Poemas, frases e mensagens de Acento

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de Acento

Cegueira X

 
somos os filhos dos filhos
da revolução insensata

quando jovens, sem trilhos
no peito, gritos sem data

hoje são naus de velhos piratas
na família impúbere dos devotos

adoram-se e a um deus de lata
e sua cruz é o controle remoto.
 
Cegueira X

Cansaço I

 
perdoem o silêncio do inimigo
abafado pelos gritos no pódio;

as donzelas não correm perigo:
voltarão no próximo episódio.

permitam que eu saia sozinho,
relevem os passos no escuro;

não há, meus filhos, futuro
se o monstro é só um moinho.

o que achava ser um gigante
não passa de pedra de afiar:

eis que o cavaleiro andante
não tem mais por onde andar.

resta ao cavaleiro uma moto,
meias-frases no lábio rasgado,

na mente um controle remoto
e um bom sorriso desfigurado.
 
Cansaço I

Cegueira I

 
tudo ao redor espanta
e aguça outros sentidos

minha vista era nuvem branca
vendo passos em quatro sentidos

caíam moedas dentro do copo
ensurdecendo a fome um pouco

[...]

eu queria mudar o mundo
começar partindo do esboço

pego a única moeda, beijo-a
e atiro-a ao fundo dum poço

fazendo um desejo:
me deixe roer o mundo

até o fundo
do osso.
 
Cegueira I

Egoísmo I

 
a solidão não se importa comigo
e, se muda, dá-me algo a pensar

se é assim que eu me castigo
a dor é minha e é meu o penar.

não que eu queira morrer só
mas de que vale a mão alheia?

é mão de faca e força em pó
que às brisas se faz de areia.

não se pode estar em meu encalço
porque meus passos acenam adeus

sou faraó, sou sol, sou deus
e só. o menos que digam é falso.
 
Egoísmo I

Cansaço IV

 
não há domínio de vontade,
há mais desejos amenos!

mas o que é felicidade
sem uns quilinhos a menos?

bata seus calcanhares
(ou o pé, de preferência)

e tudo que vá pelos ares,
que só sobre sua essência!

não há lugar pra segredos:
uns preferem vender dedos,
outros compram os anéis;

bom saber que está segura
essa paz que aqui perdura
sobre pilhas de papéis.
 
Cansaço IV

Fanatismo I

 
os pecados cometidos
durante sua vida inteira

serão todos redimidos
por um santo de madeira

a fiéis, cruéis, vendidos
cada qual a sua maneira

o paraíso é resumido
num livro de cabeceira
 
Fanatismo I

Presunção III

 
mais uma escolha é-te imposta
entre quatro ciclos ou mais

será mesmo disso que gostas,
adorar ou broquel ou missais?

sendo capitão, tens barco e cais,
mas o voto é tua voz quando falha

enquanto a foto à tua frente gargalha:
eu sou teu deus e nada há mais!

_____________________________________________
* broquel: espécie de escudo.
** missal: livro que contém preces para a missa.
 
Presunção III

Egoísmo V

 
haverá voz de saudade
em meio a tantas vozes?

noutras doses de verdade
quantas são metamorfoses?

os olhos derretem-me o gelo
por mais quentes que infernos

mas não desmancharão o selo
das tuas cartas em meus cadernos.
 
Egoísmo V

Egoísmo II

 
é minha a mão que me afaga
pelas dores que me cometi

os dedos são feito praga
e a mão que me afaga, ri.

os ponteiros contam a paga
a cada nota aguda ou grave

tranco à chave mais amarga
minha alma de aeronave

a voz que uso é primeira
sem pessoa que me escute

mas se sou o eco na caveira
que seja eu quem desfrute.
 
Egoísmo II

Cegueira II

 
as mãos estão a sujar-se
pela lama composta de mar
a mão gosta deste disfarce
e o leva para a cama do mar

não há merda corrompida
vinda dos cus das virgens
nem sangue nos sapatos
nem lama nos olhos

ainda que, cegos, os olhos
gritem que não estão a ver
os mares trabalham a mente
e docemente deixam de o ser.
 
