MARCA D'ÁGUA
A lágrima de mágoa e prata
desviou-se da cascata
e desaguou no papel.
Soprou-lhe o Zéfiro suave
um ar tão fresco e tão grave
que lhe secou o fel.
Como parece ilesa a folha
aos estúrdios olhos do mundo!
Mas a lágrima de prata e mágoa
já não molha, mas é marca d’água
para sempre impressa no fundo.
BUSCA
Rola o seixo baio
ao capricho das marés.
Olha de soslaio
a rocha altiva,
tão firme no seu trono de areia
e tão alheia
à sua pequenez.
Ah, como queria a modesta pedra
descobrir-se cativa
num lugar só seu!
Mas… pobre pigmeu!
Quanto mais o mar se agita,
mais o seixo se perde
mais turva a água fica.
ESTIGMA
O vento norte
será sempre vento norte.
Aborrece
se é forte,
não aquece
se é frio
(e um arrepio
é coisa que ninguém merece).
Se se faz quente,
é lume ardente
na pele,
e se por um momento
mui bem se comporta
se suaviza,
se veste de brisa,
pouco importa,
continua a ser vento.
FACES DA LUA
Lá fora
a lua oferece
a cidade recortada,
estampada em paredes
de negro algodão,
e na confusão
das sombras paradas,
num marasmo que aborrece,
logo adormece
e se derrama no mar.
Cá dentro
p’la janela entreaberta
a lua oferecida
rebola, desperta,
no branco algodão
dos lençóis que se inflamam,
e ondula, aturdida,
na confusão dos corpos
que, fluentes,
se derramam.
SENSIBILIDADE
A pele que sente
o subtil frescor
de um salpico do mar
num dia que agosto aquece,
também padece
da mansa dor
vinda de um grão de areia
que o vento arremesse.
Não há malícia,
mas a pele arroxeia
sem razão,
e desenha-se um arranhão
onde antes pousou uma carícia.
ROSEIRA
É a mesma seiva quente
que nos percorre,
o mesmo lume,
o mesmo perfume
da rosa primeira.
Caídos os acúleos da distância,
vivemos a mesma ânsia
das raízes entrelaçadas,
transpiradas de amor.
Crescemos roseira,
e há mais uma flor
naquilo que somos.
Não me ofereças flores
Não me ofereças flores
de estufa,
lindas, perfeitas e iguais,
ufanamente processionais,
exigidas à terra
e que a terra dá
sem oferecer.
Leva-me a ver
as flores do campo:
toscas, de caules entortados,
são beijos p’la terra lançados
em borbotões de cor.
E como viceja
o chão tingido!
O amor que merece
é aquele que se oferece
sem ser pedido.
MURALHA
Com seu olhar de granito
fito
na cidade estendida,
é sem farsa
que a abraça,
destemida.
Fortaleza de amor,
é por querer ser guarida
que almeja ser maior.
De si iludida,
parece que esquece
como medra,
como dói
a erosão que corrói
a sua primeira pedra.
FRUTO
Agora,
que já se passaram muitas luas,
que as minhas raízes são as tuas,
que meus ramos terminam em ti,
sei enfim que é hora
de dar de mim novamente
e recolher nova semente
nas mãos onde flori.
CÍRCULO
Nas páginas da agenda
o compasso rodopia,
traçando no dia de hoje
as voltas do outro dia.
Fiel ao seu vil ofício,
rodando, a linha do tempo
é circunferência ferina,
renovado suplício.
Não é rotina,
é vício.