Poemas, frases e mensagens de NAHCardoso

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de NAHCardoso

A noite das cores

 
Abarco as cores deste bar taciturno
Os ocres de sangue em veludos coalhados
Ao som de um “besamemucho”
E de outras tantas canções “bonitas”

A morte continua a meio da bebida
Num compasso de espera fedendo a cinzento
Em fumos de um fogo extinto
A morte continua

Vejo Marylin retratada a um canto
O rosto, a preto e branco, é tristeza
Claridade indecisa, funda, serena
Perdida para sempre ao dizê-la

Oh! Morrer-se jovem, desejada!
O vazio intenso mantém-te suspensa
Como o infinito empurra este mundo
Cremar-te-ei em fogo impoluto

A voz de um anjo perguntou por meus sonhos
No meu peito, ao rubro, perguntou por meus sonhos
No peito esta casa habita comigo
E a solidão cumpre-se em todas as cores

Há melancolia em todas as cores
Nos ocres de sangue em veludos coalhados
“Besame mucho”
E muitas canções
 
A noite das cores

Água em pó

 
Acedo à chama incerta
Talhada num momento
Como uma porta aberta
Sem meu consentimento

Que luz fere ao tocar
Que evito vida fora
Desejo em mim, sem lar
Sem querer saber de agora

(Até nada querer
Até nada dizer)

Cercando ao longe o sonho
Marcado ao longe afago
Num circuito enfadonho
Vazio que levo e trago

Quão doce e grave riso
Que é feito deste outono
Para sempre cristalizo
E apraz-me o etéreo sono
 
Água em pó

Perversos provérbios

 
O homem que sabe, faz
E quem nada sabe, ensina
Aquele poeta triste
Fala da sua rotina

No jogo quem ganha gasta
E não ganhar é nada ser
O malabarista diz-te
O que tu podes esconder

A gente que sofre esquece
Que a gente, pensando, não vive
O condenado merece
A morte que nunca mais tive
 
Perversos provérbios

Anti-Salazar

 
Procuramos honrar a Ciência, e as incertezas

Discutimos Deus, e todos os mitos
Discutimos a Pátria, e o seu devir
Discutimos a Autoridade, e sua cegueira
Discutimos a Família, e o nosso conforto

Discutimos a falta de trabalho…
De discutir
 
Anti-Salazar

O relógio

 
Há um relógio de parede avariado na primeira casa onde morei desde que estou em comissão nesta cidade. Os ponteiros das horas e dos minutos estão parados. Todavia, o ponteiro dos segundos, avança e recua em cada segundo.

Tenho a impressão que as horas estavam certas no primeiro dia por estas paragens. Acho mesmo que acertei os meus dois telemóveis por esse relógio de parede. Noutro dia qualquer é que eu me apercebi do que realmente se passava.
Neste momento moro noutra casa, no outro lado da cidade. Houve necessidade de obras urgentes na casa velha. Intervenções de fundo, ao ponto de tirar o telhado do prédio.

Costumo lá ir sempre que estou de licença, não só para ver a caixa do correio. Tornou-se um ritual no qual eu mato saudades e revivo a minha vida de bairro no que foi o meu primeiro ano de comissão.

Ontem ao tentar dormir lembrei-me daquele relógio e fiquei preocupado. Será que o relógio ainda está lá? Nunca mais lhe prestei a merecida atenção. Será que ainda não morreu? Será que alguém o levou ou o deitou fora? Qual será o mecanismo por detrás daquela anomalia tão curiosa?

Logo na primeira oportunidade que surja vou tentar não me esquecer de espreitar pela sala atafulhada – lá dentro há sinalização de trânsito e tudo porque um dia tiveram de condicionar a circulação automóvel lá fora - e ver se o relógio está no mesmo sítio, com o som tique–taque a enganar a passagem do tempo.

É a vida!
 
O relógio

Manife

 
Morfeu
Vai cantar
Numa escala
Invulgar

No céu
Nosso lar
Uma bala
Vi passar

Morreu
O meu par
Já não fala
Com pesar

De um véu
Por tirar
A cabala
Decifrar

O meu
Avatar
Tem a mala
Nuclear
 
Manife

Primeiras evasivas

 
Não dormirei jamais
Darei a dor de beber ao fantasma
Por ser um disfarce embalsamado

Diante de mim e de ti
Longe de mim e de ti

Não sonharei jamais
Darei amor à dor

Mas os sonhos procedem da mesma forma
Vigilantes, na vigília
Ensimesmada pelos recantos
Desta insanidade possível
Sombra dos dias que sopras

Diante de mim e de ti
Longe de mim e de ti

Não sonharei jamais
Darei amor à dor
 
Primeiras evasivas

Augusto voltará

 
Macacos somos sobre a terra cozida
Mensagem recebida com sucesso na Caixa de Pandora
Para que lado a cidade corre?

