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O sabiá e o Gavião

 
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O Sabiá e o Gavião

(Cordel de Patativa do Assaré)

Eu nunca falei à toa.
Sou um caboclo roceiro,
Que sempre de coisa boa
Eu tive um certo tempeiro.
Não falo mal de ninguém,
Mas vejo que o mundo tem
Gente que não sabe amar,
Não sabe fazer carinho,
Não quer bem a passarinho,
Não gosta dos animais.

Já eu sou bem diferente.
A coisa melhor que eu acho
É num dia muito quente
Eu ir me sentar debaixo
De um copado juazeiro,
Pra escutar prazenteiro
Os passarinhos a cantar,
Pois aquela poesia
Tem a mesma melodia
De um anjo celestial.

Não há flauta nem pistom
De banda rica e granfina
Pra ser sonoroso e bom
Como o galo de campina,
Quando começa a cantar
Com sua voz natural,
Onde a inocência se encerra,
Cantando na mesma hora
Que aparece a linda aurora
Beijando o rosto da terra.

O Sofreu e a Patativa
Com o canário e o Campina
Tem canto que me cativa,
Tem música que me domina,
E inda mais o sabiá,
Que está primeiro lugar,
É o chefe dos seresteiros,
Pássaro nenhum lhe condena,
Ele é dos músicos de pena
O maior do mundo inteiro.

Eu escuto aquilo tudo,
Com grande amor, com carinho,
Mas, às vezes fico sisudo,
Porque contra os passarinhos
Tem o gavião maldito,
Que, além de muito esquisito,
Como igual eu nunca vi,
Esse monstro miserável
É o assassino das aves
Que canta pra gente ouvir.

Muitas vezes voam em botes,
Mais pior de que a serpente,
Leva dos ninho os filhotes
Tão lindo e tão inocentes.
Eu comparo o gavião
Com esse grande fanfarão,
Do instinto cruel e feio,
Que sem ligar gente pobre
Quer fazer papel de nobre
Chupando o suor alheio.

As Escritura não diz,
Mas diz o coração meu:
Deus, o maior dos juiz,
No dia que resolveu
A fazer o sabiá
Do melhor material
Que havia em riba do chão,
O Diabo, muito enxerido,
Lá num cantinho, escondido,
Também fez o gavião.

De todos que se conhece
Aquele é o pássaro mais ruim
É tanto que, se eu pudesse,
Já tinha lhe dado fim.
Aquele bicho devia
Viver preso, noite e dia,
No mais escuro xadrez.
Já que tô de mão na massa,
Vou contar a grande arruaça
Que um gavião já me fez.

Quando eu era pequenino,
Saí um dia a vagar
Pelos matos sem destino,
Cheio de vida a escutar
A mais sublime beleza
Das músicas da natureza
E bem no pé de um serrote
Achei num pé de juá
Um ninho de sabiá
Com dois mimosos filhotes.

Eu senti grande alegria,
Vendo os filhotes bonitos.
Pra mim eles parecia
Dois anjinho do Infinito.
Eu falo sério, não minto.
Achando que aqueles pinto
Era santo, era divino,
Fiz do juazeiro igreja
E beijei, como quem beija
Dois Santos bem pequeninos.

Eu fiquei tão prazenteiro
Que me esqueci de almoçar,
Passei quase o dia inteiro
Naquele pé de juá.
Pois quem ama os passarinhos,
No dia que encontra um ninho,
Somente nele imagina.
Tão grande a demora foi,
Que mamãe (Deus lhe perdoe)
Foi comigo à disciplina.

Meia légua, mais ou menos,
Se medisse, eu sei que dava,
Dali, daquele terreno
Pra palhoça onde eu morava.
Porém, eu não tinha medo,
Ia lá sempre em segredo,
Sempre escondido, sozinho,
Temendo que algum menino,
Desses perverso e maligno
Mexesse nos passarinhos.

Eu mesmo não sei dizer
O quanto eu tava contente
Não me cansava de ver
Aqueles dois inocentes.
Quanto mais dias passavam,
Mais bonito eles ficavam,
Bem maiores e mais sabidos,
Pois não estavam mais pelados,
Os seus corpinhos rosados
Já estavam todos vesstidos.

Mas, tudo na vida passa.
Amanheceu certo dia
O mundo todo sem graça,
Sem graça e sem poesia.
Qualquer pessoa que visse
E um momento refletisse
Nessa sombra de tristeza,
Dava pra ficar pensando
Que alguém estava bolinando
Nas coisas da Natureza.

Na copa dos arvoredo,
Passarinho não cantava.
Naquele dia, bem cedo,
Somente a cauã mandava
Sua cantiga medonha.
A manhã tava tristonha
Como casa de viúva,
Sem prazer, sem alegria
E de quando em vez, caía
Um sereninho de chuva.

Eu olhava pensativo
Para o lado do Nascente
E não sei por qual motivo
O sol nasceu diferente,
Parece que arrependido,
Detrás das nuvem, escondido.
E como o cabra zarolho,
Botava bem traiçoeiro,
Por detrás dos nevoeiro,
Só um pedaço do olho.

Uns nevoeiro cinzento
Ia no espaço correndo.
Tudo naquele momento
Eu olhava e tava vendo,
Sem alegria e sem jeito,
Mas, porém, eu satisfeito,
Sem com nada me importar,
Saí correndo, aos pinotes,
E fui reparar os filhotes
No ninho do sabiá.

Cheguei com muito carinho,
Mas, meu Deus! que grande agouro!
Os dois velhos passarinhos
Cantava num som de choro.
Ouvindo aquele gorjeio,
Logo no meu corpo veio
Certo chamego de frio
E subindo bem ligeiro
Pr’as galha do juazeiro,
Achei o ninho vazio.

Quase que eu dava um desmaio,
Naquele pé de juá
E lá da ponta de um galho,
Os dois velhos sabiás
Mostravam no triste canto
Uma mistura de pranto,
Num tom penoso e funéreo,
Parecendo mãe e pai,
Na hora que o filho vai
Se enterrar no cemitério.

Assistindo àquela cena,
Eu juro pelo Evangelho
Como solucei com pena
Dos dois passarinhos velhos
E ajudando aquelas aves,
Nesse ato desagradável,
Chorei fora do comum:
Tão grande desgosto tive,
Que o meu coração sensível
Aumentou seus baticum.

Os dois passarinhos amados
Tiveram sorte infeliz,
Pois o gavião malvado
Chegou lá, fez o que quis.
Os dois filhote tragou,
O ninho desmantelou
E lá pras banda do céu,
Depois de devorar tudo,
Soltava o seu grito agudo
Aquele assassino cruel.

E eu com o maior respeito
E com a suspiração perra,
As mão posta sobre o peito
E os dois joelhos na terra,
Com uma dor que consome,
Pedi logo em santo nome
Do nosso Deus Verdadeiro,
Que tudo ajuda e castiga:
Espingarda te persiga,
Gavião arruaceiro!

Sei que o povo da cidade
Uma ideia inda não fez
Do amor e da caridade
De um coração camponês.
Eu sinto um desgosto imenso
Todo momento que penso
No que fez o gavião.
E em tudo o que mais me espanta
É que era Semana Santa!
Sexta-feira da Paixão!

Com triste recordação
Fico pra morrer de pena,
Pensando na ingratidão
Naquela manhã serena
Daquele dia azarado,
Quando eu saí animado
E andei bem meia légua
Pra beijar meus passarinhos
E encontrei vazio o ninho!
Gavião fího da égua!


verde

 
Autor
João Marino Delize
 
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