Poemas, frases e mensagens de thiagopontesneto

Seleção dos poemas, frases e mensagens mais populares de thiagopontesneto

Isä en ole koskaan ollut

 
"...o trabalho de um homem não é mais que esta
lenta travessia para redescobrir, pelos desvios da arte,
aquelas duas ou três imagens magníficas e simples diante
das quais seu coração primeiro se abriu."

Albert Camus

Se me maravilham palavras novas,
é que de muito antes as conheci
é que me queima o coração e faz fuligem das artérias
é porque perco a mim mesmo toda tarde
e conheço todas as letras do que me salvaria a alma
Mas não sei como percorrer o caminho
A sinuosa estrada da cidade fantasma
As mãos que me banham numa antiga lagoa purpúrea

Eu me deixo perder à noite,
Mas dou de frente com o reencontro eventual
Quando me surge à vista um ou outro mágico personagem secular
Quando entrego as mãos às cegas e penso em deixar-me conduzir
E desta vez muito me aquece o pensamento
De que finalmente tenha alcançado a magnânima virtual solidez
De que me perdi todos esses anos só para que se tornasse mais belo,
o momento em que fosse, por fim, encontrado

Os movimentos das tuas palavras a mim acalentam
O vento que sopra aos raros cabelos de um enviado ancião
Anjos e demônios batalhando ao céu aberto,
incessantes sobre dias e noites
Argúcia de um espírito que já conhece o seu alimento
Lamentarei e chorarei baixinho pelos anos que, sozinho,
me perdi por entre as altas relvas selvagens da solidão?
Ou aceitarei as asas que me ofereces para que eu, estonteado
Alcance e cruze os derradeiros céus?

Só se teme a morte quando não se tem a sorte
De deixar-se dormir encolhido e absorvido
Pétalas duma doce brisa que extermina o cansaço
Deixar-se viver fora do que aqui nos encarcera
Através daqueles primos e tios e amigos todos
Eles rodearão tua cama de moribundo
Mas que tentes não se deixar partir legando lágrimas
Que viverás ainda em cada pequena parte do mistério
que é este vasto mundo [tão pequeno]

Eu sentei-me à tarde e quase me deixei perder
A observar a imagem ensolarada de tudo o que sempre quis
O deleite da simples possibilidade do impossível
Meus anos de menino imberbe e esquecido
Meu espírito como uma seta que à imagem aponta
Minha garganta - conveniente fortaleza contra meu vagido
Flutuando e observando do alto da fantasiosa balaustrada
Querendo, ainda, viver; Viver!

Viver, sim, para encontrar todos aqueles rostos
E rostos novos e frescos todos os dias
Os sobreviventes deste mundo, desviando das balas perdidas
Da falta de amor, dos carros enlouquecidos das avenidas
Banhando-nos das lágrimas dos bebês esquecidos nos bancos de trás
Das lágrimas antigas duma história dolorosa que aqui deságua
De lágrimas quaisquer que da dor universal se extrai
Viver, ainda!

E ainda errar todos os dias [até que se acerte]
E cair todos os dias [até que chegue o dia de erguer-se]
E desejar impossibilidades, afogar-se em ansiedade
Até que se descubram os mistérios do Fantasma
Se o Universo é mesmo infinito para as quatro direções
Continuarei a percorrê-lo até que não tenha mais pés
com que andar.
 
Isä en ole koskaan ollut

Poema Livre

 
Tudo começa num inocente jogo
de palavras
E eis que nasceram as estrelas
Eis que nasceu o pão e o amor
E eis que nascemos em meio às trevas
Abraços cerrados, amantes
Contorcendo-nos nalgum ventre
Carregando a promessa da vida

Lá fora, enxergo a luz do luar
que faz senão banhar a escuridão das estradas
Os segredos impenetráveis da mata fechada
Sonho com o advento do sol numa manhã esperada
[Viajo, e talvez o meu destino...]
Observo os mundos e as órbitas celestes
Renasço todos os dias e morro pelas noites
E, nos segundos em que não contemplo a beleza,
Meu coração chora com teu nome à ponta dos
meus lábios

Adonai, Adonai!
o breu ameaça-me com pujança
E eu vou esquecendo-me de quem sou
[Sou só uma centelha da colisão
entre vazio e vazio]
Eu sou a divisão da tua beleza
E o meu futuro a alegria da re-dissolução
Chorando baixinho nos teus braços
Cantando das dores que hão de doer

Eu caminharei, ainda, por todas essas
estradas solitárias
E chorarei baixinho por todos esses amores afora
Mas o meu coração mais profundo conhecerá a verdade
E regozijará da nunca esquecida promessa
enquanto meu corpo de homem chora
E aos teus braços, no final, me confinarei
E, no final, convergirá tudo em Ti

Quando a névoa e as nuvens cederem
Verei, enfim, o que há escrito no horizonte
E não me surpreenderá se lá estiver escrito
O Teu eterno, imutável nome.
 
