Ícaro Avesso
Antes de morrer, acendeu um cigarro.
Como uma fome, uma ereção,
Seu corpo sentiu desejo de câncer.
Afinal, para quem está vivo, o que mais resta, senão,
Escrever a morte com dois quartetos e dois tercetos?
Tragou a fumaça e, sóbrio,
Lembrou-se de poemas beats que leu no passado.
Enquanto limpava a testa com o lenço velho,
Solfejou Belchior.
Apesar dos dedos trêmulos,
Ajeitou a barra da calça que poderia atrapalhar.
Levantou, pegou dois tijolos que estavam encostados,
Posicionou-os próximo ao parapeito de onde via a cidade
- impressionante como nunca havia notado que o vizinho ouve sempre boleros antigos... – disse.
Mirou um orelhão na avenida,
Coçou o calcanhar com a unha suja,
Tomo distancia e despencou.
Enquanto caia, pensou: “será que desliguei o abajur?”
Sua foto, no jornal de hoje, embrulhou o fígado que comprei.
Insulto
Naquele canto de cidade,
Confusa feito ambição proletária,
Caminhava entre a overdose e um coração partido.
Tinha manchas de sangue na jaqueta.
Seus olhos vermelhos, talvez de sono,
Projetavam cenas de Almodovar
Para deleite de vagabundos que morriam em silêncio.
Seus passos lentos,
Contrapondo-se as máquinas de ponto,
Perdiam-se no movediço asfalto
Feito de gritos e sorrisos amputados.
Seu corpo era uma forma de insulto.
Seus lábios, aromatizados por maconha e sexo descartável,
Cuspiam os últimos versos do apocalipse,
Enquanto cães uivavam nos terreiros católicos.
Mesmo cansada, agredia o vento,
Imprimindo desgosto aos que desconheciam sua existência,
Àqueles que baixavam seus chapéus à sua presença
Subversivamente viva frente a seus óculos falsificados.
De repente, fez-se noite,
E todas as teorias emudeceram.
Arremessada junto à parede,
Atingida por um sonho desgovernado,
Ossos quebrando-se em histérica euforia,
Moléstias esfregando-se em bacanais,
Tocou seu sexo e arremessou, liberta,
Seu suspiro lapidar ao mundo que lhe perdia:
“Vão todos a puta que os pariu!”
À Charles Bukowski.
Sonhos e Esperma
Amaram como amigos,
Como meninos,
Sabedores da fugacidade do impalpável.
E por sabê-lo, por reconhecê-lo,
Deixaram seus corpos à margem,
Livres e incoerentes para nascer
Em qualquer manhã sem prestígio.
Negaram sínteses e predicados.
Eram expedicionários do insignificante,
Além das nomenclaturas,
Aquém de relógios e explicações.
E por amar, singelos profanos,
Voltaram meninos, correndo, travessos,
Entre folhagens de um jardim libertino.
Acordaram cheirando à sonho e esperma.
Tragicomédia Urbana
À Antônio Variações
- Andava?
- Sim, andava com os gametas ligados
- Olhava?
- Sim, olhava as pessoas em seus palcos
- Pensava?
- Sim, pensava em acabar com sua vida concreta
- Temia?
- Sim, temia encontrar outra para algum reparo
- Comeu?
- Sim, comeu verdades com catchup
- Sorriu?
- Sim, sorriu ao saber que desentendia
- Mordeu?
- Sim, mordeu a língua enquanto refletia
- Parou?
- Sim, parou para deixar o vento passar
- Voltou?
- Sim, voltou seus olhos para a inexistência
- Sangrou?
- Sim, sangrou um poema no chão da calçada
Dias de chuva fazem sangrar
Naquele momento eu descobri uma verdade:
noites de chuva fazem sangrar.
Contemplando a solidão revestida num olhar,
para não romper com o inevitável,
Eu deixei a chuva cair.
Ainda hoje recebo seus pingos ácidos.
Na varanda de meus pensamentos mais ocultos,
aquela dor renasce silente e pura, quase branca,
Fazendo de meus dias ofertas vãs.
As horas são nostálgicos versículos sem santidade.
O vento da noite atrofia meus sentidos.
São escuros os contornos da existência.
Uma noite sem estrelas: eu sigo o caminho.
Sinto tocar no rosto, unindo às lágrimas,
A mesma chuva que nasceu outrora
e que molhou meu rosto com segredos.
A dor e os trovões compõem sinfonias.
As ruas são tão intimas de quem nada tem.
Somos herdeiros de moléstias ancestrais
caminhando dementes com nossos sapatos sujos.
Dançamos molhados e loucos como num velho filme.
A chuva cai desconhecendo tudo.
Esquecer é uma dádiva que não disponho.
Amaldiçoado estou pela vivida memória do tempo,
por todas as chuvas, por todos os sentidos em combustão.
Meus versos dormem ao relento.
Meu corpo é a continuação da sarjeta que fiz morada.
E a chuva cai, contínua, inquiridora,
Lembrando sempre o axioma maldito:
dias de chuva fazem sangrar, sempre.