Crónicas : 

Luísa

 
Sempre quis ser melhor poeta. Não fui. Queria jogar futebol, tinha até certa intimidade com a bola: tentaram me levar aos quinze anos para o São Paulo - mas meu corintianismo falou mais alto. Não fui. Minha mãe me queria juíz de direito. Fiz mal e parcamente (não porcamente) um curso de letras aos trancos. Precisava trabalhar. E como não se exigia diploma na época, hoje definitivamente não mais, virei jornalista.
No jornalismo fiz a minha vida, inclusive aprendi a beber além da conta. Comecei por onde todos começavam - na reportagem policial. Via um cadáver por dia - ou mais. Coisa absurda para um menino, filho único, criado com todos os mimos. Andei nos ambientes mais sórdidos. Me apaixonei por prostitutas na noite. Talvez por aí eu tenha aprendido a respeitá-las: ninguém sabe, no fim da noite, o que é uma mulher quando lhe cai a maquiagem do rosto e ela se lembra que foi menina um dia e tem em casa filho, quando não mãe doente para sustentar. Foi assim que um dia me apaixonei por Luísa.
Eu era só um menino. E quando se é jovem há graça em tudo. Até na mediocridade. Foi na boate Sacha's, na rua Augusta, onde fervia a boêmia paulistana. Diziam que eu era menino bonito e de olhos tristes - com vinte anos todo mundo é bonito. Hoje, pela manhã, enxergo minha barba branca no rosto e sinto pena de mim.
Pois bem, Luísa se senta ao meu lado na boate ou inferninho, como chamávamos essas casas noturnas. Pede um uísque, coisa cara para o meu bolso de jornalista mal remunerado. Mas ela faz questão de pagá-lo. E um para mim também.
E vai me pagar mais tarde o quarto do hotel onde nos fomos deitar. É uma mulher vivida. Eu apenas um menino. Me dá carinho (foda-se se uso o pronome na frente), me dá seu corpo, me conta sua história de vida. Fala-me do marido, bem mais velho, que a abandonou. Eu me apaixono por ela. Quero Luísa enfim.
Começo a frequentar a boate todas as noites. E a torrar meu salário em uísque vagabundo. Mas nunca mais vi Luísa e nem me davam notícias dela. Uma tarde, saio da redação do Diário da Noite, que hoje não existe mais, na rua 7 de Abril. Caminho ao lado do meu amigo, o poeta Álvaro Alves de Faria, que editava o caderno de cultura. Vamos juntos a um bar barato, que era onde podíamos comer e pagar. No Largo do Arouche, vejo Luísa, mãos dadas com um senhor que lhe servia de pai. Estava linda com seus claros cabelos de sol. Baixou os olhos e seguiu em frente. Foi quando eu percebi que tinha vinte anos apenas.

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júlio


Júlio Saraiva

 
Autor
Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 26/05/2010 11:05  Atualizado: 26/05/2010 11:05
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Luísa
Sabe, Júlio, você "dá-se" tanto, na sua escrita! quem lê, além de espraiar o olhar por uma escrita fluída, límpida e pura, ainda tem o privilégio de ser seu convidado, limpar os pés à entrada e conhecer por dentro a sua alma, a sua vida... com os erros espalhados, as virtudes arrumadinhas a um canto, a sensibilidade suspensa no ar, as dores a ferver no fogão, as alegrias debaixo da cama, a solidão numa cadeira de baloiço...

Bem, mais diria. Mas cedo ao seu convite e sento-me ao seu lado, numa cadeira vaga, a escutar as memórias...

Beijo!


Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 26/05/2010 11:05  Atualizado: 26/05/2010 11:05
Colaborador
Usuário desde: 10/02/2007
Localidade: braga.
Mensagens: 1199
 Luísa ao mestre júlio.
há luísas que são como flores bravias. estas memórias enchem o coração de ternura, são como dar a mão ao destino e encontrar um país novo onde abarcar os nossos sonhos. e sempre encontraremos aberta a porta da redação do Diário da Noite na rua 7 de Abril.

um beijo,
mar.

p.s. sempre por estas bandas.


Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 26/05/2010 11:19  Atualizado: 26/05/2010 11:19
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: Luísa para julia
"ouvindo-te" ou "te ouvindo",por aqui.tanto faz.onde eu sentir poesia ,e pode ser na vida também, os meus olhos pousam.
e muitas vezes dói.

beijo

alex


Enviado por Tópico
rosafogo
Publicado: 26/05/2010 11:28  Atualizado: 26/05/2010 11:28
Usuário desde: 28/07/2009
Localidade:
Mensagens: 10484
 Re: Luísa
Um pedaço de vida que foi bom ler e me comoveu,
as recordações estão sempre vivas e o Poeta Júlio
as sabe dizer com emoção.
Como apesar de tudo é bom voltarmos aos vinte anos, idade em que os problemas são menores e a
vida é como uma rosa a abrir.

abraço querido Poeta
da rosa


Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 26/05/2010 14:46  Atualizado: 26/05/2010 14:46
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Localidade: Caldas da Rainha - Portugal
Mensagens: 6963
 Re: Luísa
Este seu estilo melancólico de escrever
casa com a minha solteira maneira de ser...
... e somos ambos poetas sem sequer nos apercebermos!

A vida como ela é
nua & crua,
minha & tua!

Muito bem!

Grande abraçooo!

Abílio****


Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 26/05/2010 18:31  Atualizado: 26/05/2010 18:31
Colaborador
Usuário desde: 30/06/2009
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Mensagens: 6699
 Re: Luísa
A beleza da crônica é o cotidiano intimista que a gente extravasa em vivência.Por isso a minha inquietação de não escrever um só estilo: cada qual tem um momento,sentimento e/ou fato a ser expresso.
Bjins, Betha.


Enviado por Tópico
Caopoeta
Publicado: 27/05/2010 02:34  Atualizado: 27/05/2010 02:34
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Usuário desde: 12/07/2007
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Mensagens: 1988
 Re: Luísa
http://www.youtube.com/watch?v=OgwUn_IUC-M

" eu sei que debaixo desta neve mora um coração"


grande abraço caro Julio.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 27/05/2010 02:40  Atualizado: 27/05/2010 02:46
 Re: Luísa
Caraaa,

Linda crônica, eu sou filho unico e tenho 20 anos e por sorte do destino não conheci Luisa

J Saraiva belo retrato... meus parabens

P.S.; Caraca com 20 anos eu olho no espelho e tenho pena de mim, to preocupado .. =/

Abrçs