Contos : 

Na arte o que é deformado tem mais valor

 
A verdade não pode ser contada em soneto. Nem numa cantiga de amigo. A verdade é um sim ou não.

O humorista tem de estar preparado para rir, fazer de conta que, armar-se em pateta, coçar o pêlo do nariz, fazer o quatro e cair de cu, etc, mesmo que no dia anterior à sua representação, tenha levado um excerto de porrada por meia dúzia de ciganos. Nada contra os ciganos. Metaforismos.

Então é assim: o humorista assistiu a tudo: desde à rebentação das àguas até aos bebés nascerem. Dois: um menino e uma menina. Assim nesta ordem, sairam do ventre da mãe-preta. Que estava deitada numa banca de pedra fria, a parteira com suas mãos grossas por debaixo do lençol, banhado em sangue, os gritos de alguém que pisa uma mina e que nem pense levantar o pé!, a boca mordendo uma rodilha da cozinha, seus olhos lagartos meio cêntimetro fora dos côncavos.

O homem pega na mão dela, diz-lhe força, puxa, está quase, vá lá, tu consegues. As dores fazem pregas na alma, estalam a tinta das paredes.
Tudo é normal quando o ponteiro do relógio pára, ou quando a música acaba de repente e o dançarino ainda teria mais passos para dar.

Somos capazes de imitar vozes mas não somos capazes de distinguir em certas alturas o gemido do choro. Mãe-preta será depois de tudo uma canção de embalar.

Após amainar a forte batida do tambor, o menino saiu a chorar e mãe-preta sorriu. Dois minutos depois, a menina saiu calada e mãe-preta chorou.
E todos os que assistiam ao parto comparticiparam no choro.

Os médicos abanavam suas cabeças porque não viram na ecografia que a menina tinha os dedos colados uns aos outros. Mãos de peixe, catalogaram.
Dizer que outros já nasceram assim não tira a dor.

Haverá um país que os separe, mas para isso é preciso muita solidariedade, em caixas improvisadas, para colocar nos cafés da beira, e a fotografia da menina a cores, dizendo adeus com seus dedinhos de desenho animado.

Na arte, o que é deformado é o que tem mais valor. Na vida real é o contrário.

Todos ficaram tristes durante dias e dias, transferindo a menina daqui para acolá em busca de uma solução, excepto pai da criança que, para sobreviver, tinha de fazer rir as pessoas num bar até às duas da manhã,
de cara pintada e nariz vermelho,
enchendo o copo de wisky,
emborrachando-se,
caindo de queixos no chão,
gozando com Deus, e todo o público aplaudindo, mijando-se de riso, e a vida dentro de um cubo de gelo esperando que a alegria o faço derreter.
 
Autor
flavio silver
 
Texto
Data
Leituras
1196
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
8 pontos
8
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 26/07/2008 13:43  Atualizado: 26/07/2008 13:43
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: Na arte o que é deformado tem mais valor/Flávio
Ohhhhhhh Flávio!!!!
Que história triste, ainda gostava de saber porque não nascemos todos perfeitos, lindos, inteligentes...
A vida é tão injusta, madrasta. Como professora confronto-me com a diferença, uns aprendem tudo mesmo sem ninguém ensinar e outros vêem-se aflitos e muitas vezes nem conseguem fazer nem identificar uma letra...
Bela reflexão, gostei de ler.

beijo


Enviado por Tópico
Julio Saraiva
Publicado: 26/07/2008 17:26  Atualizado: 26/07/2008 17:27
Colaborador
Usuário desde: 13/10/2007
Localidade: São Paulo- Brasil
Mensagens: 4206
 Re: Na arte o que é deformado tem mais valor p/flavio silver
gosto demais da sua literatura. acho sinceramente que já está na hora de você ir à luta, ou seja, tratar de colocar sua bela prosa em livro. interessante no seus textos é que você tem a capacidade - e isto não é qualquer um - de colocar em seus contos momentos da mais alta poesia. realismo cruel e surrealismo convivem harmoniosamente no seu universo literário. não sei das dificuldades de publicação aí em portugal. no brasil, a coisa não é muito fácil. não faz muito, uma amiga, que esteve um ano estudando como bolseira na universidade de coimbra, enviou-me um livro de um jovem autor, jacinto lucas pires. o título do livro é Tudo e Mais Alguma Coisa. faz parte de uma coleção lançada pela editora Visão. sinceramente, li e não gostei. ao lado deste autor há nomes importantes da literatura portuguesa contemporânea, como Vasco Graça Moura. acho que a prosa sua, do zé torres e do antónio paiva nada ficam a dever a este jacinto lucas. aliás vocês são infinitamente melhores. meu caro flavio, não rasgo seda nem jogo confetes à toa. sua prosa é ousada e corajosa. parece desafiar toda a moral, sem ser imoral ou amoral. esta história, por exemplo, é triste, é cruel, é real, mas não mergulha no dantesco não. para dor, você devolve a ironia. e a ironia, meu amigo, é uma das principais armas do grande escritor.

admiração e afeto,

júlio


Enviado por Tópico
Zélia Nicolodi
Publicado: 26/07/2008 21:10  Atualizado: 26/07/2008 21:10
Colaborador
Usuário desde: 18/01/2008
Localidade: Curitiba - PR.
Mensagens: 983
 Re: Na arte o que é deformado tem mais valor
...muito triste!
Mas, seu conto é excelente...
Envolve sentidamente...

Beijos de luz e um domingo feliz, Flávio!!!


Enviado por Tópico
Bruno Sousa Villar
Publicado: 26/07/2008 23:07  Atualizado: 26/07/2008 23:07
Da casa!
Usuário desde: 09/03/2007
Localidade:
Mensagens: 429
 Re: Na arte o que é deformado tem mais valor
F****!
De mim não virá melhor palavra de admiração.