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“ O rebanho que perdeu as asas”

 
Sozinho, olhar triste com o mar prateado como pano de fundo, José lembrava o tempo em que seu avô o encarregara pela primeira vez da guarda do rebanho da família. Esse menino imberbe e franzino que brincava com pedrinhas enquanto o rebanho se saciava naquelas longínquas encostas de verde pintado, que caracterizavam a aldeia da família, era hoje um viúvo Ansião ancorado na cidade de Aveiro. Nos últimos meses o seu tempo era dedicado a observar as trajectórias livres e presunçosas de gaivotas estranhas, que em nada lhe lembravam aqueles tempos de menino entregue aos feros ares do Marão.
Cada ovelha tinha então um nome, um nome de ave. Ora era a Águia, ora a Coruja, a Rola, a Pomba, a Cerejina, a Perdiz, a Pata Brava, a Poupa e a Canarinha. Nesse tempo não vira gaivotas, mas adiante. Era engraçado olhar José sair pela alvorada, já com algumas pedras nos bolsos e sempre com a companhia do seu fiel amigo e protector, um pastor alemão de nome Mick. As ovelhas, essas, já iam mais à frente voando em bando pelos caminhos de terra mais que conhecidos.
Á medida que José e o seu bando de ovelhas iam subindo a serra, já este levava os bolsos cheios de pedrinhas. Ele preferia aquelas que estivessem mais polidas. Talvez de algum modo amaciassem um pouco mais o seu tacto e porque não dizê-lo o seu coração. Havia uma altura em que paravam. E então todas as ovelhas poisavam o seu olhar faminto naquele mar verde de silêncio. As notícias da aldeia trazia-as o vento matinal, que todos os dias sobe as encostas, por vezes trazendo consigo algumas nuvens. Mick sempre atento de focinho bem erguido farejava sons e escutava cheiros enquanto José atirava as primeiras pedras pela encosta abaixo. Usava sempre o mesmo braço, aquele que anos mais tarde lhe salvara a vida, quando já com os pulmões encharcados de água a quinhentos metros da costa, agarrara a mão de um pescador e isso o salvou de um naufrágio quase certo. O seu barco de nome “Fortuna” já repousava algures perto dali, na profundidade translúcida do mar frio de Aveiro. Este episódio que destruíra o “Fortuna” e ao qual José miraculosamente sobreviveu, transformou completamente a sua vida e este não mais seria pescador.
Mas voltemos atrás, ao tempo do arremesso de pedrinhas, que sem excepção caíam todas da mesma forma, em trajectórias curvadas pela força da gravidade no chão expectante um pouco mais abaixo e à medida que José crescia caíam cada vez um pouco mais longe.
Certo dia uma águia que sobrevoou o local onde José brincava trabalhando, provocou uma grande agitação em suas ovelhas e por consequência no seu fiel Mick. Também José, um rapazola já com dez anos de idade sentiu que de alguma forma aqueles voos picados da águia em direcção das ovelhas, seriam convites da rapinosa criatura para que as ovelhas se juntassem a ela e com ela voassem para bem longe dali. Mas José sempre soube que o seu rebanho voador tinha de ficar unido, junto a ele e a Mick que ladrava compulsivamente enquanto corria em círculos de raiva em volta daquela sombra vinda do céu. A águia afastou-se, José percebera então o amor que suas ovelhas tinham por ele ao preferirem ficar ali juntinhas naquele pasto, em vez de juntamente com a águia voarem dali para não mais voltarem.
Os anos foram passando e as pessoas deixaram de sorrir quando o pastor subia as encostas com o rebanho. Há já algum tempo que o José deixara de chamar nomes de aves ás suas ovelhas e por esse motivo as pessoas perderam o hábito de questionarem o pastor sobre qual das ovelhas voava mais alto, ou então qual delas tinha asas maiores. Num desses dias, que seria o ultimo em que José fora pastor, uma forte trovoada acompanhada de granizo abateu-se sobre José, o velho Mick e o rebanho. De súbito, uma luz ofuscante vinda do céu, acompanhada por um simultâneo estrondo, deu um abraço apertado em todo o rebanho e em Mick. José que já nessa altura não trazia pedras no bolso, abrigara-se debaixo de um monumental e imponente penedo granítico que lhe mantivera a roupa e o corpo seco durante a intempérie. Quando a tempestade acalmou, o pastor deparou-se com todas as suas ovelhas deitadas sem se mexerem assim como o seu velho amigo Mick, cujo olhar vítreo ainda hoje lembra. Em tempos passados José pensaria que tinham adormecido, mas aos 12 anos o pastor percebera definitivamente que o seu rebanho voador perdera as asas para sempre. Dos seus olhos saíram os últimos pingos de água que se veriam naquele dia e a secura da sua roupa e do seu corpo estendeu-se ao seu coração.
Na semana seguinte partiu para Aveiro, indo trabalhar na pesca juntamente com seu padrinho que lá vivia. Depois só resta dizer que a história de José fez-se de muitos anos de pescarias até ao dia em que perdeu o “Fortuna” e também as faculdades físicas necessárias para um homem que se queira lançar ao mar. Enviuvou, recebe a visita dos filhos ao domingo e os dias agora passa-os a olhar o mar. Anda triste, mas agora o voar circular das gaivotas já lhe enternece o coração e então por momentos sente a vontade de roubar algumas pedrinhas ao chão. Um dia destes confessou a um amigo que era sua vontade, se a saúde lho permitisse, embarcar num desses moliceiros e partir pelas águas labirínticas da ria em direcção ao interior do país. Talvez assim num golpe de fortuna encontrasse de novo aquelas encostas verdejantes onde um dia foi pastor de um rebanho com asas…

 
Autor
fcsguimaraes
 
Texto
Data
Leituras
1981
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