Poema Livre

Universo Orgânico

 
Transcendência é nada
Num universo infinito e casual
Só um conjunto de pontes e portas
As quais cruzamos, e que somem às nossas costas
E no final não havia nada mais,
Somente pontes e portas

Reinvenção é continência
Cautela para que não terminemos por esfolar
Ou explodir estes milagres ambulantes
Da carne de que somos feitos
Passos, bocas, gritos, granadas, miolos
Todas as vozes e voz alguma
A todo instante, em lugar algum

Amor é a mais avulsa das palavras
É adrenalina, noradrenalina
Feniletilamina, oxitocina,
É serotonina e ilusão
É alcançar a mão pequena dum bebê
São lágrimas derramadas
pelas esquinas da história

Eu, também, quero ser éter
Mas tudo o que posso ser é fumaça
Sou o que deixo de mim transparecer
Pelo suor, pelo sangue que pouco sangra
Pelo que digo e me deixo escrever
Sou só o que lembro e o que consigo
alcançar com os olhos e com as mãos

A Terra é o palco da minha tardia aventura
O assovio dos ventos e o canto dos pássaros
são minha trilha sonora
Às vezes penso despertar Gaia com acordes
Mas ela apenas espia através de pálpebras semicerradas
Me lança um tênue sorriso de chufa
E regressa sem palavra ao seu sono de beleza
que já dura eras e eras.
 
Universo Orgânico

Épico dum mundo quase sem cor

 
Murmuram, os ventos, conversa conhecida
Dos senhores das calçadas, risos de gengivas, aposentados
Nas arenas esportivas, os gritos são iguais
E o que se ouve nos rádios, os crimes da noite
As bem-aventuranças da manhã
Quase tão fatais quanto a morte

Faz música, quem observa as beiras das estradas
As pradarias dançando à canção regida pela brisa
Os rumores silenciosos dum mundo senil, analfabeto
No horizonte, haverá sempre mais múltiplos, mais variáveis
Por enquanto, o horizonte afasta-se, sem recurso
O que aprendemos na vida é que não se chega nunca
A lugar algum

Eterno movimento, este jogo de luzes confusas
Essa eterna sala de espelhos, distorcendo-nos
Almas dançando num lago de luz, perdidas
Encontradas diante da vastidão escura do espaço
O tempo devorando-nos e cuspindo novas vidas
No interior escuro do ventre duma indefesa mãe

Os jovens guiam charretes através do sol do fim da tarde
Os velhos suspiram pela derradeira vez sobre seus leitos
Música surge dos céus e pincela a vida, sutil, sutil
E a arma dispara – e as vidas se vão
Retornando, contorcendo-se através das vielas sombrias da morte
Que era a vida mesmo, afinal? Era tudo, e tanto mais...
E quase nada... Era nada.

Que é a vida diante dum dedo magoado na quina da porta?
Diante dum acorde mal colocado, os dedos a tremer...
Que é essa correria contorcida, luzes de postes queimadas
Sambas herméticos e olhares mal encarados
Tudo que quero da chuva é o tamborilar,
Haverei eu de chover também?

Participo e brinco, e observo, amando
E amo a vida como o coveiro ama sua pá
E repugno a própria ideia da existência
Como um câncer espalhando-se através dum mar indefinível
Anos-luz de anos-luz de anos-luz de infinidade
E amo este câncer mais todos os dias
Chicoteia-me, o amor, rasgando-me as costas
Com duros pregos de ferro

Delicia-me, o cheiro dos funchos
Repugna-me, o cheiro dos cadáveres animalescos
E são ambos o mesmo cheiro!
Amo-os, e são a própria morte
O amor está no morrer dolorido, mas amando

Virem-me os olhos, que me perscrutam
Cabeleiras esvoaçando-se frente ao vento febril dos ventiladores
Conversas tolas, quase dogmáticas verdades divinas
Pedaços de chão fantasiando-se com decência
Areia quente, que suga o sangue dos inocentes
Um medo indizível da eternidade, um medo indizível do fim
Um medo quase catastrófico do amor

Ah, que é este veneno que me toma o corpo?!
Ameaça-me com mãos macias como seda
Promete-me tudo, num sussurro indolor
Hálito de grama recém-cortada, dedos da aurora
Santos e demônios jamais ouviram falar...

