Esperança II
as engrenagens rangem
sem medo do tempo
as engrenagens rangem
sem medo do tempo
entre as árvores
nasce a fábrica
entre as árvores
nasce a fábrica
que paria
gente morta
que paria
gente morta
ao som do apito eles vão
dia sim, dia sim, vida não
a indústria desenha
o seu servo perfeito
a lápis de ignorância
tinta indelével do medo
dia sim, dia sim, vida não
uma vida contada em cargas
cargas horárias
eletricidade pilha bateria
meia-vida, meia-morte-vida
pilha bateria energia vida
ao som do apito do destino
não enxergam as miragens
muita fumaça fumaça
tosse prego lágrima
filhos dos filhos das máquinas
não sentem sentem sentem
sentem medo medo medo
a máquina recicla a paz
no peito de cada alma
a máquina é mãe de deus
a máquina é pai do mal
as engrenagens rangem
uma flor murcha
uma vida seca
as engrenagens rangem
com medo do tempo
dedos abraçam o martelo
carrasco de cada prego
algoz da interrogação
ventre de ferro do sim
fio da navalha do não.
dito isto,
revolução.
Esperança I
eu digo o teu nome perfeito
me remonto e, peça a peça,
o amor, que é quase desfeito
por quem nunca se interessa,
é coração dentro do peito:
quando bate, nunca cessa.
uma voz diz que não há jeito,
o peito diz que não há pressa.
Presunção I
presunção de rosa é assim:
nos manda buscar a nós mesmos
- podes trazer-te para mim?
e lá nos vamos a nós e a esmo.
por entre planetas e reis
e beberrões e perguntas
certezas, digam-me vocês;
pressas e dúvidas, muitas
voltarei um dia com um papel
e pelo céu hei de gargalhar:
aguardam-me seus espinhos
e quando o meu sonho migrar
junto com os passarinhos,
essa flor haverá de esperar.
Cegueira V
não és tu aquele que baila
ao som da marcha militar?
pois que sejas um soldado
feito som de brisa e bala!
danço ao som do que me cala
som da revolta e do rosnado!
finges que tens um recomeço
a cada toque da corneta
acordas morto e vives morto
a cada volta da ampulheta.
Egoísmo IV
as letras gravadas na pedra
cantam a perda da poesia
as pedras não cantam a letra
por não ter mais melodia
pela perda da poesia, letra,
pedra e canção viram dia
quando tudo o que a voz pedia
era um pouco mais de noite.
e será quando houver sonhos
em que acordes num adeus
que verás o quão medonhos
são meus olhos sem os teus.
Cansaço II
lendo um artigo de jornal
tem guerra à vista na mesa
sangue nos campos de trigo
a pureza é efeito do cal
cocaína no colo da princesa
coca-cola na boca do mendigo
morre uma estrela sem valor
e logo se aumenta o volume
nova mente ao seu dispor
um peixe a mais no cardume
mas o absurdo não é maior
que esse velho costume
de poder vender perfume
só com uma foto no outdoor
Cansaço III
ódios baratos, cafés pequenos
deuses em vão, dedos em riste
amando um ser que não existe
e amando-se cada vez menos
eis no palco alguém que prega
em nome de um tal de jesus
o povo segue e a pátria é cega
em meio aos clarões de luz.
há quem faça vista grossa
depois de um fundo de garrafa
mas sem cachaça, advogada nossa,
qual é o santo que se safa?
Presunção V
ouço o estouro da revolução
entre os copos do velho bar
não há mais como se salvar
todos pintam vermelho no chão
escuto gritos e ninguém me vê
vejo homens que não me escutam
enquanto o vermelho me tinge
os pés, os passos e as mãos
só um deles não nos finge
ser mais livre na prisão.
Egoísmo III
cansado dos gritos de fora
fecho a porta para as visitas
em mim não cabem parasitas
que me assolam a cada hora
sento e durmo sobre mim
por medo de ser roubado
há um não entre meus lábios
que, se sair, será dobrado
tenho tua vida em minhas mãos
e o polegar abaixo no coliseu
então nunca seremos irmãos
porque é meu, é tudo meu.
Cegueira III
como faz ao precioso o orizes,
escrevo, escravo do que dizes
e das palavras eladas em mim.
rebelo-me aos olhares serenos
e aos queixumes da Vénus atenada,
entregue aos consolos emborrachados
com medo das próprias mãos
que ganham vida enquanto aquecem
o baixo-ventre e giram planetas
quando entram devagar
e cada vez mais rápido.