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Acorda. Vai viver

 
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E tu que só querias um sítio para morar. O teu pequeno t1 com garagem…; Tu que só querias um sítio para arrumar as trouxas e que te desse descanso à noite. Sem crianças, sem chatices.

Só querias uma rotina onde mergulhar, um limbo do qual emergissem sorrisos quentes; no qual encontrasses as pessoas como entidades luminosas predestinadas, maquinais, prontas a dar-te o pão quente pela manhã e uma palmadinha nas costas, esfregando-te o ego, tacteando-te as vontades, para, num sorriso agridoce, depois de partilhares que vais tendo um emprego sólido, te garantirem que “isso é que é preciso”.

Mas não é isso que é preciso.

Querias expandir-te ao mais ínfimo de ti. Querias um sono glaciar e cristalino: nada existiria senão o que quisesses que existisse; e o que quer que fosse existir existiria, indubitavelmente, para ti. Nada ouvirias senão o que quisesses ouvir, o que querias ouvir; e o que querias ouvir eram aquelas vozes de um timbre único, que te serviam e serviam… e te acalmavam o formigueiro nos pés quando ficavas nervoso.

Caminhas pela diferença e pela indiferença; por quadros lúgubres, baptizados pela lágrima que já escasseia daqueles que neles figuram. Obras pictóricas à escala urbana adquiridos a lúgubres (também elas) quantias pelos indiferentes: aí está a diferença. E o que te parecia uma nascente vítrea, brilhante, do líquido divinal é, afinal, não mais do que uma mistura suja de químicos de limpeza despejados sobre a calçada por uma senhora carrancuda, e que agora te chega aos pés. E que só agora consegues ver.

E foi assim, de forma tão suja, que tu, que querias despistar a vida, acabaste por ser enganado pelo truque de ilusionismo mais barato. Estás vivo, quer queiras, quer não.


Rui Gomes

 
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RGz
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