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crónica sobre a crónica mais triste do mundo

 
crónica sobre a crónica mais triste do mundo

Ninguém sabe quando nem como, mas aconteceu nesta vida, neste planeta, neste continente, neste país, nesta cidade, nesta aldeia, nesta rua, nesta casa, neste quarto, que inventei a crónica mais triste do mundo.

Não era coisa de vida real ou alegorias de cavernas, era um texto que falava de terra e oceanos sem nunca ter saído daqui.
Eu próprio chorei em cada verso, ainda hoje tenho marcas fundas debaixo dos olhos que, para ver ao longe, agora preciso de óculos graduados. Mas tive de lutar até ao fim, rasgando meu corpo para alcançar o verbo que se escondeu atrás de um substantivo que era filho da mãe.

Cada parágrafo era mais uma tristeza. Caramba, não bastava o dinheiro que gasto em raspadinhas.

Um anjo avisou-me que parasse, pois os danos são de cegueira para cima e caganeira para baixo. Arrisquei. E o anjo sumiu no seu Ford Fiesta a gasóleo.
Desde daí, fiquei só, na possibilidade de tornar óbvio todo o obscuro que me rói.

Mas não tenham pena de mim que o cangalheiro também não tem, pois já o vejo sorrindo, asquerosamente, com os seus dentes que era de outro que morreu.
Pedi a deus uma forcinha, e ele respondeu-me assim: agora não, tenta mais tarde. Infelizmente terminei a crónica, com pequenas minas em cada palavra.

Avisei o leitor para que tivesse cautela, não fosse ele cair em tentação de chorar feito uma Madalena arrependida. Mas nem isso evitei. Na semana em que me leram, os psicólogos deram mais de mil consultas a pessoas que, sem razão aparente, se entristeceram ao ponto de roçar a loucura.

Inicialmente, pensou-se que seria o facto do Cristiano Ronaldo começar a cantar, mas não, essa súbita tristeza foi causa\efeito da leitura à crónica mais triste do mundo, que, entre outras contra-indicações, aguarda aprovação para entrar no livro de s. Cipriano dentro de uma arca de gelados.

Toda a cidade envolveu-se em mistério, e as autoridades deixaram bem claro: ninguém chega perto dessa crónica! O exército montou um esquema. Não viesse uma palavra por aí e fizesse surto na população.

Caso semelhante a este só mesmo a gripe espanhola. Alerta vermelha em todo o país.
As sirenes tocavam pelas 21:30, os civis obrigados a recolherem-se às suas casas e, enquanto isso, no silêncio dos silêncios, cientistas de várias nações, incluindo Freud, que fora refiscado do túmulo, reuniam-se em subsolo na esperança de inventar vacinação.

O clima era tenso, estradas cortadas, os hospitais à pinha, crianças, velhos, grávidas, padres, políticos, ninguém escapava à tristeza da triste crónica, que em sete dias quase fez parar o país. Pelo que se sabe, nem a Amália no seu melhor causou tanta choraminguice.

“Antes viesse um dilúvio!”, comentavam familiares das pessoas afectadas. Pensou-se também se não seria o Bin Laden quem estivesse por detrás deste cenário. alguém veio a público dizer: se o autor resolve escrever mais duas ou três crónicas de igual género, preparem-se para o pior! Arma química!
Nem filósofos, catedráticos de língua portuguesa românica, quanto mais curandeiros, que logo viram uma oportunidade de negócio, fazendo uns trabalhinhos de espiritagem nas casas dos incrédulos.

E o pior era o contágio. As pessoas choravam por tudo e por nada. Pareciam bebés quando não querem ir já para a cama. Mal começavam a ler choravam e deprimiam-se, ou vice-versa.

Por estas e por outras, especialistas em fatos especializados, recolherem todos os jornais com o máximo de cautela, à base de pinças.

Pois se uma crónica deste calibre caísse em mãos alheias, já se imagina o fim. Chegaram até pedir auxílio ao super-homem, mas por azar encontrava-se nas Caraíbas a curar uma enxaqueca, ou melhor dizendo, uma kriptonitite aguda. Já o homem-aranha, estava a rodar mais um filme.

Eu, como autor, fui chamado a depor e, no momento em que subi as escadas da barra do tribunal, as pessoas em fúria, munidas de tomates, ovos, mp3 avariados, CDs do Emanuel, ao lançarem sobre mim sem me avisar, lógico que acabei ficando com a cara numa salada.

O juiz estava de máscara a tapar-lhe a boca e o nariz. Os polícias idem aspas. Os jornalistas tinham a gola das suas camisolas até ao nariz afim de se protegem também eles de uma possível transmissão de vírus triste. Um passo em falso e a tristeza propagar-se-ia.

