça! o olhar tão brando! Tão inocente o coração! Toda de branco, fulgurando, Mulher em flor! flor em botão! Inda, ao lembrá-lo, a mágoa abrando, Esqueço o mal que vem de ti, E, o meu rancor estrangulando, Bendigo o dia em que te vi!
Rosas na mão, brancas... E, quando Te vi passar, branca visão, Vi, com espanto, palpitando Dentro de mim, esta paixão... O coração pus ao teu mando... E, porque escravo me rendi, Ando gemendo, aos gritos ando, - Porque te amei! porque - te vi!
Depois fugiste... E, inda te amando, Nem te odiei, nem te esqueci: - Toda de branco... Ias rezando... Maldito o dia em que te vi!
Olavo Bilac, in "Poesias" |
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Baladas Românticas - Negra... |
em 28/03/2013 20:26:24 (1788 leituras) |
Possas chorar, arrependida, Vendo a saudade que aqui vai! Vê que inda, negro, da ferida Aos borbotões o sangue cai... Que a nossa história, assim relida, O nosso amor, lembrado assim, Possam fazer-te, comovida, Inda uma vez pensar em mim!
Minh'alma pobre e desvalida, Órfã de mãe, órfã de pai, Na escuridão vaga perdida, De queda em queda e de ai em ai! E ando a buscar-te. E a minha lida Não tem descanso, não tem fim: Quanto mais longe andas fugida, Mais te vejo eu perto de mim!
Louco! e que lúgubre a descida Para a loucura que me atrai! - Terríveis páginas da vida, Escuras páginas, - cantai! Vim, ermitão, da minha ermida, Morto, do meu sepulcro vim, Erguer a lápida caída Sobre a esperança que houve em mim!
Revivo a mágoa já vivida E as velhas lágrimas... a fim De que chorando, arrependida, Possas lembrar-te inda de mim!
Olavo Bilac, in "Poesias" |
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Em uma Tarde de Outono |
em 28/03/2013 20:21:28 (2825 leituras) |
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto. Outono... Rodopiando, as folhas amarelas Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...
Por que, belo navio, ao clarão das estrelas, Visitaste este mar inabitado e morto, Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas, Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?
A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos... Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!
E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste, E contemplo o lugar por onde te sumiste, Banhado no clarão nascente do arrebol...
Olavo Bilac, in "Poesias" |
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Maldição |
em 22/03/2013 20:30:33 (2310 leituras) |
Se por vinte anos, nesta furna escura, Deixei dormir a minha maldição, - Hoje, velha e cansada da amargura, Minh'alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de cólera e loucura, Sobre a tua cabeça ferverão Vinte anos de silêncio e de tortura, Vinte anos de agonia e solidão...
Maldita sejas pelo Ideal perdido! Pelo mal que fizeste sem querer! Pelo amor que morreu sem ter nascido!
Pelas horas vividas sem prazer! Pela tristeza do que eu tenho sido! Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...
Olavo Bilac, in "Poesias" |
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A Força da Vontade |
em 18/03/2013 21:38:15 (1985 leituras) |
Tudo vence uma vontade obstinada, todos os obstáculos abate o homem que integrou na sua vida o fim a atingir e que está disposto a todos os sacrifícios para cumprir a missão que a si próprio se impôs. Atento ao mundo exterior, para que não falte nenhuma oportunidade de pôr em prática o pensamento que o anima, não deixa que ele o distraia da tensão interna que lhe há-de dar a vitória; tem os dotes do político e os dotes do artista, quer modelar o mundo segundo o esquema que ideou. Não se trata, claro, de um triunfo pessoal; em história da cultura não há triunfos pessoais; ou a vontade é pura e generosa, nitidamente orientada ao bem geral, ou mais cedo, mais tarde, se há-de quebrar contra vontades de progresso mais fortes que ela. Que o querer tenha sua origem e seu apoio em coração aberto à nobreza, à beleza e à justiça; de outro modo é apenas gume fino e duro de faca; por isso mesmo frágil, na sua aparente penetração e resistência. Vontade inteligente, e não manhosa, altruísta, e não virada ao sujeito, pedagógica, e não sedenta de domínio; a esta pertencem os séculos por vir: é a voz a que surgem; a outra estabelece os muros que ainda tentam defender o passado.
Agostinho da Silva, in 'Considerações'
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Na Escuridão |
em 15/03/2013 20:34:36 (1653 leituras) |
Na Escuridão
na escuridão o poema não dói tanto a luz machuca o poema provoca uma dor de faca afiada e o sangue não estanca nunca
na escuridão as palavras parecem mais calmas mesmo na dor são felizes como aquele cego que tocava cavaquinho na praia compunha marchinhas de carnaval e mesmo sem poder ver a folia enxergava melhor do que todos nós
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AL BUIO
al buio la poesia non fa tanto male la luce ferisce la poesia provoca un dolore di lama affilata e il sangue non si ferma mai
al buio le parole sembrano più calme anche nel dolore sono felici come quel cieco che suonava il cavaquinho sulla spiaggia
componeva marcette di carnevale e anche senza poter vedere la sfilata scrutava meglio di tutti noi
(tradução italiana de Manuela Colombo)
2 de junho de 2012, 11:57, enviei ao Júlio, no seu site Currupião, a tradução deste poema. O Júlio respondeu:
manuela, suas traduções me envaidecem muito. eu vou à minha mulher que as coloquem como texto. é que eu não sei fazer. fico muito honrado com o seu trabalho. se um dia eu for a itália - e vou - quero publicar meu livro com as suas traduções. carinho, j.
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Não vás tão docilmente (Dylan Thomas) |
em 13/03/2013 15:13:42 (9342 leituras) |
Não vás tão docilmente nessa noite linda; Que a velhice arda e brade ao término do dia; Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda Quando a palavra já perdeu toda a magia, Não vai tão docilmente nessa noite linda.
O justo, à última onda, ao entrever, ainda, Seus débeis dons dançando ao verde da baía, Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda, Sem saber que o feriu com a sua ousadia, Não vai tão docilmente nessa noite linda.
O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da Aurora astral que o seu olhar incendiaria, Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
Assim, meu pai, do alto que nos deslinda Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia: Não vás tão docilmente nessa noite linda. Clama, clama contra o apagar da luz que finda.
Do not go gentle into that good night
Do not go gentle into that good night, Old age should burn and rave at close of day; Rage, rage against the dying of the light.
Though wise men at their end know dark is right, Because their words had forked no lightning they Do not go gentle into that good night.
Good men, the last wave by, crying how bright Their frail deeds might have danced in a green bay, Rage, rage against the dying of the light.
Wild men who caught and sang the sun in flight, And learn , too late, they grieved it on its way Do not go gentle into that good night.
Grave men, near death, who see with blinding sight Blind eyes could blaze like meteors and be gay, Rage, rage against the dying of the light.
