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Ao Fundo de Mary

 
(...)
Enquanto os minutos passam, vem-lhe à lembrança outros tempos, outras noites e outros homens. Lembra até o seu casamento aos 16 anos com um homem de 19. Tempos difíceis, esses. Após quinze dias de casamento, ele já frequentava os bares de alterne e os anos que se seguiram foram para ela um verdadeiro inferno, entre uma e outra. Na noite que deu entrada na maternidade, ele enfiou uma na cama deles. Uma qualquer Maria que naquela casa se deitou com os seus dois irmãos. Só faltou deitar-se com o seu pai. O homem com quem casara era assim, um verdadeiro e típico homem dado a libertinagens. Sempre que podia, inventava viagens em trabalho e ia de férias com esta e aquela.

Quando finalmente Mary resolve sair daquele casamento, encontra-se ante a impossibilidade de o fazer, arriscando-se a perder a própria vida. Ele não sai, apesar da insistência dela, de que será o melhor para os três. A sua filha era já nascida e com quase 3 anos. Ela não tem apoio da família. Resolve procurar casa. Enquanto isso, decide não ser mais vítima daquela situação. Muda de quarto e passa a dormir no de sua filha. Inicia uma nova fase da sua vida. Passa a não lhe dar satisfações do que faz, onde vai e com quem vai. Será assim mais fácil. Pensa ela. Contudo esta ousadia transformou-a de imediato aos olhos da família e dos amigos, numa leviana e mulher infiel. Ele, furioso por não ter controle sobre a situação, um dia chama-a ao quarto para conversarem – o mesmo quarto, onde está agora. Ela observa por dentro da sua camisa de cor clara, junto à cintura, uma faca - a mesma com que ela partia o pão para colocar na mesa. Diz-lhe que sim, que vai. É só o tempo de apanhar a roupa que tem no estendal.

Foge para a rua e corre desalmadamente por ela abaixo. Entra na primeira porta que vê entreaberta. Pede que a ajudem. O marido quer matá-la. A dona da casa fica horrorizada. Os seus olhos refletem medo. Deixa-a entrar mas passado pouco tempo, diz-lhe que não pode permanecer ali. Mary anda sem destino. Encontra-se frente a um portão velho que dá acesso a uma quinta. Entra nela e faz daquele sítio o seu refúgio para o que está a sentir. Medo, muito medo de tudo. Medo do marido, mas mais medo ainda por pensar o que ele poderá fazer-lhe pelo abandono da casa. Chora! A filha ficou em casa e ela não a pode ir buscar. Trouxe a carteira, a única coisa que tinha em cima da mesa da cozinha. Decide apanhar o comboio e pedir ajuda a avó que vive perto de Coimbra. Já na estação pensa que sem roupa e com pouco dinheiro, pouco ou nada poderá fazer. Volta para trás e vai andando a pé até chegar de novo à quinta. É já noite. Resolve ficar ali, mas desta vez, procura uma entrada pelo lado oposto, onde não existem portões. A esta hora da noite alguém ouviria o ranger daquele portão velho. Desce um lanço de escadas mas repara que as escadas terminam e dão lugar a alguns socalcos. Prestes a galgar o último, sente o seu corpo escorregar e deslizar pelo monte de silvas que se enrolam no seu corpo. Sem tempo para pensar, tenta segurar-se como pode. É quando olha para baixo e vê que se encontra a uma grande profundidade, um tanque feito de cimento cheio de água. Apesar de ser já noite cerrada, o luar cria este efeito prata na água escura. Se cair morre na certa. Não morreu em casa para vir morrer tão perto. Quem a irá encontrar e quando? Fecha os olhos, tenta acalmar-se. Tem que haver uma solução. Se tentar subir de novo para o socalco anterior, estará a jeito de tentar outra forma de se esconder na quinta. Assim aconteceu. Dá uma volta tentando encontrar um meio de chegar ao local que a irá acolher durante a noite. Chegou finalmente. Agora é só tentar descobrir um local propício, para se enroscar, até que chegue a claridade da manhã. Vê um barracão e entra. Lá, estão guardadas ferramentas e outras tralhas velhas. Ajeita-se num canto e adormece, mas por pouco tempo. Acorda com ruídos estranhos vindos do lado de fora. Fica alerta, mas o medo apodera-se dela. Alguém a terá visto entrar e está ali para qualquer coisa ainda. Espreita pelas frestas entre as tábuas e vê que é só um gato a tentar descobrir o que se passa hoje no seu habitat natural. Sente-se toda molhada e fria entre as pernas. A menstruação tinha chegado. As pernas já colam do sangue que entretanto secara enquanto dormia. Enrolou o vestido de ganga entre as pernas. Seria uma forma de resolver a situação até que amanhecesse.

Muito próximo de ser manhã, tenta sair dali, sem que a vejam. Pediria ajuda a alguém, caso o marido continuasse preso àquela loucura.
Quando chega a casa, esperam-na os pais dela e ele. Olham-na com ar crítico e inquiridor, querendo saber onde e com quem ela passou a noite. Ela simplesmente responde.
“Fugi porque ele ia matar-me.” Olhando a mãe fixamente, e ainda com esperança que seja este o dia em que seus pais a ajudarão.

