Crónicas : 

A meio

 

Nunca se tinha sentido tão alto, dali quase dominava o mundo, nunca se sentira tão poderoso, a sua cabeça quase tocava o tecto, via em cima da mesita da sala os restos do almoço, uma sandes mal arranjada em pão de forma, um copo de leite meio vazio ao lado, as migalhas dispersas sobre o vidro opaco da mesa meia partida sustentada por talas presas com fita-cola de embalagem, cinzenta, meia sem cor. Correu a vista pela sala meia arrumada, livros amanhados em prateleiras meias vazias, aqui e ali um pechibeque qualquer servia de decoração para um espaço meio vazio. Os olhos seguiram o rodapé meio sujo ao longo da parede que desembocava na porta da cozinha, entreaberta onde o gato o espreitava algures entre a surpresa e a expectativa, atrás dele vislumbrava o balcão da cozinha em mármore matizado debruado pelo pinho contra uma parede de azulejos meios partidos. Ouvia-se um ping-ping de uma torneira meia fechada que vinha dos lados da casa de banho, um pingar cadenciado que lhe chegava ao ouvido. Da janela meia aberta vinha-lhe uma aragem que lhe afagava os tornozelos descalços assentes no tampo da cadeira estofada a veludo já meio roto. Deu um impulso com a perna direita, nesse instante a cadeira tombou deixando-o suspenso pela corda meia velha cujo garrote lhe afunilou o pescoço deixando-o a meio caminho entre o chão e o tecto, num espernear meio cómico que derrubou o leite que se foi entornando do copo cujo bordo assentou no abismo que medeia a berma da mesa e o chão. Ouviu um rasgar e quedou-se no chão meio morto pelo ar que lhe faltou e que agora lhe inundava a garganta profusamente aberta. Deitado de lado no chão, vislumbrou pelos olhos meio abertos a satisfação do gato que satisfizera a sua expectativa, lambendo os beiços meio sujos pelo leite que escorria da mesa.E aquele ping-ping meio ensurdecedor...
 
Autor
jaber
Autor
 
Texto
Data
Leituras
834
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 10/05/2010 03:50  Atualizado: 10/05/2010 03:50
 Re: A meio
Tuas descrições são fantásticas, os detalhes ganham tando significado, fascinante texto!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 10/05/2010 22:26  Atualizado: 10/05/2010 22:26
 Re: A meio
Jaber,
Vais me dar o direito de discordar da categoria deste texto e do anterior, classificados como crónicas. São contos, e de uma qualidade rara, visto a riqueza de detalhes num universo textual que precisa carregar em breves linhas a dramaticidade de todo um romance.
O núcleo dramático cujo conflito desenrolado é único. O contista consegue surpreender as personagens no auge de suas existências, e no caso desses dois últimos trabalhos teus, é visível a capacidade de burilar as palavras, num detalhamento que quase coloca o (a) leitor(a) à mercê do desenrolar da trama. O que tu fazes é nos tornar testemunhas oculares de algo que está apenas na narrativa, mas se realiza ao nível intelectual e afetivo do leitor.
Crónica é um estilo que “flagra” como uma máquina fotográfica um momento do cotidiano. Há toda a subjetividade do autor impressa no texto, sua memória ao reconstruir a cena, sua emoção. Uma narrativa que nunca se encerra, pois fica para o leitor elaborar para além do que foi narrado. Dois estilos, duas vertentes poderosas da literatura, cuja coragem de se embrenhar exige muito além de uma boa redação, mas antes de tudo gênio criativo e vivência, muito chão pisado, muita leitura. Fica evidente tudo isso no meu amigo escritor.
ESCRITOR, com letras maiúsculas. E tenho dito. É conto!!!!!
Abraços,
Sandra Fonseca