And you, my father, there on the sad height, Curse, bless, em now with your fierce tears, I pray. Do not go gentle into that good night. Rage, rage against the dying of the light.
THOMAS, Dylan. "Do not go gentle into that good night". In: CAMPOS, Augusto de (trad. e org.). Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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O Hóspede Despercebido |
em 11/03/2013 16:56:16 (2261 leituras) |
Deixei alguém nesta sala que muito se distinguia de alguém que ninguém se chamava, quando eu desaparecia. Comigo se assemelhava, mas só na superfície. Bem lá no fundo, eu, palavra, não passava de um pastiche. Uns restos, uns traços, um dia, meus tios, minhas mães e meus pais me chamarem de volta pra dentro, eu ainda não volte jamais. Mas ali, logo ali, nesse espaço, lá se vai, exemplo de mim, algo, alguém, mil pedaços, meio início, meio a meio, sem fim.
[do livro Distraídos Venceremos]
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O Sonho |
em 13/01/2014 12:16:49 (2511 leituras) |
Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade Solto para onde estás, e fico de ti perto! Como, depois do sonho, é triste a realidade! Como tudo, sem ti, fica depois deserto!
Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça. Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma: De cada estrela de ouro um anjo se debruça, E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.
Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado. Em torno a cada ninho anda bailando uma asa. E, como sobre um leito um alvo cortinado, Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.
Porém, subitamente, um relâmpago corta Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta E, sorrindo, serena, apareces à porta, Como numa moldura a imagem de uma Santa...
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Sejamos Alegres |
em 26/11/2013 21:36:12 (3613 leituras) |
Denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer — e respondo a toda essa infâmia com — exatamente isto que vai agora ficar escrito — e respondo a toda essa infâmia com a alegria. Puríssima e levíssima alegria. A minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas — porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres. Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez sequer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade. Eu estou — apesar de tudo oh apesar de tudo — estou sendo alegre neste instante-já que passa se eu não fixá-lo com palavras. Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. Amor impessoal, amor it, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. Viver é isto: a alegria do it. E conformar-me não como vencida mas num allegro com brio.
Clarice Lispector, in 'Água Viva' |
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Elegia Lírica |
em 19/10/2013 20:38:01 (2261 leituras) |
(...)
A minha namorada é tão bonita, tem olhos como besourinhos do céu
Tem olhos como estrelinhas que estão sempre balbuciando aos passarinhos...
É tão bonita! tem um cabelo fino, um corpo menino e um andar pequenino
E é a minha namorada... vai e vem como uma patativa, de repente morre de amor
Tem fala de S e dá a impressão que está entrando por uma nuvem adentro...
Meu Deus, eu queria brincar com ela, fazer comidinha, jogar nai-ou-nentes
Rir e num átimo dar um beijo nela e sair correndo
E ficar de longe espiando-lhe a zanga, meio vexado, meio sem saber o que faça...
A minha namorada é muito culta, sabe aritmética, geografia, história, contraponto
E se eu lhe perguntar qual a cor mais bonita ela não dirá que é a roxa porém brique.
Ela faz coleção de cactos, acorda cedo vai para o trabalho
E nunca se esquece que é a menininha do poeta.
Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer ir à Europa? ela diz: Quero se mamãe for!
Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer casar comigo? Ela diz... — não, ela não acredita.
É doce! gosta muito de mim e sabe dizer sem lágrimas:
Vou sentir tantas saudades quando você for...
É uma nossa senhorazinha, é uma cigana, é uma coisa
Que me faz chorar na rua, dançar no quarto, ter vontade de me matar e de ser presidente da república.
É boba, ela! tudo faz, tudo sabe, é linda, ó anjo de Domremy!
Dêem-lhe uma espada, constrói um reino ; dêem-lhe uma agulha, faz um crochê
Dêem-lhe um teclado, faz uma aurora, dêem-lhe razão, faz uma briga...!
E do pobre ser que Deus lhe deu, eu, filho pródigo, poeta cheio de erros
Ela fez um eterno perdido...
O poema acima foi extraído do livro"Antologia Poética", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 68.
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Jura |
em 07/10/2013 00:15:39 (2343 leituras) |
Pelas rugas da fronte que medita... Pelo olhar que interroga — e não vê nada... Pela miséria e pela mão gelada Que apaga a estrela que nossa alma fita...
Pelo estertor da chama que crepita No ultimo arranco d'uma luz minguada... Pelo grito feroz da abandonada Que um momento de amante fez maldita...
Por quanto há de fatal, que quanto há misto De sombra e de pavor sob uma lousa... Oh pomba meiga, pomba de esperança!
Eu t'o juro, menina, tenho visto Cousas terriveis — mas jamais vi cousa Mais feroz do que um riso de criança!
Antero de Quental, in "Sonetos"
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A Torpe Sociedade onde Nasci |
em 09/09/2013 21:51:19 (2350 leituras) |
A Torpe Sociedade onde Nasci I
Ao ver um garotito esfarrapado Brincando numa rua da cidade, Senti a nostalgia do passado, Pensando que já fui daquela idade.
II
Que feliz eu era então e que alegria... Que loucura a brincar, santo delírio!... Embora fosse mártir, não sabia Que o mundo me criava p'ra o martírio!
III
Já quando um homenzinho, é que senti O dilema terrível que me impôs A torpe sociedade onde nasci: — De ser vítima humilde ou ser algoz...
IV
E agora é o acaso quem me guia. Sem esperança, sem um fim, sem uma fé, Sou tudo: mas não sou o que seria Se o mundo fosse bom — como não é!
V
Tuberculoso!... Mas que triste sorte! Podia suicidar-me, mas não quero Que o mundo diga que me desespero E que me mato por ter medo à morte...
António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."
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Marinheiro sem mar |
em 22/08/2013 20:25:22 (3774 leituras) |
Longe o marinheiro tem Uma serena praia de mãos puras Mas perdido caminha nas obscuras Ruas da cidade sem piedade
Todas as cidades são navios Carregados de cães uivando à lua Carregados de anões e mortos frios
E ele vai baloiçando como um mastro Aos seus ombros apoiam-se as esquinas Vai sem aves nem ondas repentinas Somente sombras nadam no seu rastro.
Nas confusas redes de seu pensamento Prendem-se obscuras medusas Morta cai a noite com o vento
E sobe por escadas escondidas E vira por ruas sem nome Pela própria escuridão conduzido Com pupilas transparentes e de vidro
Vai nos contínuos corredores Onde os polvos da sombra o estrangulam E as luzes como peixes voadores O alucinam.