Por isso cautela. Muita cautela. O original estava ali, dentro da arca de gelados. Sentia-se o pavor a vinte quilómetros. O juiz ordenou-me que lesse a crónica em voz alta. Mas antes disso todos os presentes começaram a fazer cóceguinhas uns aos outros para que o efeito fosse menorizado.

Quando me dirigi para arca de gelados, ouviu-se um rufo. Talvez apenas dentro de mim. Peguei cuidadosamente na folha. O tribunal tinha todas as janelas fechadas. Todas as pessoas tinham suas bocas fechadas. Também o silêncio estaria de boca fechada. Agora vou contar como foi. Comecei a ler: era uma vez…

E, dito isto, veio um vento que não se sabe de onde e levou a crónica para um lugar que ainda hoje não se sabe. No entanto, encontra-se pessoas por aí, tristonhas, tão afectadas ainda que nem consegue trabalhar. Reclamando os seus direitos, pensões, reformas, enfim, coisa de português mesmo, de quem chora não mama.


p.s. pede-se a toda e qualquer pessoa deste planeta que, se encontrar uma crónica suspeita, por favor, não a leia, nem chegue perto, ateie-lhe fogo ou coisa parecida. A continuidade deste planeta habitável depende de qualquer um de nós. Obrigado. Assinado por presidiário nº 2359823\C
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 28/11/2009 15:42  Atualizado: 12/12/2009 11:54
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
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Mensagens: 3422
 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo
Essa é talvez a razão que explica o facto de sermos um povo triste...


beijo Flávio

Enviado por Tópico
TRIGO
Publicado: 28/11/2009 15:54  Atualizado: 28/11/2009 15:54
Colaborador
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Localidade: Cabeça-Boa - Torre de Moncorvo
Mensagens: 2309
 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo
...
FLAVIO

Cada parágrafo era
Uma
Tristeza
E disto isto um vento
Que não se sabe
De
Onde
....

A crónica
Sobre a crónica mais triste do mundo



PARABÉNS!
UM ABRAÇO

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 28/11/2009 18:08  Atualizado: 28/11/2009 18:08
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7071
 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo
Mas que tristeza Flávio, mas que tristeza!

Foi bem capaz de ter sido eu que a encontrei e como por causa da crise, já não dá para comprar papel perfumado, utilizei-a no mo meu W.C e hoje tenho o corpo cheio de borbulhas, se calhar vem mesmo daí, que pensas?, Há remédio?

Obrigado pela informação, aquele abraço e bom fim de semana.

A. da fonseca

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 28/11/2009 18:08  Atualizado: 28/11/2009 18:11
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7071
 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo
Mas que tristeza Flávio, mas que tristeza!

Foi bem capaz de ter sido eu que a encontrei e como por causa da crise, já não dá para comprar papel perfumado, utilizei-a no mo meu W.C e hoje tenho o corpo cheio de borbulhas, se calhar vem mesmo daí, que pensas?, Há remédio?

Obrigado pela informação, aquele abraço e bom fim de semana.

A. da fonseca

Fiquei tão inquieto que até dupliquei

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/11/2009 18:30  Atualizado: 28/11/2009 18:30
 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo
Com a tristeza morri a rir.
Abraço

JLL

Enviado por Tópico
Caopoeta
Publicado: 11/12/2009 20:17  Atualizado: 11/12/2009 20:17
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 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo a flavio
..continuas a torturar as pessoas mais felizes com as tuas palavras que parecem tão despreocupadas..não tens jeito paras estas coisas tristes caro amigo..

excepto para ouvir umas coisas de Emanuel na cabeça....
podes ficar descansado se porventura encontrar algo suspeito..publico que é meu! rsrsrs


abraços.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 12/12/2009 11:36  Atualizado: 12/12/2009 11:37
 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo
Olá Flávio.

Só agora me recompus da tristeza profunda em que fiquei ao ler o teu texto desde que o postaste. Pensei até em pedir uma indemnização por danos causados, porque depressão não é brincadeira. Sorte a tua não estarmos nos EUA.

Muito bem escrito.

Beijo azul


Enviado por Tópico
Avozita
Publicado: 12/12/2009 12:05  Atualizado: 12/12/2009 12:05
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 Re: crónica sobre a crónica mais triste do mundo
Flávio já tudo esgotei, lenços de papel, papel higiénico, sei lá que mais... que tristeza....
Chorei a rir, mas que tem toda a logica tem.
Muito bem imaginada esta cronica.
Parabens
Abraço
Antonieta