São só palavras
Fôssemos nós seres alados
e levar-te-ia ao sol para fazermos
na sua cauda,
a nossa casa...
Da varanda,
verias o mundo e isso,
sei que irias gostar!
Mas não te vou iludir
Não o farei...Não posso.
O amor não transforma alguém naquilo que não é.
Vou deixar-te só palavras.
Sinceras.
É matéria enganadora,
dirás,
ou talvez as guardes como coisa secreta
na bolsa dos assuntos do coração.
Não faz mal.
Quando formos pó de estrelas
quem as ler saberá
que no nosso tempo
vivemos um grande amor.
Na noite
Chegada a noite acalmam-se,
aos poucos
os bulícios humanos.
Em pano de fundo cresce
um outro som
em surdina...
Não faz mal,
é outro mundo que mexe
no ciclo da vida contínua.
Vem a calma repentina
e aquietados todos
dormem na terra tranquila!
De um silêncio profundo
nasce um súbito grito
é o poema que chora
por não ter sido,
ainda,
escrito.
ACORDAR
Encontro sempre ao acordar
um suave odor refrescante no ar!
Respiro apenas uma vez
e em cada dia presto homenagem
primeiro
Aos mortos, por lhes devermos tudo
quem somos, onde estamos
e os caminhos que escolhermos percorrer.
O MEDO
Não fujas
Não tenhas medo
não te afastes mais de mim
porque o que dou
dou em segredo
e não há razão para temer
quem ama
e nada quer para si.
Muito vejo do teu sofrer
mas não fujas nem me receies
se me aproximar de ti
que o amor dentro de mim
não merece uma coisa assim...
A VITÓRIA
A meu preceito condeno
Toda e qualquer sujeição
A alguma espécie de ideia
Que não provenha
Originalmente
De mim.
Após longa ponderação
Cálculo e maturação
Atingi a conclusão
Simplesmente
Assim.
Desde logo proclamo
Que agora começa e acaba
Toda a memória alcançada
Exclusivamente
Por mim.
Decido em consciência
sem conselho nem paciência
Não havendo voto nem veto
maioritariamente
ganhei.
Sexta-feira à tarde
Chega o final do dia
uma doce melancolia
apodera-se dos corpos
cansados pela semana de trabalho.
Ardem de desejos os namorados
e antecipam a noite de prazer.
O reencontro.
Chega-se a casa
quem tem casa.
Os outros,
deixam-se estar.
O CHAMAMENTO
Aproxima-te, estranho
não és tu feito da mesma matéria que eu?
Não és tu a mesma coisa que eu?
Não verás tu o mesmo que eu não vejo?
Aproxima-te e sente-me
Enquanto eu for quem sou
tu nunca serás estranho para mim.
O FUTURO
Assolado por ondas de memórias
recolho à concha rude e ao colete
ressaca de um passado rico em histórias
na tristeza de um presente de demente.
Fujo para o deserto,
lugar seguro em que a sede acabará por me matar.
Esperar ao sol
parece-me bom futuro
já que é incerta a hora de acabar.
Na feira
Numa tarde solarenga e calorenta, desloquei-me, pessoalmente, à Feira do livro.
Enfileirei-me por lá, atrás de gente de toda a espécie, heterosexuais pais e avós atarefados com carrinhos de bebés chorões, casais de homosexuais masculinos e femininos, orgulhosos das liberdades recém-adquiridas, pares de namorados ocupados em namorar, grupos de pessoas idosas contentes por terem companhia durante algumas horas e alguns, poucos, jovens carregados com mochilas semi-vazias, agarrados a telemóveis com mil e uma funcionalidades, soltando gargalhadas sonoras e despropositadas.
Circulava-se em todos os sentidos numa procissão caótica e contemplavam-se os pavilhões repletos de livros com desinteresse e com a sobranceria de quem foi ali para lanchar.
Sem cartões de crédito e sem dinheiro nos bolsos, o meu olhar vagueava, displicente, pelas capas de alguns volumes mais ou menos interessantes, adiando, uma vez mais, a altura favorável para os comprar.
Eis senão quando o meu olhar já estonteado pela confusão deparou com o "Escritor", a figura viva mais conceituada desta nossa praça literária. Sentado a uma mesa, caneta na mão e chapéu de sol escancarado, ali estava, tão perto, mesmo ao alcance da minha voz, se eu quisesse, bastar-me-ia chamá-lo... Procurei uma sombra favorável e dediquei-me à comtemplação.
Perto dele, alinhavam-se dezenas de pessoas díspares que cumpriam aquele ritual mágico de pedir um autógrafo no livro recém adquirido, para si ou para algum familiar, símbolo máximo de estoicismo e paradigma do fazer bem, de ser um leitor competente que até sabe quem é o escritor e lá vai lendo a já extensa obra.
Uma melancolia súbita envolveu-me da cabeça aos pés. Um arrepio de repugnância solidificou-se em mim. Não sei se foi a atitude gananciosa dos fãs ali especados como numa linha de montagem, ou se foi o olhar triste e sofrido do "Escritor", bobo contratado pela indústria livreira, assoberbado em cumprir o seu papel de "Lenda viva da Literatura Portuguesa".
Entristeceram-me as rugas de cansaço em volta dos seus olhos azuis. Senti a solidão. Compreendi a necessidade de fugir, de acabar com aquele penoso sorriso de circunstância a todos os presentes desconhecidos e extensível até aos ausentes também. Vi, distintamente, as barras da gaiola dourada em que a sua própria escrita o enclausurou. Lamentei-o profundamente e afastei-me por não o poder salvar.
Já agora
Há palavras para o passado,
o presente e o futuro
Manias de outros tempos
Ao começar o mundo.
Basta.
Há regras actualizadas.
Coisas novas são inventados ao minuto
e já vêem com as palavras impostas
pelas necessidades do produto.
Há golfadas de novidades
em cada segundo que passa
numa gestação muito rápida
indolor e assexuada.
Usar e deitar fora
aceitar o inadiável.
abreviar o inevitável
reciclar o descartável.
Abaixo os conservantes
E os delírios diletantes.
Não esperar que amadureça
nem que a comida arrefeça.
Chega de divagar.
Não é preciso pensar
Há muita coisa a fazer
e não há tempo a perder.