Porque ele tem um navio mas sem mastros Porque o mar secou Porque o destino apagou O seu nome dos astros Porque o seu caminho foi perdido O seu triunfo vendido E ele tem as mãos pesadas de desastres
E é em vão que ele se ergue entre os sinais Buscando pela luz da madrugada pura Chamando pelo vento que há no cais
Nenhum navio lavará o nojo do seu rosto As imagens são eternas e precisas Em vão chamará pelo vento Que a direito corre pelas praias lisas
Ele morrerá sem mar e sem navios Sem rumo distante e sem mastros esguios Morrerá entre paredes cinzentas Pedaços de braços e restos de cabeças Boiarão na penumbra das madrugadas lentas
E ao Norte e ao Sul Ao Leste e ao Poente Os quatro cavalos do vento Sacodem as suas crinas
E o espírito do mar pergunta:
"- Que é feito daquele Para quem eu guardava um reino puro De espaço e de vazios De ondas brancas e fundas e de verde vazio?"
Ele não dormirá na areia lisa Entre medusas,conchas e corais
Ele dormirá na podridão E ao Norte e ao Sul E ao Leste e ao Poente Os quatro cavalos do vento Exactos e transparentes O esquecerão
Porque ele se perdeu do que era eterno E separou o seu corpo da unidade E se entregou ao tempo dividido Das ruas sem piedade.
(in «Mar Novo», 1958)
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O Conceito de Nós Próprios |
em 05/08/2013 17:04:00 (3355 leituras) |
Cada homem, desde que sai da nebulose da infância e da adolescência, é em grande parte um produto do seu conceito de si mesmo. Pode dizer-se sem exagero mais que verbal, que temos duas espécies de pais: os nossos pais, propriamente ditos, a quem devemos o ser físico e a base hereditária do nosso temperamento; e, depois, o meio em que vivemos, e o conceito que formamos de nós próprios - mãe e pai, por assim dizer, do nosso ser mental definitivo. Se um homem criar o hábito de se julgar inteligente, não obterá com isso, é certo, um grau de inteligência que não tem; mas fará mais da inteligência que tem do que se julgar estúpido. E isto, que se dá num caso intelectual, mais marcadamente se dá num caso moral, pois a plasticidade das nossas qualidades morais é muito mais acentuada que a das faculdades da nossa mente. Ora, ordinariamente, o que é verdade da psicologia individual - abstraindo daqueles fenómenos que são exclusivamente individuais - é também verdade da psicologia colectiva. Uma nação que habitualmente pense mal de si mesma acabará por merecer o conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmente. O primeiro passo passou para uma regeneração, económica ou outra, de Portugal é criarmos um estado de espírito de confiança - mais, de certeza, nessa regeneração. Não se diga que os «factos» provam o contrário. Os factos provam o que quer o raciocinador. Nem, propriamente, existem factos, mas apenas impressões nossas, a que damos, por conveniência, aquele nome. Mas haja ou não factos, o que é certo é que não existe ciência social - ou, pelo menos, não existe ainda. E como assim é, tanto podemos crer que nos regenaremos, como crer o contrário. Se temos, pois, a liberdade de escolha, porque não escolher a atitude mental que nos é mais favorável em vez daquela que nos é menos?
Fernando Pessoa, in 'Teoria e Prática do Comércio'
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Em Louvor da Miniblusa |
em 16/07/2013 18:47:40 (1992 leituras) |
Hoje vai a antiga musa celebrar a nova blusa que de Norte a Sul se usa como graça de verão. Graça que mostra o que esconde a blusa comum, mas onde um velho da era do bonde encontrará mais mensagem do que na bossa estival da rola que ao natural mostra seu colo fatal, ou quase, pois tanto faz, se a anatomia me ensina a tocar a concertina em busca ao mapa da mina que ora muda de lugar? Já nem sei mais o que digo ao divisar certo umbigo: penso em flor, cereja, figo, penso em deixar de pensar, e em louvar o costureiro ou costureira — joalheiro que expõe a qualquer soleiro esse profundo diamante exclusivo antes das praias (Copas, Leblons, Marambaias e suas areias gaias). Salve, moda, salve, sol de sal, de alegre inventiva, que traz à matéria viva a prova figurativa! Pode a indústria de fiação carpir-se do pouco pano que o figurino magano reduz a zero, cada ano. Que importa? A melhor fazenda o mais cetínio tecido, que me bota comovido e bole em cada sentido, ainda é a doce pele, de original padronagem, pois adere a cada imagem qual sua própria tatuagem que ninguém copiará. Miniblusa, miniblusa, garanto que quem te acusa a cuca há de ter confusa. És pano de boca? O palco tão redondo quão seleto que abres ao avô e ao neto (à vista, apenas), objeto é de puro encantamento. No cenário em suave curva nosso olhar jamais se turva, falte embora rima em urva, pois é pelúcia-piscina onde a ilha umbilical vale a urna de São Gral, o Tesouro Nacional, vale tudo... e lembra a drósera, flor carnívora exigente que pra devorar a gente não cochila certamente. Drósera? Drupa, talvez, carnoso fruto de vida, drusa tão bem inserida na superfície polida que a blusa desvesteveste. Ai, blublu de semiblusa, de Ipanema ou Siracusa, que me perco na fiúza de capturar o mistério — Quid mulieris... ? — do corpóreo. Mas chega de latinório, vaníloquo verbolório e versiconversa obtusa de tudo que a musa canta, pois mais alto se alevanta o sem-véu da miniblusa.
Carlos Drummond de Andrade, in 'O Poder Ultrajovem'
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Vida e Obra |
em 07/07/2013 21:50:58 (1877 leituras) |
Jorge Cândido de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Barbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978) foi poeta, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, tradutor e professor universitário português.
Primeiros anos
Filho único de Augusto Raposo de Sena, natural de Ponta Delgada e comandante da marinha mercante, e de Maria da Luz Teles Grilo de Sena, natural da Covilhã e dona-de-casa. Ambas as famílias eram da alta burguesia, a paterna de suposta linhagem aristocrática de militares e altos funcionários, e a materna de comerciantes ricos do Porto. Segundo relata no seu conto Homenagem ao Papagaio Verde, teve uma infância recolhida, solitária e infeliz, o que fez com se tornasse introspectivo, observador e imaginativo.
Fez a instrução primária e os primeiros anos do liceu no Colégio Vasco da Gama. Concluiu os estudos secundários no Liceu Camões, onde foi aluno de Rómulo de Carvalho. Era um jovem que lia avidamente, tocava piano e escrevia poemas. Na Faculdade de Ciências de Lisboa, fez os exames preparatórios com as notas mais elevadas.
