Realidade
tudo parece real nas noites oblíquas das turfas
nos risos das casas e nos papéis das sombras.
as pedras esguias tornam-se dentes de estátuas
e a seiva percorre o dorso da corça
na escuridão dos corpos decepados.
há gritos de amor e de lamentos
parecendo riscas secretas
nos rostos velozes que se tocam.
depois há sempre a espera,
a que se distrai e a que se lança em ameaça
no minuto do sereno
ou no olhar agendado que se move no chão.
e os nomes que se entornam nos pés
que não mordem mas golpeiam.
realidade, são as palavras ditas e as não sentidas,
a cor dos lábios sem alento
que respiram e sofrem
num tremor subsistente.
realidade é a febre das palavras
e o futuro lento dos ventres
no suor dos corpos em movimento.
Eduarda
27/04/2010
SOUBESSE EU....
soubesse eu o canto da sibila
conhecer onde guardas as palavras
e mover-me-ia como dia de sede.
soubesse eu a noite suspensa
entrar na tua alma incompleta
e seria a tua sombra apertada na gola da lua.
pudesse eu conhecer todos os teus passos
saber-te como náufrago da noite
e apertar-te-ia o sono como ladrão de mar.
pudesse eu ser o sossego de todas as perguntas
e seria o teu sono profundo na flor da luz.
coubesse em mim todos os saberes
e serias o meu vestido do mundo em passo de monção.
Eduarda
07/04/2010
NOS TEUS GESTOS SOU...
há um vento luminoso que se solta de noite.
tem a cor dos teus olhos e o sabor da tua voz.
avança em tom de alabastro,
num gesto suave das tuas mãos.
empurra-me levemente para o brilho do teu olhar,
doces pontos que página iluminada e semeada de novos murmúrios se ouvem.
acordarei na manhã das aves,
sobre o teu sono leve e apanharei da tua sombra
o rasto dos segredos, como se o teu corpo fosse
um enigma de símbolos, roçando-me num abraço.
e ficarei contigo como folha corrente de rio,
que o acaso me indicou como princípio desfolhado
no fundo dos sentidos.
serei na tua pele o despontar da madrugada,
o sulco macio que sei e que leio no fio do poema.
Eduarda
08/05/2010
Menos aqui!
por mais um pouco
seria o mais
ou talvez o mais nada.
como um golpe
o tudo se transformou
e a asa se quebrou
a leve brisa
que o tudo leva
sem retorno do pouco
que foi mais além.
tentei nascer o mais
mas o nada se aprumou
rude golpe
que foi mais aquém
e eu fiquei menos aqui
com o pouco que voou
mais o vento forte que soprou.
tomara que o pouco
fosse o mais além
sem o aquém que se partiu
no meu mais
a voar o pouco
que é o nada aqui.
Eduarda
22/03/2010
Vida...
voz calada, sem tom
fechada no peito
silêncio só
em ponto de nó.
esconde a noite
que é diferente da outra
na ponta esconsa
calada de voz sem som
dorida de nada.
vejo-a na sombra do banco
fechada na linha
surda, vazia.
mas no entanto canto-a
dorida, ferida
sempre diferente
enviesada, encerrada
desigual do que pensa.
calo a voz
que permanece dentro
como vento
que oiço e não mexo.
Eduarda
16/03/2010
(IN) PRÓPRIA.
e penso no que não prometo.
ardem-me os dedos como se fossem relógios de pregos,como se todas as métricas fossem sentinelas mordidas.
lavo as mãos no mar distante
e atiro-lhe os meus anos de cansaços.
penso no que me restou, no tempo que passou
e sinto uma espécie de loucura nesta lucidez.
doem-me as mãos do mundo, desenhado do avesso
e mascarado de impaciência.
na corda do sal, descanso o meu recanto
e vejo a peça que fui, no auto do espanto.
depois ponho o pé dormente na ponte
e a mão disforme no sapato,
que dizem ter a forma da alma.
afasto as sobras, componho o lado do sal
e sinto a água húmida penetrar-me no lado direito da vida.
regresso à sola do chão e brinco com o banco que fiz,quando rasguei a porta da invenção.
no final do dia, abandono o plano inclinado do sofá e remendo o que não fiz, como arte surda que não tem cura.
apago a luz e volto ao princípio da metade do meu pé,moldado no poiso do sapato.
Eduarda
12/03/2010
VENTO SOPRADO
no vento soprado
sou voo de condor
escondido, lançado
no grito de dor
no rosto sombrio
de galhos rasgados
cortam-se peles
no urro dos ventos
silêncio largado
no esboço do sal
com ventres enlutados
e ilhas de barro
estátua prenhe
de gravura talhada
peito sem vida
no ramo esgotado
adeus sifilítico
com ar em suspenso
fragmentos de boca
em sangue suposto
na medida dum tempo
sem tempo a supor.
Eduarda
25/04/2010
AMOR QUE SEI E CANTO!
e deste amor que sei e canto,
com o teu olhar apontado à minha boca,
leve lanterna que inventámos de coragem tanta,
que fazemos no passo que nem eu sei do pensamento.
tenho nas veias e nas costelas este amor feito de dois, na página certa e no lápis exacto que resiste.
o teu olhar escreve estreito a distância,
entre a ideia e a palavra,
entre o sopro do vidro e o vestido da lua,
onde o sol se vira de bruços.
dentro do perfil da luz e do espaço nu do fogo,
cerramos mudos as tardes dilatadas...
mordemos o frio dissolvido no ar...
pisamos as cores arrumadas...
e construímos este fogo denso
que passa e repassa no abraço.
passamos pela espuma branca
com os pés fincados
na areia dos astros,
avançamos de cor pela sombra dos corpos
e dos olhos escrevemos versos como quem morre.
Eduarda
04/05/2010
GOSTO DE....
Gosto do sabor a pêssego maduro!
A tarde vai enfraquecendo os olhos e até o tom do sorriso se parece desvanecer do rosto. Fecho os olhos e penso o gesto! Sai da terra um perfume dourado com sabores a searas e fermento de pão. Alinham-se as aves e tudo se acalma no redor. Como íman agarro os torrões escuros e esfrego-os nas mãos! Sinto o pulsar das veias! Como tudo é absolutamente divino! Como tudo sabe a terra húmida da tarde! Sento-me na eira e sorvo o ar que me esquenta o rosto. Sorrio! Aqui sou eu! Sem misturas de aguarelas ou pincéis amorfos! O mosto me invade o andar e o ombro se ergue como romeiro. Vem lento o amante da noite e aconchega-me o casaco das nuvens. Uma lágrima húmida me aquece a boca. O charco segreda nas estrelas a calma do poeta.
Como o pêssego e enterro o caroço para conforto.
Eduarda
POEMA EM CONVULSÃO
Bate a brisa na gente que tece o próximo
Na inquietude do vento que sibila,
O arredar do poema em convulsão
Ardendo o lume e o pavio no verbo que estremece.
Renasce o poeta a cada verbo de luz
Como promessa talhada à presa,
Corpo de ferro debulhado
Que espreita o relento das rimas.
A letra se acalma na vertigem da noite fria,
Desprendendo-se dos laços e cansaços
E o pranto se ergue aguerrido entre palavras
Como sombra ao final do dia.
Invoca o poeta o pulso do alento
Afundando as feridas na emoção
Revelando-se estóico no improviso.
A vida o finta de desalento
Vergando-se ao choro e à espera do que sente
Permanecendo ausente enquanto sonha.
Eduarda