Observo, noto o amor e me escondo
Enquanto derreto, como um cubo de gelo sob o sol
Entrego as mãos de olhos fechados, e que me conduza
Através da estranheza áspera dos becos escuros
Das vielas arborizadas e das periferias macabras
Me toma o coração como a lua cheia toma o mar

Quando crescer, quero ser poeta,
Quem sabe assim não consigo descrever tudo isso...
 
Épico dum mundo quase sem cor

Desapareço

 
Dissolvo no teu abraço
Como uma ínfima gota de nada
num vasto oceano de infinidade
[Your scent remembers me of
almost perfect and forgotten days]

Dizes-me que nunca foste mais tu mesmo
Do que o quanto és tu mesmo comigo
Que todas as tuas doces palavras
Eram tanto mais doces porque deveras
Querias nada que não a mim encantar
E tão pouco foi tempo que me pergunto
Se não te conheço senão há uns dois
- ou duzentos - anos

Mas são só poucos meses
Duma vida em que da própria vida
a mim me privei
[Ou do que quer que lá fora chamem vida]

Privei-me do todo e escondi-me nos detalhes
Nos cantos da tua boca que me sorri
E da valsa que dança em par com os olhos
Dum castanho onde bate a luz como
lustre num espelho

Escondi-me do mundo nos detalhes
do teu corpo
Nas curvas da tua pele morena que, morna,
No contato com minhas mãos gélidas,
Produz senão espécie de choque que
ainda mais nos junta
E a luz do sol que contra teu tórax
nu - transforma-o em paraíso
[sweet clouds to lay on]

Lá fora, o mundo é uma cadeia
De incessantes aconteceres e de
dias sem termo
A tarde vira noite e nosso tempo
vai-se esgotando
O sol ilumina a estrada que dá em
todas as cidades do mundo
Eu sinto tuas mãos quentes e, por abrupto,
já não preciso de sol nem de mundo

Preciso só dum lugar calmo e duma
dose de horas
Preciso d'algumas palavras e do
teu corpo - onde deito e me isento de dor
Onde me consertas e me preparas
Onde me acomete o sono despretensioso
Adeus, ansiedades; adeus, odioso tédio

Conduzo minhas mãos através de ti
Como se deve conduzir barcos em meio à maré
E deixo que me atravesse, a inocência
O tempo passa e já não me diz respeito quase nada
Que não a necessidade de a ti
conquistar em inteiro
E ao teu amor, e à tua atenção
Até que o fortuito ouse separar-nos.
 
Desapareço

Poema Corriqueiro de Passeio

 
Não sei se posso decidir
Se me encontro afundado
Ou mesmo afundado demais
Jamais, na superfície
Onde o mar faz ondas cristalinas
E, à noite, em meio à escuridão,
Brilham, as noites singelas das cidades
[Longe dos aglomerados e centros urbanos]

O foco se perde no horizonte
A fumaça da cana-de-açúcar queimada
O bagaço que vira energia,
Minha vida encaminhando-se a todos os lugares
E a lugar nenhum, tudo numa só rota
Pneus deslizando sutilmente através do asfalto
Desviando-se dos sulcos e dos cães perdidos
Eu, acompanhado por acordes de violão,
O sofrimento quase nunca chega para aquém
Dos fones de ouvido

Quase sempre vou encontrar o que resta
Os nobres escombros do meu sangue
Desviando olhares ainda, quase insegurança
Mas valem por uns abraços que atingem
Que nem pedra preciosa gravada
Valem por umas conversas tão "por acaso"
Que chegam a aquecer o coração
Fazem-me quase esquecer a solidão

A solidão duma vida inteira,
Assim, em exatidão, como o dito do poeta
E quem diz que não é sozinho é rei ou mentiroso
Quem diz que quando o menino vira rapaz
E a menina, moça
Ainda tem mãos em que se segurar, quando se cai
E o terno e eterno colo de mãe pra voltar

-> Não tem!
 
