Poemas : 

Sem título(71)

 
Em manhãs de rijo Inverno

Saio de casa ainda o dia tem laivos da noite

Caminho por entre frio e chuva

Vou de alma vagabunda

Vai meu corpo sem destino.

Deambulo pouco afinal

Num ápice

Vejo-me na taberna do fim da rua

De jornal e aguardente amanhecendo.


Entre um trago e uma fugaz leitura

Meu olhar fixa-se no labor intenso do ferreiro

Ali mesmo

Defronte da taberna.

Ali mesmo

De braços nus

Ao frio do tempo

No calor da forja.

No malhar do ferro.


Nos braços a vera força

Nos braços

A alma do ferro moldado

E nas mãos o dom sublime da criação


Toda a arte maior que a força bruta

Toda a arte de alma e devoção

A vera riqueza de saber

Que por forte o forte braço

Nunca vence a evidência do coração


Escorre de suor no gelo da manhã

Observo-o

E vejo mais que mero cansaço

Nas faces molhadas do ferreiro

Posso descortinar até o júbilo maior

O grato prazer de ter alcançado a forma.

O ferro domado e recriado em suas mãos

O gesto mais subtil enfim desvendado

A alma por dentro do ferro laborado

A vitória do engenho sobre a força fútil

A força do coração sobre qualquer concreto móbil



Meio trôpego

Bêbedo por inteiro

Saio da taberna já a tarde se faz tarde

Transporto comigo todo o álcool do mundo

Em loucura e lucidez de momento único

Levo comigo a suprema simplicidade do ferreiro



Lembro as palavras de despedida do artesão

Palavras simples como puro cristal

Palavras breves e singulares

Assim como quem diz apenas:

Da força bruta não reza a história!

Assim como quem está

Na concórdia plena com os deuses.



E levo em mim uma revelação única

Saber que tudo é mais que factuais poderes

Que tudo é mais leve que trabalhar rija matéria

Que ser ferreiro

Pode ser apenas

A gloriosa bebedeira da criação

Ser ferreiro é relativizar a insana força

Ser apenas o sábio poder

Saber que o real poder emana dos sentires

Muito mais que de fortes braços ou perversas razões

Sempre mais que qualquer força belicamente exibida

Ser ferreiro é ser exemplar e abençoado ser

Realizar dos deuses aos humanos olhares

A vitória eterna da emoção por dentro da vida

Contra bíceps disformes e declaradas prepotências

Contra tudo o que o que se faz de amor ausente

Contra o falso forte e circunstancialmente impotente


Já caído na imunda valeta

Com o vómito do álcool no cérebro em convulsão

Escuto distante

Escuto ao longe no perto do final da rua

A tonitruante voz do ferreiro

Como se fora o cântico final

Ou já nem sei se seria a lição primeira

Escuto como voz divina



Contra nada meu amigo

A favor da nobreza de todas as coisas belas

Contra nada

Apenas a favor da força domada por bem-querer


Dionísio Dinis


 
Autor
Dionísio Dinis
 
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Enviado por Tópico
Mel de Carvalho
Publicado: 20/04/2007 12:16  Atualizado: 20/04/2007 12:16
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Usuário desde: 03/03/2007
Localidade: Lisboa/Peniche
Mensagens: 1562
 Re: Sem título(71)
"Nos braços a vera força
Nos braços
A alma do ferro moldado
E nas mãos o dom sublime da criação"[i]"

A força, Dinis, está em ti, num dom sublime de criação. Comportas esse dom!

[i]"Contra nada meu amigo
A favor da nobreza de todas as coisas belas
Contra nada
Apenas a favor da força domada por bem-querer"


É aqui que te destingues. [i]"Contra anda e favor da força domada por bem-querer![i]"

Lindo de mais, Dinis. Numa força indómita que me fez ler uma e outra vez e voltar a ler.

Um abraço, sentido e muito, muito a favor dos mesmos valores!!!
Mel

Enviado por Tópico
goretidias
Publicado: 22/04/2007 17:07  Atualizado: 22/04/2007 17:07
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Mensagens: 1237
 Re: Sem título(71)
Um poema descrevendo a força bruta de uma maneira sensível e toda especial. O traçado perfeito dos seus versos perfeitamente ao ritmo da intensidade do descrito, aliado à leveza com que o faz, tornam o poema extraordinário! Parabéns!