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104

 
- al berto -



. façam de conta que eu não estive cá .






"deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói. mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto, fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor."
al berto





queria dizer-te onde dói. agarrar o bálsamo dos olhos e cravar a língua na pele. eras rude e belo, perfeito e ameno. eras o tempo de ver nascer as flores. cresciam-te entre as lágrimas, onde barcos atracavam às portas do corpo, o teu corpo de pássaro ferido. cortaram-te as asas com as pernas. eu soube de ti quando o manuel escreveu uns versos e o helder os despiu. mas não me viste a sobrevoar o futuro, não.ó al berto onde meteste a saudade? queria construir com ela umas asas novas para te entregar, talvez então me levasses contigo, não sou daqui, sou do mar, de onde se vêem as docas, de onde se cheira longe a terra entre os olhos. estou aflita. tu sabes que quando se está aflito se traz um coração pesado ao peito. no meu o mapa dos teus dedos como carimbos de fogo, selos de água, andávamos perdidos, andamos ainda, tu nos teus poemas e eu nos meus textos, à espera que as ondas me levem para casa.


 
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Margarete
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/02/2010 23:08  Atualizado: 22/02/2010 23:08
 Re: 104
por vezes não consigo conceber o coração a sentir assim.
por vezes digo que não
mas é...
boa exteriorização
beijo

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 22/02/2010 23:12  Atualizado: 22/02/2010 23:35
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 Re: 104 para mar
muito bonito o resultado desta intertextualidade entre o que de ti conheço em termos de escrita, mar e o que conheço do al berto.dor com dor,nas suas nuances.gosto de te seguir nestes diálogos literários.

um grande abraço

alex

Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 22/02/2010 23:31  Atualizado: 22/02/2010 23:31
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 Re: 104
conheci o Al Berto ainda ele não o era, mas já escrevia como se o fora. acompanhei a sua dolorosa ascensão, mas de caminhos paralelos poucos contactos mantivemos nos seus últimos anos de vida. e se ele escrevia bem, fosse em que registo fosse. fez bem em se lembrar dele, escrevendo de forma que o merece...

beijo
arfemo

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/02/2010 01:48  Atualizado: 23/02/2010 01:48
 Re: 104
Olá Margarete, vim ao cheiro do mar, da maresia que corre de veia em veia à procura de um rio, de um braço de terra, de uma aragem e deixei-me mergulhar no belo das tuas palavras...
Beijo de admiração
joão raimundo

Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 24/03/2010 23:39  Atualizado: 24/03/2010 23:39
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Localidade: braga.
Mensagens: 1199
 carta de emile de al berto
a minha cidade tinha um rio
donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo
e um eflúvio de enxofre e de moscas cercando
as cabeças dos vivos

as pontes
as que vi ruírem nas imagens dos jornais
continuam de pé algures na memória

mas não podíamos sair dali
ir falar ou trocar fosse o que fosse - ou resistir
- porque não tínhamos nada para trocar excepto
a fome e a vontade inabalável de viver

nem pão nem balas
nem esperança - e cada um de nós metamorfoseou-se
num cemitério ambulante - cada um de nós
sepultou na alma uma quantidade desumana
de dor e de mortos

tudo se decompõe
apodrece
e as mãos enterram-se no estrume das horas - assim
te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna



Al Berto
Vigílias
Assírio & Alvim, 2004