Na Escola Naval
Sena nutria a ideia algo romântica de se tornar oficial da marinha, seguindo as pisadas do pai. Em 1938, aos 17 anos, entrou para a Escola Naval como 1º do seu curso. A 2 de Outubro de 1937, iniciou a sua viagem de instrução a bordo do navio-escola Sagres. Visitou os portos de S. Vicente, Santos, Lobito, Luanda, S. Tomé e Dakar, chegando a Lisboa no final de Fevereiro de 1938. O contacto com a imensidão do oceano, a azáfama da vida a bordo e o movimento e mudança constantes agradaram ao jovem Sena, mas nem tudo correu bem. Segundo o relato de um antigo camarada de curso, naquele ano a viagem de instrução foi excepcional e particularmente dura e exigente em termos de preparação e destreza física, copiando o modelo da marinha alemã. Na parte teórica do curso Sena era brilhante, mas em termos atléticos era medíocre e apesar dos muitos esforços que fez não conseguiu satisfazer as elevadas expectativas do comandante do curso, que parecia nutrir um ódio de estimação pelo cadete contemplativo e intelectual. No final da viagem, foi comunicado a Sena que iria ser proposta a sua exclusão da Marinha por lhe faltarem as "necessárias qualidades" para oficial. Sena ficou profundamente frustrado e desgostoso com esta rejeição e o seu afastamento definitivo de um modo de vida que tanto almejava.
Engenharia civil, casamento e primeiras obras
Apesar da sua inclinação natural para a literatura, o sobredotado Sena decidiu frequentar o curso de Engenharia Civil, iniciando-o em Lisboa e concluindo-o no Porto, em 1944, com a ajuda financeira dos seus amigos Ruy Cinatti e José Blanc de Portugal. O curso pouco o entusiasmou, mas durante todo esse tempo escreveu bastantes poemas, artigos, ensaios e cartas. Desde os 16 anos que escrevia e em 1940, sob o pseudónimo de Teles de Abreu, publicou os seus primeiros poemas na revista Cadernos de Poesia, dirigida por Cinatti, Blanc de Portugal e Tomás Kim. Em 1942, publica o seu primeiro livro de poemas, Perseguição, que não impressiona muito o seu amigo e crítico João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro considera-o um livro revelador mas difícil.
Em 1947, Sena inicia a sua carreira de engenheiro, que durou 14 anos. Trabalhou como engenheiro civil na Câmara Municipal de Lisboa, na Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização e na Junta Autónoma das Estradas (JAE), onde permanecerá até ao seu exílio para o Brasil em 1959.
Em 1940, no Porto, Jorge de Sena conhece e torna-se amigo de Maria Mécia de Freitas Lopes (irmã do crítico e historiador literário Óscar Lopes), começando a namorar em 1944 e casando-se em 1949. Jorge de Sena e Mécia de Sena tiveram nove filhos. Mécia, sua incansável companheira e enérgica colaboradora, apoiando o escritor nas inúmeras crises que lhe surgiram ao longo de uma vida por vezes atribulada. Trabalhava incansavelmente, para sustentar a crescente família. Além do seu absorvente trabalho diurno na JAE (que lhe possibilitou viajar e conhecer o Portugal profundo), Sena também se dedicava à direcção literária em editoras, à tradução e revisão de textos, ocupações que lhe roubavam precioso tempo para a investigação literária e a para a sua obra. A banalidade e a pequenez do quotidiano no Portugal de Salazar das décadas de 1940 e 1950 atormentam-no, bem assim como a mediocridade, a mesquinhez e a intriga dos meios literários, a opressão política, a censura literária, resultando num ambiente de trabalho sufocante e absolutamente frustrante, mas que não deixam de o inspirar para o poema É tarde, muito tarde na noite… Durante esses anos publica várias obras: O Dogma da Trindade Poética – Rimbaud (1942), Coroa da Terra, poesia (1946), Páginas de Doutrina Estética de Fernando Pessoa (organização), 1946, Florbela Espanca (1947), Pedra Filosofal poesia (1950), A Poesia de Camões (1951), etc.
Exílio no Brasil
A sua situação como escritor e cidadão estava a tornar-se insustentável. Como escritor, não tinha tempo livre para escrever, apenas o podia fazer de modo insuficiente e limitado à noite e aos domingos. Também o facto de não pertencer a nenhum círculo académico e a falta de apoio institucional lhe frustrava qualquer pretensão de poder vir a editar alguma obra mais ambiciosa. Por outro lado, a sua participação numa tentativa revolucionária abortada em 12 de Março de 1959, colocou-o em posição de prisão iminente, no caso muito provável de algum dos conspiradores presos pela PIDE denunciar os que ainda se encontravam livres. Em Agosto de 1959, viajou até ao Brasil, convidado pela Universidade da Bahia e pelo Governo Brasileiro a participar no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Tendo sido convidado como catedrático contratado de Teoria da Literatura, em Assis, no Estado de S. Paulo, aproveitou essa oportunidade e aceitou o lugar, iniciando assim o seu longo exílio. Ele faz amizade com o poeta Jaime Montestrela, que dedicou o seu livro Cidade de lama. Por motivos profissionais teve de adoptar a cidadania brasileira. Não foi contudo um exílio libertador. Sentia saudades da pátria, apesar do rancor perene que nutria pela pequenez, mesquinhez e falta de reconhecimento nacionais que o atormentariam até ao final da vida. Em 1961, Jorge de Sena foi ensinar Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Em 1964, depois de vencer alguns preconceitos académicos pelo facto de ser licenciado em Engenharia, Jorge de Sena defendeu a sua tese de doutoramento em Letras (Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular), tendo obtido os títulos académicos "com distinção e louvor". O período de seis anos que passou no Brasil foi muito produtivo. Finalmente, tinha toda a disponibilidade para se dedicar à sua obra com a devida profundidade e profissionalismo. Poesia, teatro, ficção, ensaísmo e investigação. Parte do romance Sinais de Fogo e a totalidade dos contos Novas Andanças do Demónio foram escritos neste período. Estados Unidos e últimos anos[editar] A degradação da situação política no Brasil, com a instalação de uma ditadura militar a partir de Março de 1964, fez com que Jorge de Sena, mais do que nunca avesso a prepotências, aceitasse um convite para ensinar Literatura de Língua Portuguesa na Universidade de Wisconsin, para partir para os Estados Unidos em Outubro de 1965. Em 1967 foi nomeado catedrático do Departamento de Espanhol e Português da referida universidade. De 1970 até 1978 foi catedrático efectivo de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara. Apesar da satisfação de ensinar e da amizade que os alunos lhe dedicavam, Sena não foi feliz. Queixava-se da "medonha solidão intelectual da América" onde não havia "convívio intelectual algum" e da esterilidade e espírito burguês do meio académico, que não se interessava pela sua obra. Quando se deu o 25 de Abril Jorge de Sena ficou entusiasmado e queria regressar definitivamente a Portugal, ansioso de dar a sua colaboração para a construção da democracia. Sena visitou Portugal, contudo, nenhuma universidade ou instituição cultural portuguesa se dignou convidar o escritor para qualquer cargo que fosse, facto que muito o desiludiu e amargurou, decidindo continuar a viver nos Estados Unidos, onde tinha a sua carreira estabelecida. Jorge de Sena morreu em 4 de Junho de 1978, aos 58 anos, de cancro. Em 11 de Setembro de 2009, os seus restos mortais foram trasladados de Santa Barbara, Califórnia, para o cemitério do Prazeres em Lisboa, depois de uma cerimónia de homenagem na Basílica da Estrela, com a presença de familiares, amigos e entidades oficiais.1
Obra
Foi um dos mais influentes intelectuais portugueses do século XX, com vasta obra de ficção, drama, ensaio e poesia, além de importante epistolografia com figuras tutelares da literatura portuguesa e brasileira. A sua obra de ficção mais famosa é o romance autobiográfico Sinais de Fogo, adaptado ao cinema em 1995 por Luís Filipe Rocha. Grande parte da sua obra foi publicada postumamente pelos cuidados da viúva, Mécia de Sena.
