Contos : 

A menina dos pés descalços (I)

 
Conheci uma menina que não tinha sapatos, mas, ainda assim, gostava de ir para a escola aprender a ser gente. Por isso, ía na mesma. O caminho era duro e a geada do inverno era como vidros aguçados que nasciam da terra e se lhe cravavam na carne. As cabeças dos dedos eram as mais castigadas e as feridas eram constantes por culpa dos penedos que as punham em sangue...
No estômago levava a fome e nas mãos a ausência da lancheira que não tinha. Mas mesmo que tivesse, o que lhe haveria de meter lá dentro, se nada havia que sobrasse da ceia? Ceia... uma sopa de leitugas quando a caridade alheia não chegava. Às vezes tinha sorte, se o tio por lá aparecia com algum pedaço de broa. Outras não. E nessas em que não, era a professora que se enchia de pena e repartia com ela o almoço que para si tinha cozinhado e tirava da sua própria lancheira sob o olhar ansioso da menina pobre. Por causa disso, a menina não passou da terceira classe.
Contou-me que a levaram para Lisboa quando tinha apenas nove anos de idade e lhe metiam bilhas pesadas de leite à cabeça, ou cabazes de hortaliças e de fruta e a mandavam por ruas intermináveis até chegar à praça, derreada, onde os patrões lhe ralhavam por se ter demorado muito... Certa vez, escorregou num pnedo liso por causa da chuva miúda e não conseguiu impedir a bilha de cair e de ver o leite derramar-se e desaparecer por entre as frinchas dos penedos da calçada. Quando chegou de bilha vazia, levou tareia, pois está claro!
Do pouco que ganhava, mandava quase tudo para o sustento da mãe e da irmã mais nova, pois que as cartas quando chegavam, só falavam de lamentos e da falta que o dinheiro por lá fazia. Um dia, já crescida e farta daquela vida, resolveu aceitar o pedido de um homem mais velho que conheceu num Domingo, em casa de uma senhora amiga, para onde costumava ir passar a tarde de folga. Não casaram porque o regime não permitia que houvessem divórcios e o homem tinha sido abandonado pela esposa, à qual continuava amarrado pelo nó do matrimónio religioso. De modo que, juntaram os trapinhos e alugaram um quartinho ali para os lados do largo Paiva Couceiro, onde se tornaram grandes amigos do casal dono da casa e com quem íam às vezes fazer pic-nics em roda de uma manta de retalhos que estendiam no relvado, à sombra de umas árvores que lá havia e por ali ficavam a contar anedotas e a petiscar do que levavam.
Mas da terra começaram a chegar umas cartas que o homem escondia, assim como escondeu até ao dia da partida, a decisão que tinha tomado de voltar para a terra, onde, numa casa cheia de velhos a quem devia obrigações morais, os aguardavam...


(continua)


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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cleo
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