Cegueira II

Esperança II

 
as engrenagens rangem
sem medo do tempo
as engrenagens rangem
sem medo do tempo

entre as árvores
nasce a fábrica
entre as árvores
nasce a fábrica

que paria
gente morta
que paria
gente morta

ao som do apito eles vão
dia sim, dia sim, vida não

a indústria desenha
o seu servo perfeito
a lápis de ignorância
tinta indelével do medo

dia sim, dia sim, vida não

uma vida contada em cargas
cargas horárias

eletricidade pilha bateria
meia-vida, meia-morte-vida
pilha bateria energia vida

ao som do apito do destino
não enxergam as miragens

muita fumaça fumaça
tosse prego lágrima

filhos dos filhos das máquinas
não sentem sentem sentem

sentem medo medo medo

a máquina recicla a paz
no peito de cada alma
a máquina é mãe de deus
a máquina é pai do mal

as engrenagens rangem
uma flor murcha
uma vida seca

as engrenagens rangem
com medo do tempo

dedos abraçam o martelo
carrasco de cada prego
algoz da interrogação
ventre de ferro do sim
fio da navalha do não.

dito isto,

revolução.
 
Esperança II

Esperança I

 
eu digo o teu nome perfeito
me remonto e, peça a peça,
o amor, que é quase desfeito
por quem nunca se interessa,
é coração dentro do peito:
quando bate, nunca cessa.

uma voz diz que não há jeito,
o peito diz que não há pressa.
 
Esperança I

Presunção I

 
presunção de rosa é assim:
nos manda buscar a nós mesmos

- podes trazer-te para mim?
e lá nos vamos a nós e a esmo.

por entre planetas e reis
e beberrões e perguntas

certezas, digam-me vocês;
pressas e dúvidas, muitas

voltarei um dia com um papel
e pelo céu hei de gargalhar:

aguardam-me seus espinhos
e quando o meu sonho migrar

junto com os passarinhos,
essa flor haverá de esperar.
 
Presunção I

Cegueira V

 
não és tu aquele que baila
ao som da marcha militar?

pois que sejas um soldado
feito som de brisa e bala!

danço ao som do que me cala
som da revolta e do rosnado!

finges que tens um recomeço
a cada toque da corneta

acordas morto e vives morto
a cada volta da ampulheta.
 
Cegueira V

Egoísmo IV

 
as letras gravadas na pedra
cantam a perda da poesia

as pedras não cantam a letra
por não ter mais melodia

pela perda da poesia, letra,
pedra e canção viram dia

quando tudo o que a voz pedia
era um pouco mais de noite.

e será quando houver sonhos
em que acordes num adeus

que verás o quão medonhos
são meus olhos sem os teus.
 
Egoísmo IV

Cansaço II

 
lendo um artigo de jornal
tem guerra à vista na mesa

sangue nos campos de trigo
a pureza é efeito do cal

cocaína no colo da princesa
coca-cola na boca do mendigo

morre uma estrela sem valor
e logo se aumenta o volume

nova mente ao seu dispor
um peixe a mais no cardume

mas o absurdo não é maior
que esse velho costume

de poder vender perfume
só com uma foto no outdoor
 
Cansaço II

Cansaço III

 
ódios baratos, cafés pequenos
deuses em vão, dedos em riste

amando um ser que não existe
e amando-se cada vez menos

eis no palco alguém que prega
em nome de um tal de jesus

o povo segue e a pátria é cega
em meio aos clarões de luz.

há quem faça vista grossa
depois de um fundo de garrafa

mas sem cachaça, advogada nossa,
qual é o santo que se safa?
 
Cansaço III

Presunção V

 
ouço o estouro da revolução
entre os copos do velho bar

não há mais como se salvar
todos pintam vermelho no chão

escuto gritos e ninguém me vê
vejo homens que não me escutam

enquanto o vermelho me tinge
os pés, os passos e as mãos

só um deles não nos finge
ser mais livre na prisão.
 
Presunção V

Egoísmo III

 
cansado dos gritos de fora
fecho a porta para as visitas

em mim não cabem parasitas
que me assolam a cada hora

sento e durmo sobre mim
por medo de ser roubado

há um não entre meus lábios
que, se sair, será dobrado

tenho tua vida em minhas mãos
e o polegar abaixo no coliseu

então nunca seremos irmãos
porque é meu, é tudo meu.
 
Egoísmo III

Cegueira III

 
como faz ao precioso o orizes,
escrevo, escravo do que dizes
e das palavras eladas em mim.

rebelo-me aos olhares serenos
e aos queixumes da Vénus atenada,
entregue aos consolos emborrachados

com medo das próprias mãos
que ganham vida enquanto aquecem
o baixo-ventre e giram planetas
quando entram devagar

e cada vez mais rápido.
 
Cegueira III