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Histórias de Camacupa e outras paragens da vida (4º Episódio)

 
Aquele sotaque de português crioulo, indígena, teimava em desaparecer (tenho pena que tenha desaparecido). Tínhamos chegado em Março de avião e fui logo para a Escola como já contei. Para a 2ª Classe. No ano seguinte fiz a 3ª Classe até ao Natal e depois a 4ª Classe até ao Verão. Chegámos de Angola sem nada. O meu pai trabalhava em Angola há 6 anos e tinha direito a 6 meses de férias (acho que lhe chamavam férias graciosas ou algo parecido). Depois de estar cá de férias as coisas em Angola pioraram bastante. Vinha aí a independência. De Março a Novembro, Angola aqueceu e a situação antes da independência não permitiu que o meu pai voltasse para ir buscar tudo o que lá ficou – uma vida. Mas havia que recomeçar. Lembro que sair de Angola já não foi fácil entre viagens para o aeroporto de Luanda com escolta de um jeep do exército português e os tiros que havia na rua, até ao filme que vi no avião (uma qualquer tramóia romântica). Ficámos sem nada, mas estávamos juntos e isso era o mais importante. Entre os traumas dos tiros nas ruas de Luanda agravados pelos sons dos foguetes das festas e manifestações populares que fervilhavam em Portugal no Verão de 1975, sobrevivemos. Ainda assim não raramente pensava ir atrás da casa da minha avó comer peixe seco e pirão, ou roubar mangas do quintal do Sr. Manuel, ou apanhar uma diarreia de goiabas quentes ou loengos ou até de mamões. Encontrava laranjas, tangerinas, ameixas… Custou a habituar. Estávamos a maior parte do tempo em casa. Não tínhamos carro. O meu pai esperava receber cá o dinheiro de um carro que tinha vendido em Angola (um Fiat 131), uns 100 contos, uma fortuna já que o carro era novo. Continua à espera até hoje. Em Angola ficaram também os amigos. Pensava eu que todos até saber que os pais do Ricardo tinham comprado a Farmácia de Avis. Estava aí um amigo, um grande amigo. Erámos e ficámos amigos. Não o vejo há muito tempos (uns anos) mas estou certo que sim. Não era rapaz de grandes aventuras até à adolescência. Não era com ele que brincava em Angola nos montes de casca de arroz atrás da minha casa de Angola. Às vezes até a arder. Era o risco. Mas valia a pena ouvir o ralhar da mãe só pelo gozo que dava e pelas gerberas selvagens de que me lembro. (continua)
 
Autor
Raul Cordeiro
 
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