Poema Corriqueiro de Passeio

Há?

 
E, sentada sobre o chão,
As pernas cruzadas e as indeléveis marcas de beleza
A moça disse com todas as palavras que não havia amor
[O calor das eras fazendo escorrer suor]
Enquanto raios de confusão lhe saltavam dos olhos
[Pequenas dores que hão de doer]
Vinte, ou trinta, ou quarenta anos
Milhares de anos e resposta alguma

Mas viu ela qualquer dia que no úmido ar do calor
Paira um distinto fantasma que com ardor nos cumprimenta?
Ela sentira saudades do irmãozinho, quando fora aos ares o avião
Nas suas próprias palavras, e ações, e lágrimas,
a mentira não se sustenta
E palavras descuidadas servem só para nos trair
No mais das vezes pouca coisa têm que significar

Eu cumprimento o fantasma em retorno e às vezes chego a me afogar
Eu sinto com todas as letras e vejo em todas as formas
A beleza que se contempla, o inevitável sal das lágrimas a rolar
[A mão pequena dum bebê; o fim de tarde em Santa Catarina]
A pequenez e vastidão concomitante dum mundo verde e plural
[Enquanto ameaçado e aprisionado pela tecnologia]
Uma road trip pelas estradas desgastadas e o beijo de uma mulher
O abraço de um homem e o som distante de risadas infantis
[Praias noturnas perdidas pelas mãos misteriosas da vida]

Viajo com as mãos e com os olhos, no sono e na vigília
Se o mundo é mesmo um campo de batalha, gotas de poesia vinga
Gotas de cerveja e pingos de sangue, que escorre das carnes mal passadas
Vislumbres de arco-íris que nos protegem como escudos do desconhecido
[O Desconhecido é só mais uma molécula no Eterno corpo da Noite]
Perfumes das ruas e das épocas - canções doces como a primeira palavra
[O extenso verão que não mais ousa ir embora - preâmbulos dum inverno pueril]
Ruas maltratadas, paraísos perdidos, proibidos - às vezes, esquecidos
Uma estória mágica e singular por esquina

O inevitável retorno à inocência no fim dum ciclo natural
As ondas estão se contorcendo todas na direção do oceano
[Talvez consiga dormir se simplesmente a mente desligar]
Talvez consiga, em meio de tanto sal e tanta água, presenciar
O alto mar, marinheiros perdidos que jamais chegaram a aportar
Afogar-se é mera consequência do imprevisível deslumbre
[Se não há amor em tudo isso, talvez tenha mesmo, afinal, enlouquecido]
E não é esse o fim de todas as coias?! Desejo, desejo, desejo

Desejo, os pés descalços sobre a terra
Desejo, [porque o vento é alto, acaba por me excitar]
Se o amor não é simplesmente desejar dissolver-se,
Talvez o possamos comprá-lo num plástico e redundante comercial
[Mas não seja surpreendido, se custar alto demais]
Eu conheço só o amor do qual escrevo
Eu conheço nada que não o desejo
Que mora em mim e faz com que eu seja quem sou
Que me atrai, me trai, me dá olhos com que ver

Se eu sobreviver, enfim, ao meu colapso,
minha catástrofe natural
A plenos pulmões e com todas as palavras cantarei
Rirei e chamarei definitivamente tolos àqueles
Que vivem vidas inteiras na companhia do Belo Fantasma
E nada dele percebem
Por ignorância, prepotência ou estupidez.
 
Há?

À Sorte do Tempo

 
À Sorte do Tempo

[[A criação nasceu do tédio.
Um pequeno menino – poderoso o suficiente
Cansou-se da solidão eterna
E criou-nos para divertir-se
[Dizem uns que para amar-nos]]]

I

Eu não colhi os girassóis cor-de-gema
Nem corri os campos eternos e milharais
Não beijei a mais bela moça da vila
Ou pedi-a em casamento
Quase nada fiz, e quase tudo há que se fazer
E eu, parado, olho para mim mesmo e digo:
Falácia!

Não corri os campos de Dublin
Nem chorei ao som do sussurro dos ventos
Não atendi ao chamado à minha alma
Tudo do meu legado são lamentos
Lamentosos sonhos do frio do inverno

Eu não segurei a pequena mão dum filho
Nem decidi chamá-lo Amadeu, Joaquim ou Mateus
Nem o ensinei a equilibrar-se na bicicleta
Não o vi deixar nossa casa, esboçando um desolado adeus
Na ponta dos dedos...

