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Caderno vermelho de fevereiro - 2024

 
CADERNO VERMELHO DE FEVEREIRO 2024
– As uma e quinze da manhã da Segunda-feira gorda de carnaval do anno domini de dois mil e vinte e quatro.
A vida de um poeta sem eira e nem beira, nunca foi e nem será fácil, mas como todo bom bardo que se preza o seu idílio poético, vou levando a existência conforme as necessidades cotidianas – Coçando as costa e as frieiras dos pés até sangrarem; ouvindo as indiretas do senhoria que entra num ouvido e sai no outro ou melhor faço ouvido de mercador; temendo a chuva e as goteiras e os perigos que elas representam decaída oficina – e assim caminha um poeta arrastando sua pesada cruz e seu cheirinho.
Manhã da segunda gorda de carnaval
O poeta saiu antes que a senhoria levantasse e como de praxe curtindo sua pesada ressaca começasse a sua cantilena desagradável, emitindo ordens e brigando com os gatos e a cadela. Apanhou o litro com agua no congelador e junto com uma camisa de tecido colocou numa sacola – tudo no mais completo silencio. Pegou seus apetrechos – o caderno vernelho de capa dura, ainda cheirando a tinta da virgindade, “Galvez, o Imperador do Acre” do mestre amazonense Marcio de Souza, o Sudoku que não conseguia resolver, umas folhas de papel almaço com uns verso inéditos:
“Um poeta sozinho
Não decompõem o universo
Em ínfimas vidas dispares”

Com os dez reais que ganhou do Tio Vince, ontem na pensão, comprou salsichas e refrigerantes para passar o dia todo na oficina, evitando estar na pensão, que estaria em clima de festa com um mocotó oferecido para os convidados do Tio Vince e da Sra. Vince. Sr. Com era avesso a essas confraternizações sociais, um antissocial que não participava de festas, casamentos ou batizados, preferia a socialização alcoólica nos bares e nas praças. Os pães estavam pagos desde semana passada na Padaria Renascer, na Praça das Sete Palmeiras, Vila Embratel, mas devido o grode pesado da semana não os apanhou – e assim municiado desceu para seu refugio.
As três horas da tarde, devorou o ultimo e delicioso sanduba de salsicha e o resto do refrigerante – e sentiu-se feliz!



Terça-feira, 27
E o domingo passou e nem percebi, embriaguei-me pesadamente duas vezes e quando dei por mim era manhã de segunda-feira, um mal estar e todo fraco e tremendo, mesmo assim criei forças e sai – passei na padaria, apanhei os dois pães que pago adiantado pela semana toda e desci arrastando-me até o pai Cardoso onde os comi bebendo três litrinhos de River Guaraná e voltei em cima no rastro e desabei abruptamente na cama – não almocei, mas em compensação jantei bem – uma macarronada com feijão e um assado de panela recheada com bacon – sobras do domingo.
- Ei , bonitinho – pilheriou a minha agente de saúde ao passar pela oficina e ver-me lendo “Caetés” do mestre Ramos.
Uma hora antes, enquanto conversava com seu Jô e Nhá Pu na descida, Seu Fox parou o carro do outro lado:
- Seu Jô, olha o boca suja – apontou para mim e arrancou.
- Vá tomar onde as patas tomam! – retruquei baixinho para não ofender o octogenário Jô, que devido a sua avançada idade não admite despautério com seu amigo.
Sem ninguém para perturbar dediquei-me a manhã toda a ler o romance do mestre alagoano Graciliano Ramos, o primeiro dele de 1933. Bilindowski apareceu no final e fiquei ouvindo suas aventuras quando segurança armada e um mês que não bebe. As onze e quarenta fechei e fui molhar o bico no Comandante La Sierra que estava de saída,. Visitaria a mãe no Turu:
- Vou encher o saco de Dona Joana – assim o poeta entornou três doses que o deixou bem e voltou para a pensão.
As camisas que lavara bem cedo antes de descer para oficina foram estendidas no quarto pela Sra. Vince por causa da chuva insistente desde o meio-dia. Antes do almoço terminara “Caetés”, agora restava a apenas a sul-coreana Kyng-Sook em “Por favor, cuide da minha mãe”. Leu uma boa parte da tarde e depois resolveu assistir um filme “O Troco” com Mel Gibson e ouvir um pouco de Charles Parker enquanto digitava este texto.

