Contos : 

A guerra dos sessenta anos

 
Anjinha no tanque de roupa , a esbravejar ; arma no varal colorido , o ódio multicor . No fogo , a carne queimada de repulsa e raiva , as brasas temperando em fogo bem vivo , a garganta e o tição de uma fúria impotente .Contempla a parede descascada,abrigando fotos do mundo lá fora e de filhos que nunca teve:uma desdita que não renderá herança .
Tomé conserta sapatos na bancada reluzente de velhice ; de madeira centenariamente enrugada , na pobreza artesã de pai para filho ; tachas no canto da boca , em riso sardônico e metálico . O silencio : ensurdecedor , o martelo malha um solado no pé de ferro - bem poderia ser a cabeça da desgraçada, martela- lhe o cérebro na ira cotidiana ; mãos odiadas e hábeis,trazem o projeto em couro até a realidade .
Um polimento em graxa preta e aziaga, lustra uma guerra de sessenta anos de de pequenos ódios e grandes silêncios . Anjinha vive de luto ; por quê ? Ninguém sabe, nem ela nunca disse. T o m é coloca os cadarços no sapato preto , agora devolvido á bancada , alinhado entre os outros em luzidia e caprichosa submissão . Levanta a gola do casaco, a proteger-se do inverno da indiferença : o ódio conjugal inoxidável em sua frieza , aço resfriado de tantos anos ; nem discutem mais , um grita á cada vez de seu canto e o grito paira no ar e sai pela janela ganhando o campo de futebol em frente, sensações grisalhas arremetem contra a grama e as andorinhas.
O balde de cólera que nunca enche ,sempre a receber cada gota de fúria contida ; a comoção virou cebola velha ,dependurada sobre o fogão de pedra .Hoje , a gota d’água:
_ Não tem feijão para o almoço de hoje – resmunga a Anjinha colérica , em riso maroto de ruindade antiga e bem curtida.
Tomé levantou da bancada , tomou da velha mala de madeira de desenho em xis na tampa retangular e pegador enferrujado , de repente acolhendo mudas de roupa e sapatos , despojos da vida de infelicidade medida em dedais , copos e baldes . Olha distraído o fundo ensebado do seu chapéu ; o suor e o nome do fabricante em arabesco amarelo ; coloca-o inclinado sobre a fronte , abre a porta , caminhando em direção a lugar nenhum , cruza o campo de futebol, interrompe a pelada em sua marcha ; a rapaziada estática , em muda indignação ,contempla o velho desempenado em passo acelerado e inédito sorriso , de alma leve e flanante , no ocaso da tarde de domingo .




andrealbuquerque

 
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andrealbuquerque
 
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1821
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 30/12/2012 00:11  Atualizado: 30/12/2012 00:11
 Re: A guerra dos sessenta anos
Olá, Andrea. Este belo conto retrata a vida monótona de um casal como outros tantos que vivem sem amor. Parabéns lusos.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 30/12/2012 09:46  Atualizado: 30/12/2012 09:46
 Re: A guerra dos sessenta anos
Na terra inimigos sempre se encontram para o perdão, é isso que seu conto retrata sob pontos de vista além do teatro.


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 30/12/2012 20:52  Atualizado: 30/12/2012 20:52
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Mensagens: 17925
 Re: A guerra dos sessenta anos
E fico pasma enquanto seus contos caminham
num crescente que fala, enquanto se lê.
Isso é admiração que parece querer explodir de alegria
no meio das palavras, surges como quem não quer nada
e leva tudo, inclusive quem lê despreparado para tanto.
Não sei se falei do privilégio de ter encontrado tua escrita.
Agradeço sempre. André, feliz 2013 (pleno de poesia). bjs