Contos : 

Na gruta escura

 
Hercílio apeou da burra , descalçou as alpercatas , bateu na moldura da porta , a terra do cemitério, aderida aos grossos solados.Cruzou a sala pequena e desarrumada .Silêncio de cortar de facão. Da janela lateral , a Serra da Sapucaia , na distância azul e subitamente opressora.A cozinha, no apenumbrado fim de tarde,com a mesa escura e polida pelo uso ; restos de cebola cortada , ao lado da faca e do bule de café, faziam companhia ao pedaço de espelho e um pente, que mordiscava dois grisalhos e longos fios de cabelo .
Puxou o tamborete e sentou com as mãos cruzadas , iniciando um silencioso inventário de si mesmo e do que restou daquela morte súbita , depois de mais de trinta anos de casamento , de felicidade morna , sem filhos, tendo sempre e apenas um ao outro .
O espelho mostrava um velho . Testa ampla , cruzada por muitos sulcos , agrupados uns sobre os outros. Duas rugas bem grandes decaíam de cada lado do nariz , até os cantos da boca . Os cabelos curtos, rareando sobre a cabeça, embranquecidos pela idade e restos da cal que transportava para sobreviver.
Mãos calejadas , salpicadas de manchas escuras, enrugadas , tendões grossos , salientes . Unhas rachadas,corroídas pela cal e amareladas de fumo .
Puxou as pernas das calças, contemplando músculos flácidos ,pele fina e sem cabelos, pernas de muitas veias azuis e salientes , manchas e cicatrizes de permeio .Enfim, a velhice chegando , em trote acelerado .
Contava com o trabalho duro de cada dia, dos fornos de cal para a cidade e os vilarejos , tangendo a burra pequena e silenciosa , para expulsar aquela tristeza sem beira nem fundo que vislumbrava á sua frente. A morte lhe pregara uma peça.
Anália morre de repente , feito um pintassilgo , sem mais nem menos, varrendo a casa . A vizinhança acudiu , a Kombi do Osvaldo levou no Hospital , mas cadê coração ?
Custara a acreditar ,mesmo depois de o doutor lhe falar , já fazendo cara de enterro e limpando os óculos no jaleco sujo.Agora,o sessentão cismando da vida , contemplando seu mundo sombrio ,olhos marejados enxergando a vida baça e indefinida , uma panela destampada ,pedaços de toucinho escurecidos de fumaça e dependurados acima do fogão de pedra , a vassoura ainda tombada no chão de cimento queimado .
E pensar que ainda ontem , quase naquela hora , ela estava ali ,naquele jeito encabulado mas de olhos bem vivos, cozinhando e varrendo num canto e noutro . Só de pensar,dava aquela sensação de cair num buraco sem fundo , rolando , despencando , sem nada em que segurar . Mas o pior não é isso .
Danado era tentar reunir a maior de todas as coragens , aquela feita de pedacinhos miúdos , feito fumo picado , mas capaz de encher mil tabaqueiras , enfrentar o remoer do tempo, sem pensar nela e sem chorar.Aí sim .
Os dias foram se arrastando ,numa amargura miserável ,pestilenta , que se derreteu no pesar definitivo ,no luto permanente de quem já desesperava de inventar a cada dia , um motivo para levantar da cama e começar tudo de novo .Os vizinhos até que apareciam, puxavam conversa, reparavam que a boca falava , mas a cabeça , pois sim , estava era bem longe ,ainda mais aqueles silêncios esquisitos , de supetão , no meio da prosa : variando, ainda por cima ? Além de queda ,coice ?
Mas aquelas pessoas queriam curá-lo de que ? Recuperá-lo para viver que vida , um simples durar ? Suportava mal até o querer viver dos outros , mãos de repente indesejadas, querendo resgatá-lo de sua desgraça. As tardes á mesa, contemplando a serra ,apenas o faziam sentir como o nunca mais podia ser uma pedra amarrada ás costas , forçando – o a olhar sempre para o chão .
Iniciou o lento aprendizado da solidão , no preparar as próprias refeições, comidas entre