Poesia
Perseguição (1942) Coroa da Terra (1946) Pedra Filosofal (1950) As Evidências (1955) Fidelidade (1958) Metamorfoses (1963) Arte de Música (1968) Peregrinatio ad Loca Infecta (1969) Exorcismos (1972) Conheço o Sal e Outros Poemas (1974) Sobre Esta Praia (1977) Quarenta Anos de Servidão (1979, póstumo) Dedicácias (1980, póstumo) Sequências (1980, póstumo) Visão Perpétua (1982, póstumo) Post-Scriptum I (1985, póstumo) Post-Scriptum II (1985, póstumo) Poesia I (1977) Poesia II (1978) Poesia III (1978)
Ficção
Andanças do Demónio (1960, contos) Novas Andanças do Demónio (1966, contos) Os Grão-Capitães (1976, contos) O Físico Prodigioso (1977, novela) Sinais de Fogo (1979, romance póstumo) Génesis (1983, póstumo)
Drama
O Indesejado (1951) Ulisseia Adúltera (1952) O Banquete de Dionísos (1969) Epimeteu ou o Homem Que Pensava Depois (1971)
Ensaios
Da Poesia Portuguesa (1959) O Poeta é um Fingidor (1961) O Reino da Estupidez (1961) Uma Canção de Camões (1966) Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969) A Estrutura de Os Lusíadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia Peninsular do Século XVI (1970) Maquiavel e Outros Estudos (1973) Dialécticas Aplicadas da Literatura (1978) Fernando Pessoa & Cia. Heterónima (1982, póstumo) Correspondências com Guilherme de Castilho, INCM, 1981 Mécia de Sena (Anos de Portugal), INCM, 1982 José Régio, INCM, 1986 Vergílio Ferreira, INCM, 1987 Taborda de Vasconcelos, ed. Autor, 1987 Eduardo Lourenço, INCM, 1991 Dante Moreira Leite, UNICAMP, 1996 Sophia de Melo Breyner, Guerra & Paz, 2006 José-Augusto França, INCM, 2007 Raul Leal, Guerra & Paz, 2010 Delfim Santos, Guerra & Paz, 2011 Ramos Rosa, Guimarães, 2012 Mécia de Sena (Anos do Brasil), Afrontamento, 2013 João Gaspar Simões, Guerra & Paz, 2013
Prémios
Recebeu o Prémio Internacional de Poesia Etna-Taormina, pelo conjunto da sua obra poética, e foi condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique, por serviços prestados à comunidade portuguesa. Recebeu, postumamente, a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago. Em 1980, foi inaugurado o Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara.
O erotismo segundo Jorge de Sena
Para se compreender o espírito livre e independente de Jorge de Sena, são úteis os seguintes textos, extraídos da obra Máscaras de Salazar, de Fernando Dacosta:
[...] a mais completa liberdade [deve] ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma sociedade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido ou um grupo de cidadãos hipersensíveis possa ter o direito de governar a vida privada de alguém. [Um dos] prazeres sexuais dos seres humanos tem sido o de reprimir a sexualidade, a própria e a dos outros. Defendo todas as formas de prostituição, como profissão protegida pela lei e vigiada pela saúde pública. Ainda que isso possa chocar muita gente, parece que, desde sempre, houve machos e fêmeas cujo talento na vida, e cuja vocação definida, é emprestarem o próprio corpo. E quem se vende ou quem compra (o que não tem nada a ver com capitalismo, mas com o direito de qualquer pessoa a dispor de si mesma, em acordo com outra) deve ter a protecção da lei contra redes de exploração, chantagens, etc. O que duas pessoas (ou um grupo delas) fazem uma com a outra, fora das vistas dos demais, não diz respeito a esses demais, a não ser que eles vivam na observação mórbida de imaginarem (num misto de horror e curiosidade, que os torna moralistas raivosos) o que os outros fazem. E o que os outros fazem não altera em nada o equilíbrio social. [A pornografia pode ser] um prazer para muita gente e, às vezes, o único que lhes é concedido, pois as pessoas idosas, solitárias, não atractivas, não encontram nunca o chinelo velho para o seu pé doente. Uma prostituição oficializada é obra de caridade para com os feios e os tímidos. [Porque hão-de ser] só os ricos e os de maiores posses a terem acesso à pornografia, e não os pobres? As classes mais desprotegidas deviam ter a sua pornografia mais barata, subsidiada pelo Governo, se o Governo fosse ao mesmo tempo inteligente e progressista nestas matérias. Somos um país imoral, um país depravado às ocultas. Foi isso, no entanto, que nos salvou de mergulhar nas sombras horrendas do puritanismo. Puritanismo que não é parte da nossa herança cultural. Mil vezes a pornografia do que a castração, a prostituição do que a hipocrisia. Se alguma coisa há que deve ser sagrada, é o prazer sexual entre pessoas mutuamente concordantes em dá-lo e recebê-lo, ou negociá-lo. [Os adolescentes e as crianças sempre souberam] muito mais do que os adultos fingem que eles sabem. Raros terão sido os jovens seduzidos na sua inocência. Na maior parte dos casos, o contrário é que é verdade. Se alguma coisa há que deva ser sagrada, é o prazer sexual entre pessoas concordantes em usufruí-lo e partilhá-lo.
Referências
↑ Parte da informação biográfica coligida a partir de Jorge de Sena por Eugénio Lisboa, Editorial Presença, Lisboa, s/d.
Bibliografia
Edição dirigida por Mécia de Sena, Edições 70 Os grão-capitães (contos). Obras de Jorge de Sena, Lisboa Antigas e novas andanças do demónio (contos). Obras de Jorge de Sena, Lisboa O Físico prodigioso (novela). Obras de Jorge de Sena, Lisboa Sinais de fogo (romance). Obras de Jorge de Sena, Edições 70, Lisboa Dialécticas teóricas da literatura (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa Dialécticas aplicadas da literatura (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa 80 poemas de Emily Dickinson (tradução e apresentação). Obras de Jorge de Sena, Lisboa Os sonetos de Camões e o soneto quinhentista (ensaio). Obras de Jorge de Sena, Lisboa, 1980 A estrutura de "Os Lusíadas" (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa Trinta anos de Camões (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa, 1980 Fernando Pessoa & C.a Heterónima (ensaios). Obras de Jorge de Sena, Lisboa, 1984 Obras Completas, edição coordenada por Jorge Fazenda Lourenço, ed. Guimarães I - Sinais de Fogo, Lisboa, 2009 II - O Físico Prodigioso, Lisboa, 2010 III - 80 Poemas de Emily Dickinson, Lisboa, 2010 IV - Antologia Poética, Lisboa, 2010 V - Rever Portugal - Textos Políticos e Afins, Lisboa, 2011 VI - América, América, Lisboa, 2011 |
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Manhã de Inverno |
em 03/07/2013 23:35:58 (3063 leituras) |
Manhã de Inverno Coroada de névoas, surge a aurora Por detrás das montanhas do oriente; Vê-se um resto de sono e de preguiça, Nos olhos da fantástica indolente.