Quinta-feira,29 – ultimo dia de fevereiro
As três atendentes da Padaria Renascer ficaram surpresas quando pedi a uma delas doze pães – dez massa grossas e dois massa finas – trocaram olhares entre si, uma delas ficou boquiaberta, quase incrédula e pediu-me que repetisse, como se não acreditasse no que ouvia – eu quase todas as manhãs pegava apenas dois pães massa finas.
- Doze pães – dois finos e dez grossos – repetiu a menina pegando a sacola e a enchendo com os pães.
Fora a senhora que me pedira, assim que me vira aprontando-me para sair. O marido sentia caibras e esparramara-se na cadeira de macarrão na exígua sala de visita assistindo Love Nature, um documentário sobre os leões africanos. Chovera a madrugada toda e o ploc-ploc da goteira também ecoava pela pensão. Antes de sair jogara a agua dela pela janela no terraço.
O dono da padaria também ficara surpreso quando dei-lhe os seis reais bem trocado – duas cédulas de dois reais, uma moeda de um real, de cincoenta e uns de dez centavos.
- Vou levar agora – disse-lhe. Ele pensou que eu estava pagando adiantando para seis dias da semana que vem, como sempre faço – Não vou levar tudo agora. Depois venho buscar os meus – ainda tinha quatro pagos desde sexta-feira passado.
Deixei a sacola sobre a mesa da copa-cozinha. A sra. Vince enxugava a sala do computador, o marido continuava esponjado e impassível, sai debaixo do chuvisco e lembrei-me mais ou menos de um poema de Charles Chaplin, o grande Carlito: “Gosto da chuva porque assim as pessoas não veem as minhas lagrimas”.
Atravessei novamente a molhada e deserta praça das Sete Palmeiras, Vila Embratel – uns passageiros embarcavam num ônibus do Piancó ao lado do Frigo Lucio, driblei os trailers e entrei na padaria indo direto para o balcão do chefe e lhe adiantei cinco reais para semana que vem e segui para a menina que me atendeu com um sorriso colocando os pães na sacola como de costume.
No Cardin peguei apenas o café com o mesmo copo que Seu George trouxe ontem para me engabelar. Este apareceu quase uma hora depois, segundo ele deram dispensa no trabalho por causa da chuva, estão cavando e colocando os blocos do meio-fio numa rua do América do Norte – Dera o dinheiro ( a cédula de duzentos reais) para uma nega fazer compras no Mateus, mas ela fora assaltada na descida do ônibus. Eta ferro!
- E o alicate, Seu George?
- E me esqueci, mas vou já buscar – e saiu apressado como ontem e não retornou. Segundo as más línguas deve ter ‘fritado’ por uma pedra de crack.
As doze e três, o poeta depois de parlamentar um pouco com Clay resolveu fechar o atelier no mesmo instante um pio de um gavião ecoou distante. Blindowski e Tael degustavam umas latinhas de batidas no canto da 21.
- Tu vai morrer – ameaçou-lhe seu Fox de dentro do seu carro parado no quebra-mole da avenida. Sr. Com apontou-lhe a mão como se fosse um revólver fazendo-lhe mira.
No Comercial da Vila, uma porta arriada e o comandante preparava-se para sair, mesmo assim serviu duas doses de vodcas que sr. Com as engoliu sem cara feia e seguiu via pensão, onde terminara “Por Favor, cuide de minha mãe” da sul coreana Shin – fechando o circulo dos livros que trouxera da biblioteca na sexta-feira passada.
No meio da tarde, um sol esplendoroso forte num ceu com nuvens de carneiros descortinou-se, obrigando o Sr. Com colocar os óculos escuros e ir sentar-se a sombra do muro no fundo do quintal para reler “O Planeta do Sr. Sammler” do mestre Below. A senhorinha Vince lhe ofertou um pedaço do delicioso cuscuz baiano que degustou com café.
- Esta marcando chuva para agora tarde – disse a mãe para a filha que lavava umas peças de roupas e as penduravas no varal.



 
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efemero25
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