A Nossa Hora
É nesta hora de fim de tarde que te sonho
Por entre os raios em que se quebra o dia
E por entre essa aragem que me trás o mar
Desenhando na areia da praia o teu rosto
É nesta hora que amanheces dentro de mim
E te revelas na claridade latejante do meu querer
E te denuncias no olhar que estendo no horizonte
E te guardo nas pálpebras que fecho para te sonhar
É nesta hora em que tanto tardas em chegares
Que mais te tenho num recanto de mim próprio
Onde te concebo e apenas existo só para ti
Permanecendo sem que a noite jamais te oculte
É nesta hora a nossa hora a sós
Onde nos deitamos no fundo de mim
Caminhada
Nada enfrenta a paz do teu olhar
E não existe confronto nos teus lábios
E nem outra palavra que o silêncio com que amas
E apenas um gesto sereno parte de ti
Como uma ave que esvoaça
Passeias na vida como se planasses no céu
Movido pelo sentido de um vento
Que soubeste conhecer
Pisam teus passos sobre discretas pegadas
Como o perseguidor que descobre no bosque
Os rastos imperceptíveis do seu caminho
Aprendeste a escutar o que não se prenuncia
Palavras que nos amam
Deixo na tua boca todas as palavras
Todos os verbos com que fazemos amor
Digo-te ao ouvido todas as palavras
Que acordam na cama onde nos deitamos
Chamo pelo teu nome sobre o teu corpo
Já com a voz rouca por tanto te querer
De boca a boca deixamos na saliva
Todas as palavras que transpiram na pele
Dos nossos corpos fundidos sem cessar
De língua a língua dançam as palavras
Que entrelaçamos na dança húmida
Do nosso beijo voraz e demorado
De corpo a corpo a pele arrepiada
Pelas palavras que na noite nos tocam
Com cada sílaba pronunciada pelas mãos
Quero-te ter para além desse silêncio
Nas palavras que soam e ressoam sobre nós
Nessa voz sobre os corpos dos dois num só.
Palavras Nossas
Amo as palavras
Que começam nos lábios
E findam num beijo
Amo as palavras
Que se cruzam num olhar
E se repetem mais tarde
Amo as palavras
Que estendem os braços
Aos braços estendidos
Amo as palavras
Que dão voz ao silêncio
De um desejo guardado
Amo as palavras
Que sempre em ti escuto
Sem nunca me as dizeres
Amo as palavras
Que hoje aqui escrevo
Porque falam de nós.
A Intimidade do Silêncio
Na naturalidade dos nossos silêncios de companhia
Descobrimos a amadurecimento dos frutos do verbo
E o à-vontade de estar a dois sem palavra alguma
Como é fácil o silêncio na intimidade que privamos
E na cumplicidade no trajecto do nosso caminho
Desbravado apenas com a intuição dos sentidos
Que ambos sem o prevermos sabemos comum
No nosso calar sereno sem o esforço das palavras
Revela-se o segredo onde a dois se sente um só
Sem a sensação dos momentos mortos do silêncio
E com a intenção de trazer as palavras só no olhar
Apenas estarmos sem esforço de remar com as letras
Num propósito verbal de desaguarem pensamentos
Apenas estar neste mar tão nosso e tão profundo
Onde serenamente mergulham nossas almas entre si
Estar connosco em silêncio como o modo mais íntimo
De nos sentirmos a dois espelhados face a face.
Um Retrato que fala de Amor
Um amor maior sai dos teus lábios silenciosos
Um amor maior reflecte o teu olhar revelador
E nas tuas mãos, atento à sensualidade dos gestos
Desvenda-se a permanência dessa força de amar
Apenas uma rosa substituiria a imagem que guardo
De quem tenho a sua voz escrita a abreviar a distância
Por ser esse decerto o sabor tão intenso dos seus lábios
E ser essa a fragância que envolve a nudez do seu corpo
A verdade é que nunca a possuí nos meus braços
E as minhas mãos jamais acariciaram seu corpo nu
Apenas um retrato me faz pronunciar o seu nome…
Dedicatória: O face a face das palavras
As ... do poema na ! da Vida (IV Eventos Luso)
Às vezes parece que desistimos de vez
Mas sempre erguemos da queda a persistência
Nem sempre o caminho se encontra luminoso
E nem sempre o silêncio é a luz do nosso chão
Somos precários em cada quotidiano do nosso diário
Na fragilidade indefesa de uma folha de papel
Susceptível e predisposta à inscrição da sua história
Em cada página com que o mistério do amanhã
Sem o prever nem o temer se faz presente
Nem sempre a vida espelha a face que julgamos
Neste olhar estático e estanque sobre a sua hora
Sem galgarmos o muro lamentável de um momento
Buscando na distância do tempo o fundamento de cada dia
Cada dia é uma vela acesa nas margens do nosso caminho
Circunscrevendo-se entre si o sentido da nossa existência.
A vida é este contínuo propósito de a escrevermos
No parapeito de uma janela aberta ao fortuito dos dias
Deixem-me a Paz
DEIXEM-ME A PAZ!
Deixem-me a paz!
Que eu saberei o que fazer
Por esses caminhos que avanço
Por esses lugares que alcanço
Por esse horizonte onde descanso
Deixando-me amanhecer.
Eu sou aquele
Que não parte
Desta parte
Que me parte
A alma em mil pedaços
Esquartejada por abraços
De intuitos devassos
Por todos os espaços.
Ordeno uma vez por todas
Mesmo sabendo que não há ordem
Em meus pensamentos e em meus passos
Mesmo reconhecendo a rectilínea desordem
Dos meus vorazes sentimentos sem cansaços
Deixem-me a paz!
Pudesse fulminar o desacerto angular da raiva
O insolente desacato imposto pelos anjos do caos
Que entoam as hossanas do ódio e da maldade
Pudesse eu ceifar a erva rasteira dessa conjura
Que brota nas margens de um pântano disfarçado.
Pudesse ser um mero esquecido pela existência humana
Um louco inimputável que ninguém condena por piedade
Um marginalizado sem queixa alguma de abandono social
Um sem abrigo eternamente agradecido pela sua condição.
Se eu pudesse… ai se eu pudesse…
Mas eu não posso calar meu grito
Quando me sonegam a herança
Milenar da paz de Cristo
Quando me ocultam a imagem
Plácida de um amor crucificado
Quando se mancha de sangue
A toalha do advento sobre o altar.
Deixem-me a paz!
e eu dar-vos-ei a paz do meu silêncio.
Aqui e agora
Permanece na luz do silêncio
Com o espanto da vida no olhar
No lugar situado nesta tua hora
Saboreia o presente sem esperas
No consolo do que acontece
Mais nada que nada mais
E tudo o mais não virá por nada
O caminho é aqui e agora!
Fecundação
Beijávamo-nos em horas vadias
Em nossas noites vagabundas
Entre os estilhaços de lua
Quebrados sobre o mar.
No espelho d’ água desse olhar
Cruzado a dois sem haver palavra
Vibrava a certeza de nos termos
E de nos querermos sem nada mais.
Apenas o sonido de uma carícia
Sobre a pele de um corpo despido
No deslizar serpenteado de afectos
Seduzidos ao desejo de entrega a par.
Um leito nosso reservado à madrugada
Fecundada na nudez de cada beijo.