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Foi no 1º dia de um Dezembro distante...

 
Eram quase cinco horas da madrugada. Ela dormia e seus filhos também. A chave rodou na porta, os passos ameaçavam a entrada no quarto e ela foi arrancada da cama, com violência. Arrastada por um braço até à cozinha, encostou-se à parede aquecendo a comida no fogão, que deveria ter sido do jantar. Já nada tinha a perder e muito menos a ganhar. A colher de pau dava voltas no velho tacho de alumínio, enquanto à mesa a violência, virada do avesso, esperava batendo com o garfo no prato num ruído sinistro, ameaçador. Mas ela já nada tinha a perder e a comida quase queimava…
Depois de encher o apetite, deitou-se, achando que tinha cumprido a sua obrigação de homem a sério!
Ela olhou para as chaves do BMW, num convite gritante para lhes pegar e dali sair. Os seus filhos prendiam a sua vontade. O mais velho acordou:
- Mãe, eu vou contigo!
Lá fora, a chuva era miudinha e o frio apertava. O carro arrancou do seu lugar, mal estacionado na bebedeira azul do idiota. Ela conduziu devagar, porque vagar não lhe faltava… Foi dando voltas para não adormecer e não faltar ao emprego às sete horas da manhã. As lágrimas mal disfarçadas nunca passaram despercebidas ao seu filho.
A poucos metros de casa:
- Mãe, deixa-me conduzir agora…

Ela passou para “o lugar do morto”. Numa curva que convidava ao desafio mortal, ela ouve a voz do seu menino:
- Mãe, vou mostrar-te como se faz esta curva!
Diante dos olhos dela, o alcatrão serpenteou, o carro chiou, ela desmaiou antes de ser projectada, violentamente, contra o vidro da frente. Entrou num túnel escuro, que mais não era do que uma gigantesca roda de camião.
Quando recuperou os sentidos, sentiu a vista direita molhada, como um botão de rosa vermelho, aberto. Sem forças, levou a mão ao rosto. Pessoas ali espalhadas à sua volta, olhares horrorizados:
- Não faça isso, a ambulância já vem a caminho!
Quando olhou para o seu braço, reparou que a manga da camisola estava ensopada em sangue. Foi aí que se apercebeu do acidente. Afinal, ia chegar atrasada ao emprego! A ambulância chegou. O seu filho estava desesperado e ela, desesperada por ele.
- Como se chama?
- Onde vive?
- Que idade tem?
Esteve seis horas na sala de oftalmologia. Foram quarenta e dois pontos à volta da vista e testa. Andaram com ela numa maca, de um lado para o outro, antes de entrar na sala de tratamentos. Ela sentiu frio, pediu um cobertor e pensou que ia morrer…
Após seis horas, voltou para casa com a cabeça envolta em gazes brancas.
Não chegou atrasada ao emprego… Apenas o perdeu…

Após trinta dias, quando lhe retiraram as gazes brancas, ouviu de si própria um grito dilacerante, em frente ao espelho. Onde estavam as suas pestanas? Onde estava a sua sobrancelha? Que aspecto era aquele que tinha transformado o seu rosto em qualquer coisa horripilante?

Hoje, sempre que passa naquele lugar sente suores frios a ensoparem-lhe o corpo…

Manuela Fonseca


Manuela Fonseca
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http://ensaios-poeticos.blogspot.com

 
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Manuela Fonseca
 
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Enviado por Tópico
Tália
Publicado: 13/10/2007 22:43  Atualizado: 13/10/2007 22:43
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 Re: Foi no 1º dia de um Dezembro distante...

Enviado por Tópico
Paulo Afonso Ramos
Publicado: 13/10/2007 22:52  Atualizado: 13/10/2007 22:52
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 Re: Foi no 1º dia de um Dezembro distante...
Um texto real!
Uma mensagem para pensar...

Parabéns Amiga

Beijo AR