Prosas Poéticas : 

Estou de partida

 
No trajecto do crepe, na alacridade póstuma dos sentidos,
prossigo, ilharga quebrada, batel sem rumo, velejado ao fumo seco do teu cigarro.
Por entre o céu
Por dentro da terra
Por sobre a serra, na foz do rio, noz solta no lívido lago, pó no saibro e no barro!

… Sobra-nos a peleja. A lide desavinda, adormecida na ausência da palavra, alastrada na ferrugem do tempo, manifesta em salinas ensaibradas, nas carpas douradas a rebrilhar no tanque e nos baixios dos arrozais.

Coisas banais…

O Inverno adensa-se em endemismos tediosos. Em pluviosidades adivinhadas e, a noite, a noite azuleja-se e rendilha-se nos bilros da memória. Gélida, mergulha-se agora em archotes brandos.

Nos campos as cores do fogo contrastam com o tempo frio. O corpo desnudo das árvores é esqueleto erecto de troncos e de ramos. Vareja-se nas tranças soltas do vento e lá, lá amado, te asseguro, existe ainda uma cândida flor, uma flor subliminar, uma pétala goiva ainda por decantar.
Um néctar,
e uma mariposa-cigana errante.
E uma brisa marinha dum mar, dum mar rosa de espuma, dum mar gentio que se agiganta íntegro e absoluto na busca constante do teu vulto.

Ao ritmo dum gesto resoluto, desdigo o verbo, contradigo a dança que te ofereço, a valsa primeira d’ infanta, de mulher-criança, assassino a crença em matizes d’amarelos menores, afogo o beijo no gelo fontanário da pedra, fustigo-me em mimetismos opulentos de gestos coevos, cada vez mais espaçados, cada vez mais lentos.
Caminho escadarias imaculadas de brancas, regresso ao banco dos caminhos, aos portões negros dos castelos seculares, inerte ao apelo da alma, à liderança de ti sobre todos os meus espaços. Sobre todos os meus passos.

Num compasso alado, da serra a ventania traz-me agora a folhagem amarelada, em bandos de estrelas cansadas.
Nos jardins de mim, moram magnólias desnudas em formas decúbitas d’aguarelas. Guardiãs de um tempo lato, os Aceres do Oriente, acolhem sobre os seus ramos perenes os genes da nossa história.
Cerro os dentes nas sílabas emudecidas e nas palavras enverdecidas. Atravesso o véu denso do vento. Estou de partida.


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Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
flavio silver
Publicado: 18/11/2007 14:40  Atualizado: 18/11/2007 14:40
Colaborador
Usuário desde: 24/09/2007
Localidade: barcelos
Mensagens: 1001
 Re: Estou de partida
magnifico poema como sempre nos habituas.
mel és grande. não digo mais nada.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/11/2007 14:55  Atualizado: 18/11/2007 14:55
 Re: Estou de partida p/ Mel de Carvalho
Meus olhos vão crescendo nas órbitas e de repente deságuam, pois percorro o rio caudaloso das palavras e todas as minhas afluentes desembocam nesse mar absoluto, Mel das palavras!
Esplêndido!


Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 18/11/2007 18:08  Atualizado: 18/11/2007 18:14
Usuário desde: 02/03/2007
Localidade: Queluz
Mensagens: 3731
 Re: Estou de partida
"Cerro os dentes nas sílabas emudecidas e nas palavras enverdecidas. Atravesso o véu denso do vento. Estou de partida."

Só espero que essa partida, não seja definitiva...

Como sempre, as tuas palavras são uma bênção para todos nós que te lemos e temos o prazer de te ter por aqui!

Beijo meu


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/11/2007 23:40  Atualizado: 18/11/2007 23:40
 Re: Estou de partida
.........

O puro Mel da criação!

Quase todo o resto está tão longe.

Repito: "quase todo o resto"

Um beijinho enquanto espero que chegues
...................