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carne. lembra-te que és mortal

 
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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


este mundo não me larga e eu sem saber o que fazer com tudo o que está dentro dele – acredito na morte como grande libertação do corpo. como dizia hamlet: “a morte é um sono sem sonhos” – não há nela nada de trágico. o destino certo de quem nasce é morrer – a morte é também descanso. serenidade. calma. silêncio. sempre gostei do silêncio calmo – faz tempo que não tenho esse silêncio calmo. faz tempo que não tenho onde deitar a cabeça. faz tempo que não tenho um sono inteiro – há uma coisa na morte que me aborrece: aparece quase sempre sem avisar. disfarçada de desastre ou doença. como se não houvesse outras formas de levar o corpo – não gosto desta forma de levar o corpo. soa-me a cobardia. deslealdade. traição. ninguém merece morrer dessa forma. rápido. ninguém merece morrer com o corpo em ferida. ninguém – depois da voz morta sei que já não será possível reclamar. protestar ou escrever um manifesto anti esta forma de morrer – protesto em vida. bem sei que já não é uma vida plena. uma vida de forcado. com o barrete campino caído para sul. peito para fora. mãos na cinta. pés a arribar. enquanto os olhos emparelham com os gestos e a voz engrossada pela inconsciência desafia a morte. e os pés para trás e para a frente. e o peito a arfar de força e as mãos a fazer ranger os ossos da cinta de sobrançaria. e o desafio sem contar o tempo por ter a certeza de que a morte só traz glória – mas o tempo passa. mesmo que no pulso a ampulheta seja agora um pilha automática. capaz de fazer reverter qualquer pedaço de tempo que não seja real. e os ponteiros rodem então em sentido contrário ao do relógio e 2012 já não existe – estou na idade das trevas. acusado de bruxaria por fazer desaparecer o medo da morte de todos aqueles que viveram tempo suficiente para desistir de rezar – enquanto a água benta tenta apagar o fogo que me consome a alma. grito bem alto. para que fique cravado no tempo que ainda há-de chegar. que a morte é insolente. mal cheirosa. víbora. ingrata. sim ingrata. porque precisa de gente viva para poder sobreviver – só há morte porque há gente viva. e sendo assim. a morte deveria levar os corpos com dignidade. morrer de corpo são. sem dor. sem arrependimento. sem aquela sensação de que perdemos a vida e não somos também merecedores de uma morte justa – o direito à vida é também o direito á morte. porque a morte faz parte de a vida – viver deveria ter esta opção. principalmente quando percebemos que o que fazemos é já uma subtração ao que conseguimos somar – partiríamos então em paz e sem sermos banidos do céu ou excomungados por uma sociedade que se limita. na maior parte das vezes. a ver morrer – deveria ser permitido que cada corpo escolhesse o dia da sua partida
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continua
 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/08/2012 21:53  Atualizado: 02/08/2012 21:53
 Re: carne. lembra-te que és mortal
Uma reflexão que não deixa ninguém indiferente...uma reflexão que deveria chegar aos mais poderosos quem têm tudo para fazer algo pelos mais desfavorecidos...
Grata pela partilha.
Abraços
Luzia


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 03/08/2012 01:45  Atualizado: 03/08/2012 01:45
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 17963
 Re: carne. lembra-te que és mortal
Em outras culturas a morte é comemorada,
nós sofremos muito com a perda.
Mas para mim morrer é como nascer e
nascer é como morrer. Volto para
a continuação... bjs


Enviado por Tópico
MarioRevisited
Publicado: 03/08/2012 11:05  Atualizado: 03/08/2012 11:05
Super Participativo
Usuário desde: 13/03/2012
Localidade:
Mensagens: 112
 Re: carne. lembra-te que és mortal
Sampaio,

Um texto corajoso, onde não falta Hamlet nem acusações de bruxaria medieval.

Gosto de contar sempre, a propósito, uma pequena história de um dos meus escritores favoritos, o filósofo italiano Umberto Eco. Conta ele nos «Seis passeios pelos bosques da ficção», que um dia, um planetário de uma cidade recebeu-o e fez-lhe uma surpresa. Na sala, sentado na cadeira virada ao tecto em abóbada, foi-lhe dado a ver, por reconstrução matemática e visual, o céu do Piemonte (região italiana a que Eco pertence), na noite de 5 de Janeiro de 1932 (dia em que ele nasceu). Ele pôde ver o seu primeiro dia, imaginar os seus pais a ver aquele mesmo céu e aquelas mesmas estrelas. E diz ele que esse momento seria uma boa morte, ali, sem mais.

O problema da morte, eu acho, é o mesmo do significado da vida. Quem souber o segredo de uma, sabe o segredo da outra.

Um abraço, curioso por poder continuar a leitura.

M.