Não, eu não hasteei a bandeira
Nem com amor à minha terra servi
Não é que me falhe a memória:
É que tão poucas há,
Que tenho medo de descobrir
Que, enfim, não existi

II

A morte é uma mãe indesejada -
Somos todos feitos de morte
Só não há morte onde não há vida
Do que fugimos, então?

É que temos medo, profundo e indizível medo
Do regresso aos braços afáveis
Daquele vazio eterno, sem sons, cheiros ou cores
O exato vazio que conhecemos desde o início
Mentira – Não conhecemos nada!
Só há vida quando há sensação.

III

Vagueio por uma memória
Como quem dá uma volta solitária
Num fresco bairro duma noite de verão
E faço o que faço nos sonhos: procuro pela casa
O lar perdido dos contos, belos contos antigos
O lugar que inspira poeta mais do que o faz o ópio

E, que são as memórias, senão bairros?
Uns claros e infantis,
Outros escuros, afastados, esquecidos
Que é um homem
se não o conjunto de suas memórias?

Sim, empenho-me na busca pelo lugar
Gente amada espalhando-se pelos cômodos
O cheiro – eterno cheiro do sabonete barato
O antigo violão derramando acordes no início da noite...
Memórias e presságios – pesares e amores sutis
(Como quem ama secretamente o pudim e a calda
E assalta secretamente a geladeira, na madrugada)

Memórias: facas de dois gumes – sem cabo
Se não queres com elas cortar-se, não vivas

IV

Parece a mim que tenho cento e tantos anos
Vejo-me perdido num mundo jovem e pueril
Parece a mim que sou um estranho, velho estranho
Esquecido neste mundo por pura negligência
Forçado a assistir ao ininterrupto curso dos mundos
Forçado à terrível sina humana: a impotência diante das coisas

V

Se não pude, ainda, desistir
É que há laços que me erguem, tão sutis
Como borboletas verdes – vestidas de esperança
Que trazem nas asas o prelúdio das boas-novas
Dos abraços nunca dados, dos ombros nunca cedidos
Dos maus-amores prometendo reposição

Como desistir diante de tudo?
Como pode o pesar superar a beleza?
Ah, na alma machucada, não há lógica nem cura
O homem torna-se mais dilema
Que o comum de sua própria natureza
Os fins de tarde revitalizam-no e entristecem-no
Perde-se entre dois mundos...

VI

Ainda não aprendi a dirigir
Que lástima! Ah, que vacilo
E tão fácil a mim parece
A mão nas alavancas, o pé no acelerador
Vrummmmm

Tomara que haja alguém
Que queira ensinar-me

VII

Perdi meu espírito pairando
Sobre umas águas cristalinas
Não sei nem qual o país!
Sei que o cheiro doce e meio frio
Enchem-no os pulmões
(E lá espírito tem pulmão!)

Perdi-o dentro duma canção
Que dizia que, no final,
O amor que levamos
É igual ao amor que fazemos

Voa lá, vai
E deixa o corpo cansado aqui
Não desperta nunca mais!
Vive a perenidade desses voos sutis
Não desperta, que tudo aqui são limites!
Voa teus voos sutis
Que não há nada melhor no existir

VIII

Sabes quando despertas
E és como a leveza do éter?

Já tentei descrevê-lo por verso,
Prosa, ensaio e tratado...
Nada!

Talvez haja algo mais, mesmo.

IX

Liberta-me da minha liberdade
Dá-me as tuas mãos faltosas
Desses anos todos
Diz-me qualquer coisa de afeto...

Diz-me que não há pesar no viver
Que as coisas hão de se resolver
Que grandeza maior que o amor não há

Diz-me que o medo há de cessar
As viagens serão constantes
E haverá tempo pra contos e romances
Poemas, cervejas e todo o mais

Volta no tempo e vai buscar-me
Nas tardes amenas da escolinha
E ouve-lhes as palavras das tias
Ah, portou-se como um anjo!