Névoas enchem de um lado e de outro os morros Tristes como sinceras sepulturas, Essas que têm por simples ornamento Puras capelas, lágrimas mais puras.
A custo rompe o sol; a custo invade O espaço todo branco; e a luz brilhante Fulge através do espesso nevoeiro, Como através de um véu fulge o diamante.
Vento frio, mas brando, agita as folhas Das laranjeiras úmidas da chuva; Erma de flores, curva a planta o colo, E o chão recebe o pranto da viúva.
Gelo não cobre o dorso das montanhas, Nem enche as folhas trêmulas a neve; Galhardo moço, o inverno deste clima Na verde palma a sua história escreve.
Pouco a pouco, dissipam-se no espaço As névoas da manhã; já pelos montes Vão subindo as que encheram todo o vale; Já se vão descobrindo os horizontes.
Sobe de todo o pano; eis aparece Da natureza o esplêndido cenário; Tudo ali preparou co’os sábios olhos A suprema ciência do empresário.
Canta a orquestra dos pássaros no mato A sinfonia alpestre, — a voz serena Acordo os ecos tímidos do vale; E a divina comédia invade a cena.
Machado de Assis, in 'Falenas' |
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Meu Bebé para Dar Dentadas |
em 13/06/2013 11:36:54 (2221 leituras) |
Meu Bebé pequeno e rabino:
Cá estou em casa, sozinho, salvo o intelectual que está pondo o papel nas paredes (pudera! havia de ser no tecto ou no chão!); e esse não conta. E, conforme prometi, vou escrever ao meu Bebezinho para lhe dizer, pelo menos, que ela é muito má, excepto numa cousa, que é na arte de fingir, em que vejo que é mestra. Sabes? Estou-te escrevendo mas «não estou pensando em ti». Estou pensando nas saudades que tenho do meu tempo da «caça aos pombos»; e isto é uma cousa, como tu sabes, com que tu não tens nada... Foi agradável hoje o nosso passeio — não foi? Tu estavas bem-disposta, e eu estava bem-disposto, e o dia estava bem-disposto também. (O meu amigo, Sr. A.A. Crosse está de saúde — uma libra de saúde por enquanto, o bastante para não estar constipado.) Não te admires de a minha letra ser um pouco esquisita. Há para isso duas razões. A primeira é a de este papel (o único acessível agora) ser muito corredio, e a pena passar por ele muito depressa; a segunda é a de eu ter descoberto aqui em casa um vinho do Porto esplêndido, de que abri uma garrafa, de que já bebi metade. A terceira razão é haver só duas razões, e portanto não haver terceira razão nenhuma. (Álvaro de Campos, engenheiro.) Quando nos poderemos nós encontrar a sós em qualquer parte, meu amor? Sinto a boca estranha, sabes, por não ter beijinhos há tanto tempo... Meu Bebé para sentar no colo! Meu Bebé para dar dentadas! Meu Bebé para... (e depois o Bebé é mau e bate-me...) «Corpinho de tentação» te chamei eu; e assim continuas sendo, mas longe de mim. Bebé, vem cá; vem para o pé do Nininho; vem para os braços do Nininho; põe a tua boquinha contra a boca do Nininho... Vem... Estou tão só, «tão só de beijinhos»... Quem me dera ter a certeza de tu teres saudades de mim a valer. Ao menos isso era uma consolação... Mas tu, se calhar, pensas menos em mim do que no rapaz do gargarejo, e no D. A. F. e no guarda-livros da C. D. & C! Má, má, má, má, má...!!!!! Açoites é que tu precisas. Adeus; vou-me deitar dentro de um balde de cabeça para baixo, para descansar o espírito. Assim fazem todos os grandes homens — pelo menos quando têm — 1.° espírito, 2.° cabeça, 3.° balde onde meter a cabeça. Um beijo só durante todo o tempo que ainda o mundo tem que durar, do teu, sempre e muito teu.
Fernando (Nininho)
Fernando Pessoa, in 'Carta a Ofélia Queiroz' (5 Abr 1920) |
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A carta que eu sei de cor |
em 05/06/2013 18:18:18 (5856 leituras) |
E tu me escreves: - "Meu amor, minha saudade! Há tanto tempo não te vejo: há quasi um dia; estou tão longe: do outro lado da cidade... Tive sonhos tão bons esta noite! Vem vê-los: ainda estão nos meus olhos loucos de alegria. Sabes? esta manhã cortei os meus cabelos. Denunciavam-me tanto! E a ti também, meu poeta... Que alívio! Tenho a sensação de haver cortado relações com alguma amiguinha indiscreta. Agora estamos mais a nosso gosto. Agora o meu gosto será bem menos complicado Para pôr o chapéu, quando me for embora... Sinto-me tão feliz! Tive um riso sincero ao meu espelho: e esse sorriso revelou-me que o meu único mal é este bem que eu te quero..." . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . E quando chego ao fim da carta, sinto, vejo que a minha boca toma a forma do teu nome: a forma que ela tem quando vai dar um beijo...
fonte: 'Era uma vez...' 1922, Casa Mayensa, São Paulo, SP
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Fogo e Gelo |
em 05/06/2013 18:08:57 (7947 leituras) |
Alguns dizem que o mundo acabará em fogo, Alguns dizem em gelo. Do que provei do desejo o jogo Fico com aqueles que favorecem o fogo. Mas se tivesse que duplamente sofrê-lo, Eu penso que conheço bastante do ódio Para dizer que para destruição gelo Também é ótimo E suficiente pra tê-lo.
tradução minha Original:
Some say the world will end in fire, Some say in ice. From what I ‘ve tasted of desire I hold with those who favor fire. But if it had to perish twice, I think I know enough of hate To say that for destruction ice Is also great And would suffice.
– Robert Frost, Fire and Ice
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O EMPRÉSTIMO |
em 28/05/2013 15:58:36 (2050 leituras) |
O Empréstimo
Machado de Assis
Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?
Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.
Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.
- Quem é? perguntou ele de repente olhando para a porta da rua.
Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.
- Não se lembra de mim?
- Não me lembro...
- Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca... Não se lembra? Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde... Veja se se lembra do Custódio.
- Ah!
Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um exército. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n'en vois pas la nécessité, redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.
Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.
- Venho pedir-lhe uma escritura...
Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou para cima dos óculos e esperou.
- Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo...
- Se estiver nas minhas mãos...
- O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, - ou a três, com juro módico...
- Cinco contos?
- Sim, senhor.
- Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?
- Ora, se o senhor quisesse...
- Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.
A alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regime do eventual, o do Custódio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.
- Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo...
- Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida; mas...
Estendeu a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma razoável, quinhentos mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele ia ver surdir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.
- Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?
- Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.
- Quinhentos mil-réis?
- Não; não posso.
- Nem quinhentos mil-réis?
- Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga-me, não está empregado?
- Não, senhor.
- Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da justiça, tenho relações com ele, e...
Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, - "tapar um buraco". E então relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...
- Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...
- Não imagina os apuros em que estou!
- Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as penas-d'água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...
- Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.
- Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.
- Nem cem mil-réis!
- Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é verdade. Nem cem mil-réis. Que horas são?
Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil-réis. Quem é que não tem cem mil-réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; - não de desdém, não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinqüenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.
Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos; invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não levasse ali vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem...
- Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.
- Quer ver?
E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil-réis.
- Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?
Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, - um até breve cheio de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.
Texto extraído do livro "Contos: uma antologia", Cia. das Letras - São Paulo, 1998, introdução e notas de John Gledson.
Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias". |
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O Povo está Divorciado da Cultura |
em 19/05/2013 01:50:04 (2378 leituras) |
O povo está divorciado da cultura, e encolhe-se cada vez mais na sua fome e na sua ignorância. Somos nós, os que saímos dele e o queremos verdadeiramente servir, que temos o dever de o procurar, de o esclarecer, de o interessar activamente na sua própria salvação. Que lhe importam os grandes livros, se ele os não pode nem sequer ler? Que lhe importam as grandes sinfonias, se ele as não sabe ouvir? é urgente chamar o povo à realidade nacional. É preciso interessá-lo de verdade no processo social, onde ele tem o único papel que conta. — Para isso?... — Convidá-lo desde já a votar livre e claramente. Chamá-lo a determinar-se, a escolher os seus homens, a responsabilizar-se no seu destino, — Esse destino é?... — O destino de todos os corpos vivos: crescer, multiplicar-se, procurar a felicidade, e deixar no seu caminho uma nítida e aberta marca de compreensão e de amor.
Miguel Torga, in "Diário (1945)" |
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DIA DAS MÃES |
em 15/05/2013 21:19:42 (1917 leituras) |
DIA DAS MÃES - para aquelas que embalam seus filhos mortos
suspiro de mulher cansada na solidão nublada do quarto um berço imaginário e vazio ao lado da cama um choro feito de silêncio - e só ardendo bem lá no fim-do-mundo da memória lágrimas deixaram de ser lágrimas mas o tempo impiedoso insiste em traze-las de volta - sempre... de que serve o poema nessas horas?
(11-05-12)
http://www.currupiao.blogspot.it/2012/05/dia-das-maes.html |
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Tolerância às Opiniões |
em 26/04/2013 21:24:03 (2079 leituras) |
Para que os homens possam sentir-se felizes com a minha companhia, é necessário antes de tudo que eu tenha a grande força de ver como prováveis as opiniões a que aderiram, desde que as não venham contradizer os factos que posso observar; não devo supor-me infalível; não devo considerar-me a inteligência superior e única entre o bando de pobres seres incapazes de pensar; cumpre-me abafar todo o ímpeto que possa haver dentro de mim para lhes restringir o direito de pensarem e de exprimirem, como souberem e quiserem, os resultados a que puderam chegar; de outro modo, nada mais faria de que contribuir para matar o universo: porque ele só vive da vida que lhe insufla o pensamento poderoso e livre.
Agostinho da Silva, in 'Diário de Alcestes ' |
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A Única Crítica é a Gargalhada |
em 22/04/2013 21:43:14 (3652 leituras) |
A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel – a gargalhada! Política querida, sê o que quiseres, toma todas as atitudes, pensa, ensina, discute, oprime – nós riremos. A tua atmosfera é de chalaça.
Eça de Queirós, in 'Uma Campanha Alegre' |
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A Velhice Pede Desculpas |
em 17/04/2013 19:39:56 (2605 leituras) |
A Velhice Pede Desculpas
Tão velho estou como árvore no inverno, vulcão sufocado, pássaro sonolento. Tão velho estou, de pálpebras baixas, acostumado apenas ao som das músicas, à forma das letras.
Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético dos provisórios dias do mundo: Mas há um sol eterno, eterno e brando e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.
Desculpai-me esta face, que se fez resignada: já não é a minha, mas a do tempo, com seus muitos episódios.
Desculpai-me não ser bem eu: mas um fantasma de tudo. Recebereis em mim muitos mil anos, é certo, com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.
Desculpai-me viver ainda: que os destroços, mesmo os da maior glória, são na verdade só destroços, destroços.
Cecília Meireles, in 'Poemas (1958)' |
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O Beijo Mata o Desejo |
em 11/04/2013 21:43:28 (2624 leituras) |
O Beijo Mata o Desejo
MOTE
«Não te beijo e tenho ensejo Para um beijo te roubar; O beijo mata o desejo E eu quero-te desejar.»
GLOSAS
Porque te amo de verdade, 'stou louco por dar-te um beijo, Mas contra a tua vontade Não te beijo e tenho ensejo.
Sabendo que deves ter Milhões deles p'ra me dar, Teria que enlouquecer Para um beijo te roubar.
E como em teus lábios puros, Guardas tudo quanto almejo, Doutros desejos futuros O beijo mata o desejo.
Roubando um, mil te daria; O que não posso é jurar Que não te aborreceria, E eu quero-te desejar!
António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..." |
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Conduta e Poesia |
em 06/04/2013 19:28:55 (4355 leituras) |
Quando o tempo nos vai comendo com o seu relâmpago quotidiano decisivo, as atitudes fundadas, as confianças, a fé cega se precipitam e a elevação do poeta tende a cair como o mais triste nácar cuspido, perguntamo-nos se já chegou a hora de envilecermos. A hora dolorosa de ver como o homem se sustém a puro dente, a puras unhas, a puros interesses. E como entram na casa da poesia os dentes e as unhas e os ramos da feroz árvore do ódio. É o poder da idade, ou porventura, a inércia que faz retroceder as frutas no próprio bordo do coração, ou talvez o «artístico» se apodere do poeta e, em vez do canto salobro que as ondas profundas devem fazer saltar, vemos cada dia o miserável ser humano defendendo o seu miserável tesouro de pessoa preferida? Aí, o tempo avança com cinza, com ar e com água! A pedra que o lodo e a angústia morderam floresce com prontidão com estrondo de mar, e a pequena rosa regressa ao seu delicado túmulo de corola. O tempo lava e desenvolve, ordena e continua. E que fica então das pequenas podridões, das pequenas conspirações do silêncio, dos pequenos frios sujos da hostilidade? Nada, e na casa da poesia não permanece nada além do que foi escrito com sangue para ser escutado pelo sangue.
Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer" |
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Nunca Ninguém Amou Completamente |
em 31/03/2013 02:33:39 (2090 leituras) |
Vou deitar-te na eternidade, que é esse o teu lugar, é esse, é esse. E agora só tenho que te amar tudo de ti, não deixar nada de fora. Porque, sabê-lo-ás? Nunca ninguém amou completamente, houve sempre uma forma de amar fragmentária, parcial. Amou-se sempre em função de uma fracção do amor como se usou um vestuário segundo a moda, desde o calção ou o penante de plumas. Vou-te amar como Deus. Não, não. Deus não sente prazer nem movimento progressivo até ao prazer, coitado, é tão infeliz. Vou-te amar como um homem desde que os há, desde o tempo das cavernas até hoje e com um pequeno suplemento que é só meu.
Vergílio Ferreira, in "Em Nome da Terra" |
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Baladas Românticas - Verde... |
em 28/03/2013 20:27:40 (1613 leituras) |
Como era verde este caminho! Que calmo o céu! que verde o mar! E, entre festões, de ninho em ninho, A Primavera a gorjear!... Inda me exalta, como um vinho, Esta fatal recordação! Secou a flor, ficou o espinho... Como me pesa a solidão!
Órfão de amor e de carinho, Órfão da luz do teu olhar, - Verde também, verde-marinho, Que eu nunca mais hei de olvidar! Sob a camisa, alva de linho, Te palpitava o coração... Ai! coração! peno e definho, Longe de ti, na solidão!
Oh! tu, mais branca do que o arminho, Mais pálida do que o luar! - Da sepultura me avizinho, Sempre que volto a este lugar... E digo a cada passarinho: "Não cantes mais! que essa canção Vem me lembrar que estou sozinho, No exílio desta solidão!"
No teu jardim, que desalinho! Que falta faz a tua mão! Como inda é verde este caminho... Mas como o afeia a solidão!
Olavo Bilac, in "Poesias" |
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Baladas Românticas - Azul... |
em 28/03/2013 20:24:23 (1634 leituras) |
Lembra-te bem! Azul-celeste Era essa alcova em que te amei. O último beijo que me deste Foi nessa alcova que o tomei! É o firmamento que a reveste Toda de um cálido fulgor: - Um firmamento, em que puseste Como uma estrela, o teu amor.
Lembras-te? Um dia me disseste: "Tudo acabou!" E eu exclamei: "Se vais partir, por que vieste?" E às tuas plantas me arrastei... Beijei a fimbria à tua veste, Gritei de espanto, uivei de dor: "Quem há que te ame e te requeste Com febre igual ao meu amor?"
Por todo o mal que me fizeste, Por todo o pranto que chorei, - Como uma casa em que entra a peste, Fecha essa casa em que fui rei! Que nada mais perdure e reste Desse passado embriagador: E cubra a sombra de um cipreste A sepultura deste amor!
Desbote-a o inverno! o estão a creste! Abale-a o vento com fragor! - Desabe a igreja azul-celeste Em que oficiava o meu amor!
Olavo Bilac, in "Poesias" |
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Egoísmo Relativo |
em 28/03/2013 20:16:16 (3595 leituras) |
Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar, quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade. Reconheço que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim, em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações que em geral revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade, a dedicação por assim dizer quotidiana são cousas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negação delas. Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio, que não sou mais egoísta que a maioria dos indivíduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras. Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente, exigem a dedicação dos outros como um tributo.
Fernando Pessoa, in 'Notas Autobiográficas e de Autognose' |
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Ao coração que sofre |
em 20/03/2013 14:38:28 (7333 leituras) |
Ao coração que sofre, separado Do teu, no exílio em que a chorar me vejo, Não basta o afeto simples e sagrado Com que das desventuras me protejo.
Não me basta saber que sou amado, Nem só desejo o teu amor: desejo Ter nos braços teu corpo delicado, Ter na boca a doçura de teu beijo.
E as justas ambições que me consomem Não me envergonham: pois maior baixeza Não há que a terra pelo céu trocar;
E mais eleva o coração de um homem Ser de homem sempre e, na maior pureza, Ficar na terra e humanamente amar.
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O Beijo |
em 15/03/2013 21:43:47 (3478 leituras) |
Congresso de gaivotas neste céu Como uma tampa azul cobrindo o Tejo. Querela de aves, pios, escarcéu. Ainda palpitante voa um beijo.
Donde teria vindo! (Não é meu...) De algum quarto perdido no desejo? De algum jovem amor que recebeu Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha: colorida, Vai batendo como a própria vida, Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas, De duas bocas que se juntam, loucas! De inveja as gaivotas a gritar...
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca' |
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soneto IX |
em 13/03/2013 15:16:36 (3923 leituras) |
SONETO IX
Nessa tua janela, solitário, entre as grades douradas da gaiola, teu amigo de exílio, teu canário canta, eu sei que esse canto te consola.
E, lá na rua, o povo tumultuário, ouvindo o canto que daqui se evola, crê que é o nosso romance extraordinário que naquela canção se desenrola.
Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia, calado e frio, na gaiola fria, o teu canário que cantava tanto.
E eu chorarei. Teu pobre confidente ensinou-me a chorar tão docemente, que todo mundo pensará que eu canto.
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O Aranhol |
em 11/03/2013 19:44:18 (1638 leituras) |
Entre bromélias, junto à quérula torrente Que do plaino em que habito um longo tracto banha, Num contínuo labor, uma operosa aranha Fia o rico enxoval de noiva, sutilmente.
O tecido brumal, que nunca se emaranha, É feito de um só fio, um tênue fio albente, Que vai, de volta em volta, ininterruptamente, Tramando o brocatel de contextura estranha...
Quando o sol se levanta enviando olhares d´oiro E a aranha, distendendo a fibra, no tesoiro Da renda leve embala as ilusões raiosas,
Na teia, que, filtrando orvalho, oscila e pende, A luz, que se refrange em cada gota, acende Uma aurora boreal de pedras preciosas!
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O Ateu |
em 07/03/2013 16:18:11 (1901 leituras) |
Nos dias da radiosa mocidade, Coroado de ouro, pérolas, rubis, Não cria em nada nem na Divindade Que a alma do crente em êxtase bendiz.
Nunca lhe abrira a mão a Caridade Dos seus anéis o fúlgido matiz. Jamais iluminara a escuridade De um lar sem pão, tristíssimo, infeliz.
Mas teve fim um dia essa ventura: A lepra hedionda, torvo mal sem cura, Fê-lo o mais desgraçado dos ateus.
E hoje, visão dantesca, réu eterno, Transpõe em vida os círculos do inferno, Pedindo esmola pelo amor de Deus... |
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