Não acreditaram. Mantiveram-nos na sua casa durante algumas semanas até que tudo se acalmasse. Mary desiste e sabe que terá que contar só consigo mesma. De nada adianta. Já lá vão alguns meses em que ele lhe dera uma valente surra. Pisou-a, pontapeou-a ao ponto de ficar com os olhos e o corpo todo negro. A cabeça já nem tinha a forma redonda, de tantos pontapés. Ela encontrava-se estendida no chão daquele quarto, sem ação para nada. Os seus pais foram alertados pela vizinha que entretanto ouvira os seus gritos. Vieram, mas nada fizeram para tirar a filha daquela situação. Para eles, seria a última das vontades. Nunca tinha havido uma separação na família. O melhor mesmo seria deixar tudo assim. Passar por essa vergonha, seria assumir um fracasso de há quatro anos, quando na tentativa de a arrumarem, casando-a.
Finalmente ao fim de um ano, Mary, consegue alugar casa nos arredores da cidade. Sabe que irá ser difícil suportar as despesas. Renda da casa, alimentação, transportes, despesas com a filha, etc. Mas mesmo assim não desiste, e o dia da sua liberdade chegou. Foi mesmo embora com alguns móveis, alguns utensílios de que necessitava para a cozinha, algumas roupas. Levou a sua filha e entraram às pressas numa carrinha que ela contratou para lhe fazer as mudanças. Na véspera, desaparafusou alguns dos móveis que iria precisar. Seria assim mais fácil tirá-los de casa. Alguém alertou a mãe. Veio logo. Ainda a encontrou a sair.
“O que se está a passar filha?” Perguntou-lhe.
“Que pergunta mãe. Não vê que estou a ir embora?” Responde Mary sem coragem de olhá-la de frente.
A mãe não deu resposta. Virou costas. Reparou que ia andando pela rua de olhar no chão e mãos nos olhos. Chorava, mas até ali ignorara a violência a que a filha estava a ser sujeita, há já quase um ano. O seu pai também não suportaria um acontecimento desta natureza na família. Sempre ausente, mas presente através da mãe. Um covarde que nunca se assumiu, nem como pai, nem como marido e nem como homem, a não ser quando também espancava a mãe. Era sempre ela que dominava e resolvia tudo, umas vezes por conta própria, outras por conta dele.

António continua dormindo. Mary não quer sair da cama. Tem receio de o acordar e não saber como reagir perante a situação. Continua divagando pelas histórias que ainda se encontram gravadas naquelas quatro paredes. O seu casamento acabou, o pai da filha abandonou a casa pertença de seus pais e ela volta ao sítio de onde tinha saído com a sua filha, para recomeçar uma nova vida. Sua mãe ajuda-a no que pode. Não a abandonou, apesar de não concordar com o que fez. Mas ela é sua filha e tem com ela a sua primeira neta. Mais uma mulher nascera no seio desta família, onde predomina o género feminino. Uma família tal como outras em que para o serem, basta que abram as pernas para eles se afundarem e se libertarem dos detritos que se cumularam nos seus cérebros, de homens das cavernas. A sua forma é agora outra, uma mãe que não abandona a sua cria. Defende-a com unhas e dentes, quando confrontada com críticas que em nada abonam o comportamento da sua filha. Uma prima que mora perto, definiu o ato da filha, como um ato indecente,
“Uma puta, era o que ela era, que já devia andar a deitar-se com uns e outros, enquanto o marido, coitado se fartava de trabalhar para lhe dar tudo”. Continuava ela.
“Coitado do Manuel. Que pena tenho dele. O que será feito daquele homem agora, sem casa e sem família.”

A Mãe de Mary não esquece este comportamento da sua prima mais chegada. Esperava mais, até porque esta mulher vivia na mais triste vida. Violentada pelo marido, que a humilhava em público e a levara às urgências do hospital, por ter exercido sobre ela violência física mais do que uma vez. Calada e triste, vivia assim segundo conceitos de uma sociedade patriarcal e machista, transformando-a também, levando-a a acreditar que assim é que devia ser. De mulher só tinha uma coisa – o abrir de pernas. Sim, porque o pensamento tinha sido bem manipulado, em prol de uma sociedade feita por homens e para os homens. Ainda vive com esse homem que diz ser seu marido. Um homem que não trabalha. Vive dos rendimentos de uma vida de criminoso por tráfico de drogas e armas. Até já foi detido e condenado por conta disso. Ela, a mulher que vive aos olhos da sociedade, resguardando a imagem de mulher fiel e servil, para Mary não passa de cúmplice de uma vida de miséria mas por conveniência para os dois.
(...)

Ao Fundo de Mary, um conto que relata algumas personagens que dão pelo nome de "Marias"
Ao Fundo de Mary

Um movimento interno. Um acontecimento que se faz luz em todos os seres que se sentem perdidos por mundos e fundos. A história presente que conta sobre encontros que se perdem na noite e se reencontram à luz de uns olhos claros. Um homem que tem nas ruas por onde passa um fascínio e um mistério ainda por revelar. Uma mulher que se encontra numa dessa ruas mas sem deixar ficar pedra sobre pedra para contar a sua história de mulher entre as mulheres nas ruas duma cidade que dorme, enquanto o seu olhar se cruza por outras ruas em movimento. Uma mulher que sabe que ser mulher no mundo dos homens é ser presa do seu próprio destino, mas também sabe que poderá mudar a qualquer momento do seu cair na noite e sonhar com outras moradas, outros mundos que a saibam ser dona do seu próprio mundo. O homem é uma força que lhe mostra que as ruas são fundos onde a encontrará sempre que ela quiser.
 
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ÔNIX
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