A avaliar pelo relógio de Clint, eles estão com uma hora de atraso
Opiniões familiares tão esperadas de látex

Londres está a dar mas Augusto tem um CD melhor para ouvir, fora do alcance da literatura.

A frequência é uma doença que veio tarde.
E a Primavera é uma recompensa que não pensa.

Em estranhos, monstros, verdes, rituais
De pregos, mudanças, lêem, ao lume
SMS, ao dealer, “verdade relativa”.
Augusto, sons ao sol. Acabamos por chegar

Clint recorda a primeira página do Jornal
“La planète dês singes” aqui e agora
A acompanhar dedos urbanos
Porque o Homem é um herói trágico
E dados, esses, não suportamos

Uma velhinha disse a Clint que pensar fazia mal, mas as balas não lhe estragaram o penteado

As coisas estão mesmo beras por aqui, disse Augusto
Fogo e Enxofre vão estrear em Lisboa
E as notícias dão-se à estalada, “Tás a ver?”

Sabes o que é uma sequela? Perguntou Augusto a Clint
Não, disse Clint
Porque é que Ele não está com Ela, perguntou o Pendura
Atrás, a paz, apraz… no Chevrolet

Os Delfins vão assumir o poder amanhã!
Remake…mais ou menos, é sequela
Antes ter sequelas que ter medo

Augusto aperta a mão ao Dealer, finalmente
Eles fazem vista grossa pelo mundo
De fazer tempo, já são horas, já são notas

E os macacos ouvem, altas horas, um ruído
É do autocarro à nossa frente, diz Clint
Não. É o móvel do Dealer
Sem o Dealer, voltaremos, Augusto?
Encheremos os bolsos com canivetes?
Se os cangurus não cagam bolotas
Macacos livros, porque não
Sois homens livres porque sim
 
Augusto voltará

Sonho

 
Teu pesadelo
Pode bem ser
Um vivo apelo
É teu amigo

É o teu sonho
Que sem se ver
Vive, suponho
Sempre contigo

Teu pesadelo
No dedo um nó
Lembra-o com zelo
Que é teu, é nosso

Escondido, sonho
Contigo, só
E decomponho
Enquanto posso

Nossas falácias
Que valem nada
Quantas farmácias
Estão de serviço?

Nesta cidade
Escancarada
À fealdade
Não penses nisso!

Enquanto é tempo
Morre uma vez
Está na berlinda
Aquele salto

Enquanto é tempo
Morrer de vez
Não queres ainda
E a ti não falto
 
Sonho

Sol e água

 
De sol e água são
Encontros pela estrada
Queimados braços estão
E mãos em concha e nada

Sem fogo não há fumo
Luz que é ou que já foi
De tardes que hoje arrumo
Num canto onde não dói

Oiço a chuva cantar
Trauteando na madeira
E as flores estão a chorar
Sem graça à tua beira

Deitada num relvado
Beleza que estás morta
Despertas-me, ensonado
Escancaras minha porta

Mas não para o amor
Sei que sou confidente
Com tiques de pastor
Da carne dissidente

A água é para a ressaca
O sol é para quem quer
E a morte macaca
Não se faz entender

Vasos comunicantes
De uma estrela são raios
Quando as almas bacantes
Vivenciam desmaios

Que só ondas conhecem
Chegando e partindo
As manhãs acontecem
Neste meu tempo findo
 
Sol e água

Lisboa (até um dia…)

 
O nosso tempo era tudo
O nosso instante era surdo
Como estas casas a monte
Sem nada mais a nascente
Sem nada mais que uma ponte
Para uma margem ausente
De nada mais e tão pouco
Mais que o motim suave da cor
Da pedra e casas, acasos
Sem nada mais e tão pouco
Mas tão claro como esta dor
Calada nos nossos passos
No encontro a nós e esperamos
A chave da bruma em que estamos
Como estas casas a monte
Sem nada mais a nascente
Sem nada mais que uma ponte
Em nos levar indiferente
 
Lisboa (até um dia…)

Aluado

 
Tenho vertigens de lua
Como a morte súbita, ao virar da esquina
Olhando para ela, esplêndida, sobre o mar de uma ilha
Como ela
Pulsa o zoar da sua aura violeta no azul
De Maio

Olhar, olhos nos olhos
Que tarda
Olhar, que ousadia
Para a lua
(lugar comum dos poetas)
Não consigo
Desmaio

Permaneço sem calor
Desconheço, sem cair
A lua
E sem querer
Por isso
Caio
 
Aluado

Pedra, tesoura, papel

 
Magoam tanta vez teu coração
Que a fé pelo semelhante desvanece
Agarras-te em mil prantos ao teu cão
E ao tecto do teu quarto numa prece

Ainda pensas em mim?
Eu acho que sim

Com uma faca na mão
Talvez sim, talvez não

Ninguém te deixa cortar os teus pulsos
Amigos que pela vida encontraste
Que força necessitam teus impulsos
Para te deitar abaixo? És um traste!