Leva-me de volta para dois mil e um
Praquele delicioso dia azulado
Que, a mim parece, não terminou nunca
E, a mim parece, haverá para todo o mais

Afagava-me os cabelos e fala
Até que nos sonhos, por fim, eu caia
Até que eu não tenha mais
Medo de perder-me

Deixe-me ouvir-lhe o coração
Porque, até onde sei
Pode nem existir

X

A vida é um generoso dia
Meu sol prepara-se para o poente
A noite fria me espera
[Mas, mesmo que pouca,
Ainda lá há vida]

Entre correr, fazer as malas
Martirizar-se, fingir calma e tranquilidade
Entre viver vazio ou morrer de saudades
Eu prefiro ir escrevendo...
 
À Sorte do Tempo

Ouso ou Não

 
Caem-me como luvas indesejadas
O pecaminoso pelo qual me repreendo
A beleza e a sutileza que muito pouco sustento
O chão sob pés, que cansam mais todos os dias

Enquanto perco horas a me questionar
Se a mente fantasia mesmo pra preencher
Doces e discretos lapsos temporais
Se se realmente se toca o rosto de Deus
Quando se ouve à nona de Beethoven
Se vou um dia aprender a deixar passar
A viver de presente mais do que de passado
A desmascarar o futuro pela farsa que é
A viver mais em minha própria vida do que nos versos
A repreender impulsos obscuros e mal cuidados

Já não me assusta o novo, nem me ilude
Já não passa do recém advindo vislumbre do próprio agora
Ilustre e augusto, como uma serpente
Que se contorce através do seu caminho
Em busca das fundações últimas do Universo
[E eis que termina por engolir-se a si mesma].
 
Ouso ou Não

Quando te Vais

 
Me dói a fundo porque te vais
Mesmo que te vás pra cedo regressar
Mas isto minha alma não compreende
E paira, sozinha, sob os impenetráveis
Segredos celestes

E eu nem sei o que é isto que eu sinto
Eu nem sei se este amor é tão saudável assim
Sinto-me esmagado sob um milhar de turbilhões
E ontem à noite quase retorno aos braços da solidão
[Porque sabia que estarias partindo]
Mas voltarás; voltarás!
Porém isto ao meu coração pouco importa

Acordei hoje e havia só o sol
E uma imensa cidade vazia
E morreu um pouquinho a cada passo teu
O desejo de ter-lhe pra conversar
O desejo de ter-lhe ao menos por perto
Porque, sinceramente, ainda me acomete o medo

E me dá calafrios, e pensamentos confusos me aturdem
E eu me encontro jogado à sorte das distinções verbais
À sorte de amizades intolerantes e dias cinzentos
[Salvo pelos livros e a recém-admitida disciplina]
A procrastinação e as errantes e vagas ponderações
Deste-me, sem consciência, alguns dias pra pensar
Deste-me muito mais que vida, nos últimos dias
que se foram

E nem é a mim que queres - nem é a mim!
Queres a outro - peças pregadas pelo destino
Estarias, enfim, de mim utilizando pra até ele chegar?
Estarias em mim buscando um mero substituto?
Eu não quero levantar as tuas saias para que te livres da lama
Eu não quero varrer o teu chão e ser eternamente o teu submisso
Eu quero algo que podes me dar, mas crês que isto eu já possuo
Mas não possuo; nunca o possuí

Eu não quero ser o confidente
A quem desabafas todas as noites sobre outro
Nem quero amar-te sabendo que a outro poderás escolher
[Basta que ele a ti retorne, choramingando,
de rabo entre as patas]
Não, [eu não quero o drama nem as convenções sociais]
Eu quero o tu que a mim ofereceu o mais perigoso dos segredos
Eu quero o tu que me jurou proteção
Num dia em que em nome de mais ninguém tocou

Quando regressares, talvez me encontre vazio
Como estive vazio todos esses anos [salvo pela poesia]
Talvez esteja afundado num novo disco ou Tv Show
Talvez tenha pensado e repensado a vida e visto
Que nada disso foi feito pra mim
Que nada disso vai mover-se qualquer passo em qualquer direção
Que o destino me lega amor só pra que eu aprenda que amo sozinho
Que amor é só uma palavra tola sob a qual nos escondemos
E legamos a inteireza futura e presente de existir.
 
Quando te Vais

Beleza Soerguida

 
Enquanto sangrava
E me rasgava por dentro a alma
Esqueci-me do ferido e do rasgador
[Como quem se alheia às águas eternas]
Como quem chora por amor
Sem saber que é amor também o choro
Sem saber que não saber é, também,
Amor.
 
Beleza Soerguida