pensamentos de dor e sombra; reconfortava-o a certeza de que morreria também um dia , apenas o tempo os separava ; um tempo que parecia caminhar de muletas . Com o passar dos meses, percebia que sua dor tornava-se assustadora , não queria obedecer ao tempo, senhor de tudo e de todos ; perdera a capacidade de sentir ,.de saborear o simples viver ; o desgosto ocupava o lugar das lembranças de Anália . Pensou em ir até a igreja
Entrou num domingo logo após a missa . Sentou-se no último banco . Fechou os olhos e lembrou não ter o que pedir .Afinal, tudo aquilo não era mesmo para acontecer ? Limitou-se a ficar algum tempo de olhos fechados, sem nada pedir , acalentado pela sombra das pálpebras fechadas , de repente, um enlevo , silêncio e isolamento .
O medo do não esquecer começava atormentá-lo. Surpreendia-o muitas vezes a vontade de ficar todo o tempo ao lado da mesinha com a velha e retocada foto de casamento , a velar as flores do vaso para que não murchassem.
Uma manhã , Hercílio acordou com uma sensação estranha , com pensamentos há muito não pensados : e se tivesse alguém ali, naquela cama , para lhe aquecer e ajudar a espairecer a vida ? Mas quem daria atenção a um velho cansado ,barrigudo , sujo de cal
e pobre lascado pela vida , ainda por cima ?
O mundo não acabara , mas a vida corria arrastada , sem rumo e ainda dando aqui e acolá, aquele farnesim de tristeza , espinho de macambira cravado na alma .
Uma tarde, retornava já meio cansado , quando o desejo o segurou , no caminho de casa ,entre as algarobeiras.Lembrou da mocidade ,dos gostosos folguedos de cama , ele e Anália , nus e felizes. Uma ereção . Hercílio corou,a surpresa maior que a vergonha . Olhou em torno .Nada além dele e da burra , já aliviada da carga . Sorriu para dentro , puxou o animal pelo cabresto e tomou a trilha dos eucaliptos .
Parou . Peiou as patas traseiras do animal , amarrou–a num tronco de mulungu e abriu a braguilha. Acariciou-lhe o dorso, pensou em Anália e nos felizes tempos de recém casados.
Ainda era um velho disposto. Introduziu-se na gruta escura e quente e começou a explorar seus úmidos desvãos , num crescendo de deliciosa aflição , sentia-se a flutuar
sobre a mata , num vôo lerdo e prazeroso , fazendo as pazes consigo mesmo e com o mundo através do prazer que sentia , uma epifania pagã e estranha ,até sentir-se tomado pela sensação de fim do mundo, o coração atravessado por um ferro em brasa , vendo os céus em queda livre sobre a sua vida , na eterna borrasca do universo em expansão, já não sentindo pés , pernas joelhos , apenas a sensação de ser um peixe fora d’água , fisgado e jogado com displicência á margem do rio, o peito rasgado e não as guelras , tentando gritar , clamar que aquilo não era justo, um absurdo morrer , tentando redescobrir a vida e uma razão para viver , mesmo no prazer além da razão , compreendendo que a dor que o matava , concluía um longo trabalho , além do bem e do mal ..







andrealbuquerque

 
Autor
andrealbuquerque
 
Texto
Data
Leituras
1068
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Srimilton
Publicado: 06/04/2013 18:52  Atualizado: 06/04/2013 18:54
Membro de honra
Usuário desde: 15/02/2013
Localidade: Nenhuma
Mensagens: 1830
 Re: Na gruta escura
Esplêndido. Misturar a dor, a bela dor de um amor perdido, ao coito final e grotesco, animal. Para mim foi o ápice do desespero, de uma acidez cruel e profunda, uma sacação que não será facilmente compreendida. Uma poesia anômala. Usando passagens clichês e alavancando essas passagens, tirando-as desse estado comum, devido a mistura surreal: Um amor ingênuo misturado com o animalesco, grotesco, no final. Minha leitura, meio doida, que faço disso, agora, é o seguinte: Lembra os meus poemas e minhas ideias, quando diz do nosso amor instintivo, carnal, que se parece muito com os animais. Uma diferença não muito distante. Cruel. Este amor retratado, qual é? Que se virem os leitores.


PAZ!


Milton