Ainda pensas em mim?
Eu acho que sim

Com uma pedra na mão
Talvez sim, talvez não
 
Pedra, tesoura, papel

100 pontos finais

 
Olho para dentro e não vejo nada
Em cada gota de sol um bocejo suspira, em notas semicerradas
O tempo mais que perfeito de esperar a psicose, pronta, maquilhada
Montras do nosso pensamento, do nosso pesar
E se essa espera for apenas, tão-somente, “nunca mais”?

Os ponteiros do relógio cumprimentaram-se com um falso sorriso
A fada madrinha vestiu-se com as cores estranhas de um silêncio perturbado
Uma ideia brotou de um coma de tempos infinitos
E a prostituta marcou os passos numa galáxia abandonada

Contou-me o mais comum dos lugares e apeteceu-me… Não sei…
…que me seduzisse com a chave suprema da banalidade

O som do bricolage azul-bebé lembrou-me que são horas de consertar o meu trono
 
100 pontos finais

Letras "bem", de Portugal

 
Antes o Z (em vez do S) em nomes próprios
De família
Agora o K (que inveja o C) em substantivos
Em demasia
 
Letras "bem", de Portugal

Uma semente a explodir

 
Em movimento, a sede
Se apressa e assanha
Como viver sem rede
Nem artimanha

O instinto suicida
Por um instante
Tornou-se a nossa vida
Extravagante

Mais leve que eu e tu
A nossa chama
Escondeu-se num baú
Que é de má fama

O quanto me amedrontas
De mãos vazias
E o fim, feitas as contas,
Dos nossos dias
 
Uma semente a explodir

Um pequeno almoço diferente

 
I

As minhas botas guardam o fim do pó da noite
As minhas (botas/notas) guardam (…) pó do fim da noite
Que tarde, azul-cobalto
A melancolia revelada num recanto da baía perdido algures no meio
As mãos gastas falam do tempo aos atacadores nos instantes que antecedem o salto
Não salto da janela
Salto pelo elevador e pelo portão tremeluzente
Transeunte…
As pálpebras pesam-me na ondulação dos néons, freeshop e monitores
Afinal existe mundo…e a vida cai, não cai…
Gate 24, não gate 17
A cabine aperta e o céu está á espreita em caleidoscópios de algodão
Olhos nos olhos – AIRBÚZIOS
365 dias… não sei
As asas parecem agitar-se mas não chego a ter pena
A cera do pó dos anos antecipara a partida
O azul do mar antecipa a chegada

II

Que interessa dormir? Quando o azul nos phala?
E a vida desponta em janelas coloridas na encosta?
Estante, edredon, almofada
Laptop, azul outra vez
Mundo… outra voz
Não costumo gostar de tunas mas algo tonifica-me
Talvez o silêncio transfigurado…
… Um punhado de anos
De pés sobre a balança e trolley
É natural que o caos renasça também, para tal basta viver
Talvez ordem excessiva
Azul em excesso
 
Um pequeno almoço diferente

Vida

 
Tudo nasce
Fora de si
Quanto baste

Vida faz-se
Como eu a ti
Tu deixaste…

Tudo cresce
Ou talvez não
Acontece

Sobe e desce
A pulsação
Que entardece

Tudo vive
Sem mal saber
Deste lado

Detective
A apodrecer
Apeado

Tudo expira
Numa cartada
Do acaso

Nada tira
À alvorada
O ocaso
 
Vida

Auto-mutilação

 
Bernardo arranjou um emprego como relojoeiro. A sua vista, apesar de já não ser a mesma de outros tempos, ainda dava para aguentar o trabalho, à custa de algumas horas extra a que dedicava, principalmente aos sábados, longe do olhar inquisidor dos colegas cerca de uma geração mais novos do que ele.

Bernardo sempre tinha cultivado a sua paixão secreta pelo diapasão. Mais do que gostar de ver - se entendermos por ver algo mais do que simplesmente olhar – Bernardo gostava de ouvir, ou melhor, fazer-se ouvir e ouvir-se.

Bernardo estava a atravessar gravíssimas dificuldades mentais e financeiras, o que tornava as suas tarefas penosas, mesmo que tal sacrifício satisfizesse uma necessidade obsessivo-compulsiva que o acompanhava desde sempre, e nesse aspecto tanto o satisfaziam as engrenagens dos relógios ou as vibrações do diapasão. Até que um dia Bernardo teve a genial ideia de observar as manchas solares a olho nu horas a fio e assim cegar. Não nos esqueçamos das circunstâncias históricas particulares desta estória. Vivia-se então em 2012.

Bernardo conseguiu baixa médica para assistir ao apocalipse. Não sei se me faço entender. Ficou cego para poder ouvir e ficou cego para poder tocar.
 
Auto-mutilação