Prosas Poéticas : 

aberta às palavras...

 
Minha mãe continua remendando o lençol, enquanto a lareira crepita e se ouve o fervilhar da sopa.
Fecha a porta diz a mãe, olha a corrente de ar, e minha avó rabujenta e desesperada... já se encheu a casa de fumo, pois esta cachopa não sabe estar sossegada, anda numa roda viva o tempo todo, parece que tem fogo no rabo...
O principal pensamento estava na brincadeira, a dormir ou acordada sempre a mesma ânsia, a mesma excitação, a brincadeira era a magia que alegrava e fazia brilhar as pedras preciosas que eram meus olhos, de reflexos cor da terra e o verde dos prados, e nos lábios de água fresca sempre o mesmo sorriso.
E quando veio a primavera os pássaros pousaram no peitoril da janela, as sardinheiras deram-lhes as boas vindas, hoje o peitoril da janela vê-se privado dos pássaros, os olhos não brilham mais e o sorriso não tem o mesmo fulgor, só a saudade é que me traz um alívio bem vindo.
A avó rezava de face olheirenta marcada pelas rugas, de quando em quando abria a boca bocejando, e uma ou outra lamúria se lhe escapava dos lábios e ficava meditando na sorte de alguém que partiu para não voltar, esse avô que pairava clandestinamente pela casa como um fantasma.
Dizem os velhos da aldeia que me pareço com ele, como saber ao certo se apenas o conheço duma fotografia que não páro de olhar?
É agora tempo de medrarem as sementeiras, aspiro o cheiro dos campos, quem dera obrigar o relógio a andar para trás.
Às vezes se acerca de mim o pânico, o medo de esquecer, por isso me apresso a passar ao papel, a história dum vaso florido que o sol ergueu com narcisos de ouro e que hoje está quase quebrado, e só a poeira o cobre e a palavra o sente.
Recolho a saudade de mim
quando ao espelho me olho...

rosafogo
natalia nuno


Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira.
Johann Wolfgang Von Goethe



 
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rosafogo
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Enviado por Tópico
JBMendes
Publicado: 19/03/2013 19:16  Atualizado: 19/03/2013 19:16
Autores Clássicos
Usuário desde: 13/02/2010
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 Re: aberta às palavras...
Querida Rosafogo - Lí seu texto. Quanta ternura, quanta saudade, quantas lembraças ?
Recordar é recuar no tempo. Entrar nos templos abandonados e voltar a ouvir o som dos órgãos. Acariciar o musgo que reveste as ruínas de idos tempos...Infelismente não se pode
regressar... O que passou, passou pra sempre...
Um abração
JBMendes


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/03/2013 19:18  Atualizado: 19/03/2013 19:18
 Re: aberta às palavras...
Uma deliciosa leitura, querida Natália!

Nem imaginas o quanto gosto de ler textos assim, de imagens ternurentas , que a cada palavra, vejo, aquilo que ela conta/fala/sussurra. Viajei contigo nesta bela prosa e também senti uma enorme saudade...


Parabéns e obrigada pela partilha!


Bjs,


ALICE


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 19/03/2013 23:11  Atualizado: 19/03/2013 23:11
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: aberta às palavras...
Rosa,
se eu tivesse que escolher um pseudónimo para ti
chamar-te-ia "choro da saudade"
Quanta ternura neste deambular pelo passado,
quanta...! Devia pensar seriamente em juntar
todos estes textos (marcantes) e escrever as tuas memórias,
Gostei muito! E não o escrevo para ser agradável. escrevo.o
do fundo do coração. Bjs e espero que continues...
Vóny Ferreira


Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 20/03/2013 01:59  Atualizado: 20/03/2013 01:59
Usuário desde: 03/09/2012
Localidade:
Mensagens: 18165
 Re: aberta às palavras...
Poetisa Rosa
Bela prosa! Ternas recordações! Adorei!

Recolho a saudade de mim
quando ao espelho me olho...


Parabéns!
Beijos!
Janna